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Segunda-feira, 7/4/2003
O vizinho de cima
Arcano9
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Vancouver

Encaro o mau tempo tradicional desta parte do Canadá. Noite nublada, caem uns pingos de garoa gelada e o vento os derruba em meu sobretudo. Atravesso a Granville street. É sábado. As luzes e a rapaziada brilham nas calçadas, os jovens começando a noitada. Risadas gritadas na esquina, uma distante buzina. Um cheiro de brisa oceânica vindo lá das bandas do Stanley Park. Entro na loja de conveniência, aquela que, vista do lado de fora, parece meio desleixada. Dentro, no caixa, uma libanesa (ou síria, ou egípcia, ou sei lá) me recebe com um lindo sorriso. Salam, saúdo, retornando a simpatia com minha saudação-padrão para muçulmanos. Mas não há papo. Depois do alô, ela nem cruza mais os olhos comigo. A CNN tem prioridade, onipresente, na TV precariamente instalada numa prateleira em cima da gôndola de biscoitos e xaropes de maple.

A vendedora e seu silêncio são penetrantes. Cativantes. Não compro imediatamente o meu Haagen Dasz, volto-me e reverencio as imagens junto com ela. O presidente Bush havia avisado que, em 48 horas, tudo começaria. E as imagens, do outro lado do mundo, mostram uma Bagdá já ao amanhecer de domingo, com as sirenes prevendo semanas de terremoto. Depois, imagens de câmeras especiais que gravaram as primeiras bombas sobre a capital iraquiana. O solo sob os pés da vendedora se mexe. Malditos, pensa ela. Malditos.

O mundo roda e o terremoto se espalha pelo segundo maior país do mundo.

Montreal

Há quem viesse dizendo nas últimas décadas que a rivalidade entre ingleses e franceses morreu. A rivalidade histórica, da guerra dos 100 anos, a rivalidade de estilos, a rivalidade de modelos de desenvolvimento, da Monarquia contra a República. Aqui, porém, ela nunca foi embora, e está mais forte do que nunca. Principalmente depois de um certo embate no Conselho de Segurança da ONU.

Um dia, ser de origem francesa no Québec foi razão de vergonha. Tal característica denotava se uma pessoa tinha menos educação e era mais pobre. Essas pessoas tinham que engolir seu orgulho. Mas vieram novos e miraculosos tempos, depois de jogadores de hóquei como Maurice Richard e políticos como René Levesque e Charles de Gaulle (que certa vez proclamou "Viva o Québec Livre" no centro da cidade e foi expulso do Canadá). Hoje, ser québequois é chique. É um ato tão satisfatório de revolta contra tudo o que é inglês e americano que muitos canadenses só conseguem se diferenciar dos americanos porque, em partes do vizinho de cima, houve colonização francesa e se fala francês. Quantas vezes a estátua do almirante Nelson em frente à prefeitura não foi alvo de atentados que a deixaram desfigurada.

O hóquei, que era outra fonte de orgulho nacional e de identidade dos québequois, anda sendo sabotado pelos times do sul da fronteira, que hoje são mais fortes que as próprias equipes canadenses. Mais rivalidade. Ainda assim, em nenhum lugar do mundo o esporte dos tacos e pucks age tanto como fator de união dos membros das comunidades. Todos no Canadá jogam, todos amam, as arenas lotam em dia de jogo. Como hoje: na arena Centre Bell, o maior templo do hóquei no Québec, o Montreal Canadiens recebe o New Jersey Devils. 20 mil pessoas levantam-se para acompanhar o hino americano. Uma onda de vaias absurda toma conta da arena, fica praticamente impossível não tapar os ouvidos. Vejo alguns americanos intimidados na platéia, incapazes de cantar, incapazes de vaiar. Os jogadores parecem indiferentes. O Québec, não. Vem da Segunda Guerra Mundial a tradição, quando alguns dos franco-canadenses se recusaram a lutar a guerra que não era deles. Hoje, a não mais de mil quilômetros das maiores cidades americanas, o vizinho de cima volta a incomodar. Profundamente.

