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Quarta-feira,
4/6/2003
As Nuvens e/ou um deus chamado dinheiro
Rennata Airoldi
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Quem vive melhor: o homem que se apropria diariamente de um pensamento justo ou aquele que prefere o injusto? Qual o real poder de ação da justiça? Pensando friamente à esse respeito, tudo depende apenas do ponto de vista. Na verdade, aquele que consegue convencer o maior número de pessoas, através de seu "marketing pessoal", conquista o mercado e acaba sendo o mais poderoso. Veja bem: nossas vidas são invadidas diariamente por produtos, pensamentos e mensagens subliminares. Consumo, disputa, ambição, dinheiro. Quem tem mais manda em quem tem menos.
Será que esse mecanismo social de sobreposição é algo recente? Não. A manipulação e o medo, a inferioridade e a humilhação são algumas das molas propulsoras de todo o sistema de organização social em que vivemos desde os primórdios. Isto determina quem é quem: o empregador e o empregado, o rico e o pobre. E, assim sendo, a relação que se estabelece é de total dependência. Para que o rico seja realmente rico, é necessária a existência do pobre. Para que exista um primeiro mundo dominante, é primordial existir um terceiro mundo avassalado. Simples como dois mais dois são quatro.
Entretanto, há algo de engraçado nisso. Depende de quem diz e de como é dito. E o que isso tudo tem a ver com o Teatro? As Nuvens e/ ou um deus chamado dinheiro é a nova peça do conhecido grupo de comediantes: "Parlapatões, Patifes e Paspalhões". A montagem é uma adaptação, assinada por Hugo Possolo, a partir de dois textos de Aristófanes: "As Nuvens" e "Um Deus Chamado Pluto". Curioso é que, já na antiga Grécia, berço do Teatro, discutia-se retórica, política e sociedade, as mesmas que serviriam de exemplo para nós nos dias de hoje. É triste constatar que, apesar do avanço tecnológico e material, o homem permanece o mesmo. Passam-se os séculos, as guerras, as pestes e a busca humana está sempre aparentemente estagnada.
Dinheiro! O grande bem e o grande mal da humanidade! O que se faz por ele? Em que as pessoas são capazes de acreditar para obter bens materiais e poder? Mais uma vez, a peça exige uma participação ativa do espectador em muitos momentos. A interatividade já é uma marca do grupo há muito tempo. O que é bem interessante, já que, com muita graça, os atores levantam importantes questões e sugerem um profundo questionamento da sociedade como um todo. Assim, a peça passa a ser não só engraçada, mas adquire um contexto mais abrangente. Desta vez, quem for assistir ao grupo não vai só rir muito e em diversos momentos, mas também terá que se manter alerta para acompanhar o discurso e o raciocínio dos personagens. Claro que, dentro de uma adaptação, tudo é permitido. Os paralelos e os parênteses constantes ajudam e complementam a história, contribuindo muito no entendimento global da trama.
Talvez seja essa a montagem mais erudita dos "Parlapatões". Isso, porém, não exclui as piadas e os grandes momentos lúdicos. Mesmo assim, há um certo caos permanente, ou uma vontade coletiva da piada a qualquer preço que, às vezes, chega a sufocar. Depois de algo muito engraçado, é difícil rir de novo de algo não tão engraçado. Porque talento e qualidade artística é o que não falta aos profissionais envolvidos. Um pouco mais de silêncio e ironia (ao invés do constante sarcasmo) poderia ter sido mais ousado. Ousado não no sentido de chocar, ou inovar , mas no sentido de trazer um outro colorido em determinados momentos.
De qualquer forma, é sem dúvida uma grande peça onde o conjunto é essencial. Todos usam o mesmo vocabulário, falam a mesma língua, têm a mesma postura diante do discurso que executam no decorrer do espetáculo. O que impressiona no trabalho do grupo é justamente essa soma. Os atores, o texto, o figurino, adereços, tudo contribui e existe porque é necessário. Não há sobras nesse bolo! É ótimo ver um Teatro coerente. Também, por isso, não consigo definir se o caos é exagero ou é decisivo; seja como for, há sempre algum ponto que pode ser apontado em qualquer manifestação artística.
No momento em que vivemos (guerra, domínio cultural, globalização), a escolha desse texto é um grande acerto . Ele é capaz de atingir desde o público mais exigente até aqueles que só assistem a peças mais populistas. Aqui está, então, um ponto determinante para o amadurecimento do trabalho dos "Parlapatões". Unir a forma ao conteúdo, sem perder as velhas raízes do comediante mais simples: o palhaço. Contudo, há muito que pensar à respeito da temática proposta. A indústria da imagem e da mentira, a massificação e o empobrecimento da cultura mundial são alguns dos pontos levantados. Mas é necessário estar lá, comparecer e tirar suas próprias conclusões. A peça é para todos, diversão e conteúdo em boa medida.
Para ir além
As Nuvens e/ou um deus chamado dinheiro fica em cartaz no Teatro Ruth Escobar, de quinta a sábado às 21hrs., e aos domingos às 19 hrs., até o final de agosto. O teatro fica na Rua dos Ingleses, nº 209 e o telefone para contato é o (011) 289-2358. Maiores informações sobre este e outros trabalhos do grupo através do site: www.parlapatoes.com.br.
Rennata Airoldi
São Paulo,
4/6/2003
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