COLUNAS
Terça-feira,
8/4/2003
Carandiru, do livro para as telas do cinema
Clarissa Kuschnir
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Um soco no estômago. É o que se pode sentir com o filme "Carandiru": o mais novo, e tão esperado, longa-metragem do cineasta Hector Babenco.
Eu digo "soco no estômago", porque, com certeza, o filme irá levantar questões polêmicas por parte público. Principalmente, por trazer à tona o assunto do massacre ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, que culminou com a morte de 111 presos. Um fato inesquecível que entrou para a História e chocou uma nação.
Nas duas horas e vinte e seis minutos de filme, dá para ser se ter idéia do trabalho que o médico cancerologista, Drauzio Varella, fez na que já foi considerada a maior casa de detenção da América Latina, "o Carandiru".
Babenco conseguiu adaptar de forma brilhante, para as telas do cinema, o livro de Drauzio Varella, "Estação Carandiru". Resta o filme obter o sucesso que o livro teve, pois, tecnicamente e esteticamente, a fita é perfeita: desde a atuação dos atores até os cenários (alguns feitos em estúdio e outros na própria casa de detenção, retratando muito bem o presídio).
Com um orçamento de 12 milhões de reais, "Carandiru" contou com um elenco de primeira e cerca de 8 figurantes para o longa.
A história é sobre os anos em que Drauzio Varella passa no presídio fazendo um trabalho voluntário de prevenção à AIDS. Um esforço árduo, mas que rendeu, ao médico, uma experiência extraordinária, convivendo alguns anos com presos de todos os níveis, conhecendo muitos deles particularmente.
O filme não é uma crítica ao sistema carcerário, mas conta o que se vê no dia-a-dia dos presos: a vida que eles levam dentro do presídio e como foram parar lá.
O interessante é ver a relação do médico com os presos: ele não crítica, ele ouve e dá conselhos de pai para filho. Enfim, um trabalho humano e corajoso do especialista. Para interpretar o médico foi escolhido Luiz Carlos Vasconcelos, que está bem no papel, mas não excepcional.
Entre os personagens, vale destacar velho Seu Chico (interpretado pelo veterano Milton Gonçalves), que está prestes a ser solto e que é aficionado por balões. Também os amigos Zico (Wagner Moura, que protagonizou recentemente "Deus é Brasileiro") e Deusdete (Caio Blat): amigos desde a infância, que vão parar juntos na cadeia, o que acaba culminando em um destino trágico. Igualmente, o traficante Majestade: com suas duas mulheres, que consegue conciliar (junto aos quatro filhos), mesmo dentro da cadeia. Vale destacar, por fim, o trabalho da atriz Maria Luisa Mendonça, como uma das esposas de Majestade: ela é a perfeita mulher de malandro, com toda a sensualidade nata das meninas de periferia.
De todos os personagens, o mais sensível, para mim, é o personagem de Rodrigo Santoro. Ele vive o travesti Lady Di e tem um intenso romance com o "filósofo" Sem Chance (Gero Camilo). Por mais denso que seja para o ator interpretar um travesti (principalmente para Santoro que é conhecido como um galã global), seu papel está muito sutil, sem vulgaridade. Mostra uma pessoa que, acima de tudo, ama sem preconceitos.
Para quem leu o livro, é impressionante como Babenco conseguiu caracterizar cada aspecto da casa de detenção: desde o pátio, o refeitório, até os pavilhões cheios de pichações e cartazes nas paredes. Rita Cadillac, que costumava promover shows no presidio, dá o ar da graça na fita (seu papel foi de certa maneira educativo: mostrou aos presos como se prevenir contra a AIDS).
Para o massacre, foram utilizados mais de 800 figurantes. São cenas que realmente chocam pelos efeitos reais (imagino que, até para os atores e figurantes, deve ter sido difícil).
Claro que, na visão do livro, Drauzio Varella retratou o massacre exatamente como os presos contaram. Então, tudo leva a crer, pelos relatos e agora pelo filme, que a tropa de choque da PM atacou de forma brutal e totalmente desumana: sem pensar nas conseqüências que isso poderia trazer.
No filme, Babenco traz depoimentos dos personagens que sobreviveram ao massacre (não depoimentos verdadeiros, mas dos atores interpretando como se fossem reais). Drauzio Varella arremata com uma frase que aparece no fim da fita: "Só Deus e os detentos podem contar o que houve naquele dia. Eu ouvi estes últimos". E, realmente, a verdade só sabe quem esteve lá dentro: o resto fica por conta de cada pessoa tirar a sua própria conclusão.
Por trás das câmeras
Para divulgar "Carandiru", o elenco tem visitado diversas cidades do Brasil. Em São Paulo, aconteceu ontem (dia 7 de abril), reunindo praticamente todos os atores, o diretor e os roteiristas.
Durante o bate-papo, o elenco conseguiu falar um pouco sobre o trabalho árduo de compor cada personagem.
Um assunto que foi bem discutido e relembrado pelos atores foi a morte do Rapper Sabotage, que participou do filme como o detento Fuinha, mas que, infelizmente, foi assassinado no dia 24 de janeiro deste ano (ele nem chegou a ver o filme pronto). Para o elenco, a participação do Rapper foi muito importante pela ligação que ele fez entre a periferia e o centro: Sabotage trazia grupos de produção de elenco, ajudando na pré-produção do filme.
Rodrigo Santoro, que interpreta Lady Di, foi também um dos assuntos em pauta. O ator disse que pesquisou muito e que conversou com os próprios travestis, tanto no Rio como em São Paulo, para poder incorporar o personagem. Disse que sua relação com a ator Gero Camilo foi sensacional e que não houve problema nenhum em beijar o ator na boca. Rodrigo revela que teve de perder o pudor em se tratando de um travesti. Procurou, ainda, interpretar a personagem com muita dignidade e humanidade (o que já era uma proposta do próprio Hector Babenco). Independente de ser homem ou mulher: sem preconceitos.
Sem dúvida que, para o elenco, a experiência de conviver no Carandiru foi indescritível. Desde o cheiro forte daquela comida de prisão até as paredes pixadas, as celas minúsculas.
Maria Luisa Mendonça (que interpreta Dalva) diz que realmente o ambiente é muito carregado e que, quando entrou ali, começou a entender e compreender mais a realidade da vida carcerária.
Drauzio Varella também esteve presente. Confessou, como está no livro, que sempre gostou de ver filmes de cadeia, mas que nunca imaginaria que pudesse escrever a respeito e, muito menos, ver o resultado disso nas telas de cinema. Drauzio chegava a atender de 60 a 70 pacientes por dia: via de tudo; uma quantidade de doenças que não se vê em um consultório comum. Afirmou que cresceu muito como médico.
Enfim, uma lição de vida. "Carandiru" modificou a maneira do elenco olhar o mundo, como modificará certamente a do espectador.
Clarissa Kuschnir
São Paulo,
8/4/2003
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