Ottawa

Na capital do país, o primeiro-ministro Jean Chrétien é categórico: O Canadá não participa da guerra. O Canadá, membro da comunidade britânica, cujas moedas e cédulas de dinheiro trazem a efígie da rainha Elizabeth II. O Canadá, que sempre foi um dos maiores aliados dos Estados Unidos. O Canadá, que em tantos aspectos só é o espelho do seu vizinho de baixo. Por que o Canadá não apóia a guerra? Os americanos não conseguem engolir, acham que não dá para conceber isso. Um representante da Casa Branca dá a entender que os Estados Unidos entrariam em qualquer guerra para defender os interesses canadenses, mas mostra seu desapontamento com o fato de o Canadá, aparentemente, não estar disposto a fazer o mesmo. Por quê, meu Deus? Essa idiotice dos québequois, de querer ser diferente, se espalhou? É crise de identidade, necessidade de se mostrar longe da influência dos Estados Unidos?

Na verdade, segundo aponta uma pesquisa de opinião divulgada logo depois do início da guerra, Chrétien estaria errado ao dizer que os canadenses não querem seu país participando da guerra. A pesquisa do instituto Pollara indicava um apoio de 60% dos canadenses à participação no conflito. Naturalmente, antes do início da guerra, a maioria queria uma solução pacífica. Atualmente, as pesquisas indicam que uma província canadense, em particular, apóia de forma mais significativa a participação do país na coalizão contra Saddam Hussein: Alberta.

Edmonton

Novamente, as vaias. Depois de devorar minha pizza borrachuda e meus nachos com queijo cheddar, levanto-me para acompanhar o hino americano, entoado em homenagem ao Washington Capitals, que está na cidade. O barulho é ensurdecedor. Antes mesmo de ir à arena Skyreach Center, quando estava passando pelo bairro histórico de Strathcona, me dei conta que mesmo em Alberta os simpatizantes da guerra escolheram realizar uma vigília em silêncio, longe das ruas, torcendo para que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha possam se virar sem eles. O que se vê nas ruas são os jovens: jovens punks, jovens skatistas, jovens revoltados e contaminados pelo espírito muitas vezes caricato dos anos 60, a necessidade de fazer o mundo acordar pela paz. Pelas ruas do bairro histórico de Strathcona, o vento subpolar não os espanta, nem o hóquei os atrai - cruzo com uns dois ou três com cartazes pedindo para que o mundo veja a verdade e não siga atrás dos libertadores do Iraque.

No centro da cidade, mais alarde dos pacifistas. Ainda degustando a linda vitória do Oilers na noite anterior, sinto o sol no meu rosto e um pedaço de papel roçando minha mão. O sujeito barbudo e tatuado, com quem cruzo em frente a um shopping center perto da estação de ônibus da Greyhound, me oferece um folheto. Uma foto de Bakunin, referências a uma comuna na Revolução Francesa e tudo isso coroado pela palavra paz, paz que, nesse caso, parece resumir toda a ideologia que o sujeito barbudo e tatuado aparenta conhecer tão bem e amar. De repente, tenho a impressão que a palavra paz realmente anda sendo usada de uma forma imprópria.

Já do outro lado da rua, meu amigo e companheiro de viagem me chama a atenção para uma folha de papel sulfite colada num poste. No centro, uma foto do célebre cientista Albert Einstein. Ao redor da foto, citações e frases que, suponho, tenham sido de autoria do criador da Teoria da Relatividade. Uma delas me chama a atenção: a que fala que, nos dias de hoje, o que se qualifica de patriotismo é na verdade uma máscara para encobrir o nacionalismo doentio - o mesmo nacionalismo doentio que está na raiz do partido nazista da Alemanha nos anos 30 e 40. De repente, tenho a impressão que a palavra patriotismo realmente anda sendo usada de uma forma imprópria.

Picture Butte

Picture Butte é uma cidadezinha no interior de Alberta que ganhou as manchetes dos jornais da província por ser o palco da primeira de uma série de manifestações movidas na região em solidariedade aos americanos. É uma cidadezinha rural, cheia de cowboys com seus chapéus, longos bigodes e botas, que certamente têm mais orgulho dos Estados Unidos do que muitos americanos degenerados da pacifista San Francisco. A cidade também tem estreitas ligações econômicas com os Estados Unidos, como tem todo o país - parceiro dos americanos no Nafta.

Cerca de 300 pessoas participaram da manifestação, ocorrida no dia 28 de março. Larry Nolan, membro de uma família de fazendeiros há quatro gerações, disse que nenhum país pode ser neutro na guerra contra o terror. "Tenho orgulho de ser canadense, mas não tenho orgulho nenhum do que o governo canadense está fazendo", disse, em meio a uma avalanche de aplausos. "Nós decidimos não apoiar os americanos. Tá bom, então quem nós apoiamos?" Outro morador, Henry Gerstenbuhler, disse temer que a posição canadense em relação canadense possa criar um abismo entre o Canadá e seu principal parceiro comercial. "Estou particularmente enojado com a postura de Chrétien. Só espero que os americanos percebam que nós os apoiamos".

