COLUNAS
Quinta-feira,
10/4/2003
Tunturi, de António Vieira
Ricardo de Mattos
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O escritor português António Bracinha Vieira nasceu em Lisboa no ano de 1.941. Formou-se médico na Faculdade de Medicina de Lisboa a qual encontra-se até hoje vinculado. Desenvolve grande actividade intelectual, sendo professor de antropologia biológica, pesquisador nas áreas de comportamento e evolução humanos e também fundador da Sociedade Portuguesa de Etologia. Além da firme carreira universitária é escritor, e entre seus trabalhos literários e ensaísticos podemos apontar Doutor Fausto, Discurso da Ruptura da Noite, Ensaio Sobre o Termo da História. No Brasil já foram publicados Contos Com Monstros, Sete Contos de Fúria e a novela Tunturi.
Tunturi é uma obra de feitio surpreendente, prenhe de imagens de acentuada beleza e evocativas de um modo de viver invejável para nós, cobertos por este ranço que à falta de melhor termo chamamos "civilidade". Uma jovem, cujo nome intitula o livro, mora n'uma casa de madeira às margens d'um lago finlandês, em contacto directo com a Natureza. Este entrosamento total da personagem com seu meio escapa completamente da propaganda ecológica hodierna. Não são todos os seus costumes que eu admiro, embora compreenda os motivos de alguns hábitos, mas mesmo assim... É de se ficar boquiaberto com as imagens resultantes das comparações feitas entre a vida e o corpo de Tunturi e os fenómenos naturais. Deve-se reparar também na singela manutenção por ela de antigos rituais religiosos.
O enredo é muito simples e pode ser pautado pelos factos marcantes daquele período da existência retirada da personagem. Primeiro a violência de um estupro. Vive ela afastada da vida social pois conhece os conflito inerentes, as disputas, o duelo entre fracos e fortes. Mesmo isolada em sua cabana, mesmo indo à aldeia esporadicamente, ela é alcançada, estuprada e engravidada. Após este acto, no seu ritual de purificação encerrado com um banho no lago gelado surge a reflexão: "Algum ente suspeito, latente nas lamas e nos lodos do fundo, lembrou-lhe que, sob a magia da película que espelhava o espaço, o mais fundo da natureza não é inocente". Se a Natureza, praticamente um personagem no livro, concede-lhe um viver de rústico conforto, também reserva-lhe provações, testes. Apesar disso, é justa, pois se a todos os seres sob seu domínio está reservada uma quota de dor, não lida com o aleatório. Vendo uma ave atacada por um lince, Tunturi lembra: "não fora ela própria, um dia, presa de predadores que a tinham jogado em violência?".
Interessante lembrar da inexistência de diálogos em todo o curto livro - 78 páginas de texto. O autor recorre ao discurso indirecto nas poucas vezes em que isso mostrou-se necessário. Aliás, deve ser elogiado o tratamento dado por ele ao idioma. Fino, elegante, correcto e erudito, algo nem sempre visto hoje em dia.
Do estupro resulta a gravidez e outro paralelo com os factos da natureza: "O seu corpo participava, pois, do trabalho da terra semeada pelo acaso e os caprichos dos ventos. Também, nela se engendrara mais um ser semeado que crescia envolvido de inóspito ambiente, teimava em progredir para a luz, para o estranho destino de emergir para o mundo, como se uma vontade antiga o animasse" (página 39). A criança nasce e morre em seguida, morte que Tunturi, exausta pelo parto, não conseguiu impedir. Se não pediu para ela nascer, não desejou sua morte; se um dia viu-a como invasora de seu mundo muito bem delimitado, não se aliviou com o fim, e é com cuidado que se desfaz do cadáver. Bem adiante podemos ler a conclusão de suas reflexões: "A mulher como mediadora entre a indecifração da origem e o mistério da morte...".
Apresentação da personagem e do seu meio, estupro, gestação, nascimento, morte e restauração ocupam boa parte da narrativa. A Segunda experiência de Tunturi realiza-se com o caçador Tornio. Contudo com ele são atendidos apenas os imperativos da carne. Seu espírito prático contrasta com o contemplativo de Tunturi. Ela observa a Natureza buscando entender seus mistérios e ele limita-se a verificar as condições de uma caçada. Todavia, ele quem lhe apresenta um bem-vindo campo arqueológico com misteriosas inscrições rupestres.
