COLUNAS
Sexta-feira,
6/6/2003
Esse povo pobre
Urariano Mota
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Foi na manhã desse domingo que passou. Todo o bairro havia passado por um rigoroso racionamento dágua. Vale dizer, em bom português de consumidor, nas torneiras, até a véspera, não havia um só pingo dágua. No domingo, ao descobrir às sete da manhã que a torneira voltara a jorrar, cumprimentei o vizinho.
- Bom-dia. A água voltou!
E ele, aguando as flores em seu jardim:
- Bom-dia. Finalmente, não é?
- Finalmente... Acredito que essa falta dágua tende a piorar.
- É o desperdício, não é? Jogam água fora sem nenhuma medida.
- Verdade. A gente usa a água como se fosse um bem inesgotável.
- É esse povo pobre. Fazem ligação clandestina e mandam ver. Não pagam, não é? Jogam fora. Isso é com tudo, é com água, é com alimento, jogam no lixo. Esse povo pobre!...
O vizinho é um homem classe média, um senhor aposentado, com uma pensão digna, tudo indica. Ao se referir a “esse povo pobre”, ele me toma evidentemente como um semelhante de classe média, e os indícios residem na semelhança de nossas casas, na semelhança e largueza de nossos jardins, cujas flores, papoulas se irmanam nos muros, na fraternidade dos carros em nossas garagens. Essa gente pobre! ... Engasgado, calo-me e entro. O embaraço não vem da falsidade das semelhanças exteriores, que nem precisam de comprovação de renda. O embaraço que sinto não é nem mesmo o absurdo que atribui o desperdício de consumo a quem possui menos renda. Nem mesmo vem de uma solidariedade a esse povo pobre, tão dessemelhante de nós mesmos, esse povo pobre por quem nos curvamos como uma prova de amor cristão, ou de uma generosidade humanista. Não.
“Por que não tiram essa gente daqui?”, perguntava a amada de Baudelaire. A mágoa, o embaraço que me ficou não foi como em “Os Olhos dos Pobres”, quando o poeta francês se dizia enternecido, em razão do vinho e da música, que o deixavam envergonhado da boa mesa e das garrafas, maiores que a sua sede, enquanto lá fora, na calçada do café, artistas ambulantes tremiam com o frio. “Que gente insuportável!”, exclamava-lhe a sua namorada. “Você não poderia pedir ao dono do café que os afastasse daqui?”. Não. O embaraço não vinha de uma empatia.
Foi de manhã assim, em pleno sol e energia, que um menino e sua mãe não tinham dinheiro nem comida para a principal refeição do dia. Comer, para toda a gente, mas principalmente para os pobres, é razão fundamental de viver. E lhes faltava nesse dia a razão. Tudo, portanto. A casa onde moravam era pequena, um arremedo de casa, a área toda a de um quarto de casa decente, que recebera três divisões: sala, quarto, cozinha, três celulazinhas. O pai do menino passara dois dias sem voltar para casa, e assim procedia porque se entregara a nova paixão. Estava de novo amor. Talvez, quem sabe, porque Dona Maria, a mãe do menino, estivesse uma senhora gorda, a disputar em programas de auditório no rádio o prêmio de igualar o peso de uma cantora ainda mais gorda. E, verdade, tantas vezes conseguiu igualar o peso da estrela que terminou por receber um prêmio de consolação, um corte de fazenda para fazer um vestido, que nunca fez, porque o vendeu. Para quê vestido, se comer era mais importante?
Foi em manhã como a desse domingo. De repente, assim como a água que chega sem aviso, um portador trouxe para Dona Maria, como prova de que seu marido não fugia aos deveres do matrimônio, quando tudo era aflição, eis que um anjo lhe traz uma nota de duzentos cruzeiros. Sim, o menino lembra, uma cédula que trazia no verso o Grito do Ipiranga. E o que ele mais lembra: mal o portador se ausentou, Dona Maria puxou o filho para o quartinho-célula. E o que ele mais lembra, fundamente, como a sua mais íntima e guardada pele: Dona Maria pulava, rolava pela cama, e sua alegria era tamanha que chorava de felicidade. Nos olhos vermelhos, nas bochechas subitamente róseas, a alegria dela não se continha, pronta a gritar, a anunciar para a rua: - “Hoje temos almoço! Hoje temos galinha!”.
São coisas assim que humano nenhum esquece. Por mais barbas e fios brancos o menino receba da vida. Por mais que cresça, e ganhe emprego em bancos, e garatuje umas linhas, e compre casas cuja área vale 20, 30 vezes a área do quartinho onde viu aquela senhora gorda pular. Chorar de felicidade, ele sabe, houve uma vez. Quem viveu essa alegria jamais deixará de ser um menino descalço, sem camisa, de calção frouxo. Agarrado à sua mãe e a uma cédula de 200 cruzeiros.
Urariano Mota
Olinda,
6/6/2003
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