Talvez ecoando o movimento crescente no interior de Alberta, talvez ecoando suas profundas divergências com o governo central, o primeiro-ministro de Alberta, Ralph Klein, foi o primeiro e único líder executivo de uma província canadense a, até agora, se declarar contra a neutralidade de seu país em relação à campanha no Iraque.

Calgary

O que primeiro me chama a atenção em Calgary é como a cidade se parece a uma cidade americana. Nem mesmo em Edmonton há tanto dessa estética pré-fabricada: os prédios imensos no centro, as casinhas ao redor, e a presença do cowboy. Calgary é provavelmente, aliás, a capital mundial do rodeio, mais do que qualquer cidade ao sul da fronteira. Anualmente, o famosíssimo Calgary Stampede atrai à cidade centenas de vaqueiros. Todo um parque foi construído ao lado do centro da cidade com áreas para a prática dos esportes rurais. E é lá que joga o Flames, na arena Pengrowth Saddledome.

Pela primeira vez na minha viagem, não há vaias. Justamente no dia em que eu havia trazido até um apito para fazer mais barulho. Os torcedores do Calgary mantêm o mesmo respeito tanto pelo hino americano tanto pelo canadense. Alguns, observo, cantam os dois. E o time visitando a cidade é o Dallas Stars, do Texas, o estado do presidente americano George W. Bush. Nem me pergunto porque é justamente em Calgary que ninguém vaia o hino. Solidariedade entre cowboys.

"Ele é louco", me surpreende, porém, o recepcionista do meu hotel, quando lhe pergunto o que as pessoas estavam achando da posição do governador Klein em relação à guerra. O recepcionista parece decepcionado mas, talvez por minha falta de insistência, ele não adiciona mais palavras a seu comentário. Abaixa a cabeça, termina de preencher uma ficha com meu nome e me entrega a chave. Logo em frente à recepção, um grupo de jovens assiste à CNN. Nenhum parece notar minha presença. Um dos mísseis do Iraque conseguiu atravessar a defesa antiaérea e atingiu o Kuwait.

Não me lembro de ter visto nenhum cartaz na rua. Só as manchetes dos jornais: Explosão mortal faz tremer mercado de Bagdá; Klein quer mais independência para o oeste canadense. Também encontro manchetes pixadas com giz em algumas calçadas: O capitalismo americano mata crianças, dizia uma. Bush é um idiota, dizia outra.

A minha impressão de que defender o fim da guerra é um passatempo um tanto marginal em Calgary é reforçada pelo que encontro na Praça Olímpica, bem no centro da cidade. Foi lá que encontrei o único grupo de pessoas que, com cartazes, pedia paz. Mas, ao contrário do que vi em qualquer outro lugar, as pessoas, três ou quatro, pareciam completos mendigos: sujos, fedidos e aparentemente morando na praça, cobrindo-se com seus cartazes rudimentares de papelão para agüentar o frio. Queria ter conversado com eles, mas não tive coragem. Mais uma vez, parece que a palavra paz estava sendo usada por eles num contexto diferente.

No dia seguinte, viajo para o aeroporto. Viajo mesmo, porque mesmo de carro o aeroporto é longe - ainda dentro da cidade, mas avançando para uma região vazia, plana e com muito vento. As imensas e entediantes pradarias canadenses, que se estendem para o leste, para as províncias de Sakatchewan e Manitoba, para só então encontrar com os grandes lagos de Ontário. Como os Estados Unidos, o Canadá é um país vasto, vasto demais. É difícil para muitos aqui, entender o que é paz, porque eles estão isolados pelas planícies, completamente sufocados pela paz inexpugnável das distâncias. Paz, vazio, silêncio. Isso é tudo, ou quase tudo, no infinito das centenas de quilômetros entre uma cidade e outra. Mas, com o barulho vindo do vizinho de baixo, o sutil equilíbrio entre as províncias - entre o ruidoso Québec e a distante Alberta - pode estar ruindo. Como se o barulho de um vizinho estivesse acordando o outro.


Arcano9
Miami, 7/4/2003

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