Entre uma visita e outra de Tornio, surge aquele simplesmente designado "estrangeiro". Tunturi obtém dele, além do sexo, o companheirismo e a cumplicidade na apreciação do mundo dos quais tanto sentia falta. É uma companhia breve e ela sabe disso.
São intercaladas no texto treze símbolos, como substituindo a numeração ou nomeação de capítulos. São símbolos rúnicos (?) representando um mago, barcos, estrelas, um local sagrado, um lago, renas, uma deusa velha - ou mãe -, uma vítima, o lar, esquilos, peixes, um deus do céu (Ukko), e um caçador. Estes desenhos aparecem nesta sequência no livro por três vezes completas e uma incompleta. Como o autor preocupou-se em incluir um anexo identificando esta iconografia, primeiro pensei que a cada desenho correspondesse um capítulo. Em poucos casos isso realmente ocorre, mas ao final creio sejam apenas representações dos personagens e locais - caçador, lago, etc.
No livro, "Tunturi" é o nome de uma mulher. Geograficamente, o nome de elevações montanhosas ao norte da Finlândia. É também o nome popular de uma espécie de coruja. No primeiro "capítulo" uma frase fez-me enxergar de forma errónea algo certo. "A neve, a escuridão e o temível Inverno ainda tardavam" Uma jovem pensando na distância a separá-la da velhice? Sim, o texto aceita o recurso a tal metáfora. Contudo o texto imediato para tal ligação foi o livro do Eclesiastes, a representação da velhice no começo do capítulo doze. Tratou-se de mera coincidência. Devemos esquecer por um momento as mitologias greco-romana e judaico-cristã e abrir o espírito para novidades.
Suponho que a fonte primária de António Vieira para elaboração desta obra, onde recolheu dados e uma poética até incomum, tenha sido o Kalevala, rapsódia finlandesa organizada no século XIX por Elias Lönnrot e publicada no ano de 1.849 em segunda e definitiva edição. A epopeia é expressamente mencionada em nota à página 65. Aliás, coisa raríssima na bibliografia universal, as notas de rodapé - pouquíssimas -servem realmente para algo.
Sobre a Finlândia e o Kalevala
A Finlândia começou a ser anexada ao reino da Suécia em 1.155, pelo rei Erik, o Santo, estendendo-se este processo até 1.634, quando ocorreu a incorporação definitiva. O domínio sueco foi o mais longo e efectivo, tanto que o a língua sueca foi imposta e o finlandês relegado à plebe. No século XVIII foi a vez da Rússia iniciar a ocupação a partir do sul, tomando a Finlândia definitivamente para si em 1.808 e mantendo-a como grão-ducado relativamente autónomo. Em Guerra e Paz, Tolstói faz Napoleão dizer que deu a Finlândia ao czar Alexandre.
No século XIX ganharam corpo os movimentos de independência. O ar estava saturado de patriotismo, e uma questão fundamental para os libertadores era o emprego do idioma finlandês em substituição ao sueco. O médico e estudioso Elias Lönnrot encontrou ocasião em extremo propícia para unir seu amor ás letras aos ideais libertários. Aos vinte anos iniciou uma série de cinco viagens pelo interior do país, as chamadas "viagens de recolha", anotando os cantos populares encontrados, bem como extensos poemas narrativos. Só em uma vila, na quinta viagem, Lönnrot anotou 4.000 versos em dois dias. Organizou o material todo em saga única intitulada Kalevala, publicando-a em 1.835. Em 1.949 publicou uma nova versão totalmente reformulada e ampliada com os versos já alterados em relação aos originariamente recolhidos. Homero foi o modelo declarado de Lönnrot.
A repercussão do poema e sua adequação ao espírito da época foi imensa e alcançou até o compositor Jean Sibelius (1.865/1.957). A pouca divulgação de sua obra, além das questões estéticas, talvez deva-se à dificuldade em se compreendê-la sem o conhecimento da rapsódia, a qual está estreitamente ligada. Seu poema sinfónico Finlândia tornou-se um hino nacionalista, tendo ainda o Kalevala inspirado outras obras como a Sinfonia Kullervo, a Suíte Karelia, Quatro Lendas Para Orquestra, A Filha Pohjola e Seis Canções Para Vozes Masculinas.
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté,
10/4/2003
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