Recentemente, toda a imprensa noticiou a espantosa descoberta: 99,4% dos genes do chimpanzé são semelhantes aos do homem. Da imprensa mais grave, que deseja nessa gravidade passar um ar sério, à imprensa mais popularesca, que se vê na alta reputação de imprensa popular, toda ela, grave ou vulgar, divulgou a nova sem restrição, mas sempre conforme o próprio estilo. Na de maior massa exibiram-se fotos de chimpanzé fêmea com lacinho vermelho na cabeça, na mais sisuda evitaram-se as fotos, mas os títulos foram bem sugestivos, como os do gênero, "Chimpanzés e Homens, tudo em comum". De comum mesmo, na imprensa de todo gênero, só o sensacionalismo, a leveza mistificadora, acompanhados do inseparável engodo. Pois uma e outra na ânsia de destacar os 99,4% passavam por cima, em vôo rápido, da palavra "semelhante" da divulgação original de Morris Goodman, da Academia Nacional de Ciências, dos Estados Unidos. Escreviam-na, a "semelhança", é certo, mas o corpo, o conjunto do noticiado, organizava o "semelhante" com o mesmo significado de idêntico.
Sensacionalismo à parte, pois é do espírito da média imprensa o sacudir o nosso torpor, para que nos suba à cabeça os melhores instintos de nossos ancestrais, sensacionalismo esquecido, seria bom uma viagem para o interior do espírito do chimpanzé da notícia. O que se divulgou sem discussão, repetido ao infinito, como um sucesso programado de hit parade, tentemos discutir agora.
O resumo da descoberta de Morris Goodman, publicado no site da Academia Nacional de Ciências, fala em "semelhanças" de 99,4% em 97 genes de homens e chimpanzés. Ora, o que esses números, 97 e 99,4% , querem mesmo dizer? Primeiro, que do total de genes humanos escolheram-se 97. Certamente, por serem os mais significativos da existência do homem, supomos. Segundo, que desses genes escolhidos, apenas 0,6% foram absolutamente diferentes dos genes do chimpanzé. Paremos aí. Alguém já se deu conta de que, a depender da área, da região escolhida, da amostra, os números percentuais variam? Por exemplo, e nos perdoem o exemplo grosseiro, se se comparam os números de dedos dessas espécies, homens e chimpanzés coincidem em 100%. No entanto, se se comparam a identidade, a semelhança íntima entre os dedos de ambas, a variação pode ir de 99, 98, 100 a 10, 5, 8, 3, 2 por cento. Isto porque, a esta altura, teríamos entrado no dificílimo reino de quantificar qualidades. (Vá lá, concedamos, por qualidades comprendemos "pistas orgânicas de evolução".) Neste caso, os critérios, ainda que mais objetivos e transparentes pareçam, guardam sempre um traço de subjetividade, histórica ou pessoal. Que critérios elegeríamos, para serem comparados nos dedos, a sua superfície, a sua cor, o desenho da polpa, a sua estrutura íntima, ou...., e qual desses critérios seria o caráter final, a natureza fundamental dos dedos? A depender disto, entre 0 e 100 a variação é infinita, ao gosto de quem o escolhe. Os números, quando não bem definidos, quando não referenciados com riqueza, em lugar do esclarecer, confundem. Pense-se, por exemplo, na quantidade de genes que um ser humano tem a mais que um rato. Não passa de 1%. Isto, 1%! O que isto afinal quer dizer? Que escapamos por um triz de nos mover nos esgotos? Ou que 300 genes a mais, num universo de 30.000, são extraordinariamente mais significativos que todos os demais 29.700?
O comunicado da Academia, quase diria, pela repercussão acrítica, o comando da Academia fala em comparação de amostras de regiões semelhantes do DNA entre homens e macacos. O que por "semelhantes" quer mesmo dizer? Assim fala o comando: "Comparamos 90 kb de seqüência do DNA de 97 genes humanos com seus correspondentes seqüenciados de chimpanzés, gorilas...". (Numa rápida olhada, vê-se o quanto é importante o número 90 para a pesquisa do biólogo: 90 kb, 97 genes, 99,4%, 98,4%.) Quer isto dizer que foram comparadas as regiões semelhantes de 97 genes? Sim, é isto. Mas, calma, a dificuldade ainda não vencemos. O que é, onde reside, a se supor um lugar preciso, físico, determinado, onde reside mesmo essa semelhança? O Comunicado, ou o Comando, fala em regiões que sofreram seleção natural. O que é, se bem compreendemos, uma localização bastante vaga, ou tão precisa quanto "uma certa casa no planeta Terra". Pois, reconheçamos, regiões que sofreram seleção natural são cada e todo e qualquer infinitésimo milímetro do organismo humano. Se não fomos criados de uma só vez por um sopro divino, cada ínfima parte do nosso ser é resultado de seleção, de luta, de sobrevivência da feliz reunião da sorte e do acaso.
Despercebida essa perigosa reflexão, que detém o avanço ligeiro do método discutível, fácil é passar para o passo seguinte, divulgado pelas melhores revistas, daquelas que ousam uma pose crítica. Assim se pronunciou esse instante raro de reflexão: "Com a chegada desse 'novo' parente..." (sintomático, as aspas caem sobre o novo, não sobre o parente ), mas não nos interrompamos: "Com a chegada desse 'novo' parente, o próximo passo seria descobrir o 0,6% de diferença genética que torna o Homo sapiens capaz de compor músicas, construir prédios e fazer pesquisas científicas". Ou esse primor de originalidade de outra revista: "O certo é que, graças a esse 0,6%, um ser humano - Beethoven - escreveu a Nona Sinfonia...". Percebam: são uns 0,6% muito revoltados, muito indignados contra os 99,4%! Se falassem, gritariam: "Nós somos o sal, que tempera e faz artimanhas em pesquisas científicas". Pois quando se levam em conta as diferenças cognitivas entre as espécies... das duas, uma: ou essa pesquisa diz absolutamente coisa nenhuma, ou os chimpanzés têm uma forma tão avançada de pensamento que nos seus 0,6% de diferença se escondem. Nessa região que nos ocultam, zombam de nós, os humanos (até prova em contrário), zombam de nós, eles, os chimpanzés, rindo de nossa pretensão em nivelá-los a um mesmo gênero. Ora, o caso pode não ser o de inclui-los no gênero Homo. Talvez fosse o caso de nos incluir no privilégio do gênero deles, os Pan-trogloditas.
Nos últimos tempos, temos sido cada vez mais assaltados por opiniões ligeiras, levianas, de cientistas que saem dos seus sapatos para emitir juízos universais. Já em O gene da burrice, e em Máquinas inteligentes, discutíamos o profundo ridículo desses vôos sem asas. Mas desta vez a descoberta é mais ardilosa. Em lugar da simples e pura opinião, como a do prêmio Nobel que falava em isolar o gene da burrice, como se pudesse aprisionar num laboratório o processo social, ou como a do físico que discorria sobre máquinas que imitassem o pensamento, o que, convenhamos, em se tratando do dele não seria lucrativo para a máquina, desta vez o cientista nos brande 90 kb de pesquisa e uma conclusão amparada em números, em frios e exteriores percentuais.
Se nessa pesquisa não há fraude, como algumas vezes tem acontecido na história da ciência, conforme chamava atenção artigo publicado em La Insígnia, o Sobre girafas, mariposas, corporativismo científico e anacronismos didáticos, de Isabel Rebelo, se nessa pesquisa há somente um equívoco, um desnorteio de rumos, então seria a hora de uma volta à clássica discussão do que faz do homem um humano. Ou, antes, para ficar nos limites marcados por essa descoberta: seria a hora de se perguntar o que é que faz do chimpanzé um humano. Para os cientistas envolvidos nessa pesquisa não há dúvida: "Os genes, os genes", seria a resposta. Já um romancista responderia: "A imaginação". E completaria: "Não a do chimpanzé, mas a de quem trabalha sobre ele". Ao que diria um produtor de televisão: "Sem dúvida, o lacinho vermelho na cabeça da fêmea da espécie. Isso dá uma graça especial à notícia". Já os noticiaristas não teriam nenhum receio em observar: "Os 99,4%. Que mais querem? Pois 99,4 não são quase 100? E se a esses 99,4 você liga cientistas, gene, macaco e pesquisa, é fatal: é pura ciência. Ao que completaria o seu editor, com água na boca: "Ciência ou não, o que importa? Esta é uma discussão sem sentido. O que vale é a versão, é a notícia. Chimpanzé e Homem, vizinhos, juntinhos. Um quadro desses é o que importa". Já o nosso adotado irmão dos 90 kb de pesquisa.... Com os seus compridíssimos braços, entre olhinhos buliçosos, nos advertiria: - Eu, se escrevesse estas linhas, não diria o que você disse. Contra genes e bananas não há argumentos.