A fragmentação dos dias atuais segue seu curso na mais recente realização do cinema brasileiro. Temos gosto por assim definir: um filme do cinema brasileiro. Pena que muitas vezes isso beire quase o preconceito. O velho ranço do cinema nacional que aos poucos vem se extinguindo. É bom que a produção atual contribua. A pergunta que pode vir é: O Homem que Copiava, de Jorge Furtado, poderia ser classificado como "mais que uma obra nacional"? E, afinal, as atuais produções encontraram alguma linguagem ou recorrência que as caracterize (como, por exemplo, aconteceu com as pornochanchadas)? As pessoas de má vontade poderiam ver este filme somente através da roupagem porto-alegrense presente na cinematografia de Furtado: seus tão esperados longas, depois do sucesso internacional do curta-metragem multipremiado Ilha das Flores, de 1989. A história, no entanto, de amor e de ambição, é universal e, desde já, considero pontos ganhos o fato de que a trama poderia ser situada em lugar parte do mundo.
Depois da espera - por demais demorada para os entusiastas do diretor e roteirista gaúcho, ansiosos para assistir à sua estréia em um longa cinematográfico após as suas constantes colaborações em especiais da Rede Globo (Agosto, A Invenção do Brasil, Os Normais, A Comédia da Vida Privada, etc), e a realização de outros curtas-metragens (Esta não é a sua vida, O Sanduíche...) -, quando Houve uma Vez dois Verões chegou às telas, a despretensão excessiva do mesmo só foi desculpada pelos comentários do próprio diretor (segundo ele, era assim que deveria ser). O que não impediu que se saísse bem, quando resolveu sacar uma câmera digital e filmar as aventuras e a iniciação sexual de dois moleques pelas praias gaúchas. Enfim, não há mais o que falar a respeito de Houve uma Vez dois Verões.
Corta para a pré-produção de O Homem que Copiava (este sim, o projeto maiúsculo do diretor, onde, do meio de uma densidade de informações, sabemos que haverá recursos de animação - malabarismos da Toscographics, estúdio de Allan Sieber, cartunista de Porto Alegre radicado no Rio de Janeiro). Cheiro de artifícios utilizados em Ilha das Flores? Talvez... Como em time que está ganhando não se mexe, realmente temos em O Homem que Copiava a demonstração do gosto de Jorge Furtado pelas colagens, que asseguram a mesma "roupagem pop" que remete ao curta (mas que aqui também se encaixam na trama do filme).
A primeira meia hora é desabonadora. Para uma apresentação que se estende demais, conhecemos o protagonista da história, André (Lázaro Ramos), um jovem operador de fotocopiadora em uma papelaria de um antigo bairro comercial da capital gaúcha. Nos presenteando com a modorra entediante de sua rotina (aprendemos como se opera uma máquina de cópias e como se convive com a monotonia de um trabalho assim ["Aqui você liga e desliga a máquina. Liga. Desliga. Liga. Desliga. Liga, desliga."]). Adentramos o universo do jovem que nos brinda com o convívio silencioso e monotemático de sua mãe; também seu universo fragmentado, composto por sua paixão pelos desenhos e por sua face voyeur, a espreitar a vizinha Sílvia (Leandra Leal). Tudo ocorre com uma lentidão que, se pode ser enaltecida para a criação do "clima", também pode ser extremamente enfadonha em um filme que se estenderá por mais de duas horas. (Bom é que, ao menos, a fita se redime em seguida.)
A paixão pela ilustração serve como justificativa para a colagem de desenhos animados que se inserem na obra sem muita necessidade (além daquela velha carinha "pop"). São instantes preciosos que acabam tornando ainda mais confuso o emaranhado de estilos do filme. Quando achamos que a vida dramaticamente chata de André, acrescida do abandono do pai (contado pelo protagonista), ditará o curso da história, nos surpreendemos com a sucessão de outros "climas" que se sobrepõem, gerando reviravoltas ágeis e boas sacadas em um roteiro que, apesar de minuciosamente desenvolvido, não conseguiu resistir a pequenas falhas. (Que, no fim, acabam passando ao largo, tal é a rapidez com que a trama ganha contornos de aventura policial. Pontos para a boa movimentação.)
A pretensão em retratar uma geração que se alimenta de fragmentos de suas diferentes influências é feliz, quando vemos que destes fragmentos é formada a vida de André. Com as sobras de erros de cópias (xérox), ele constrói personagens que são pedaços de figuras históricas. Sua posição como espectador em frente a televisão é a de quem zapeia, interessado somente no amontoado de imagens e não no significado das mesmas. Suas relações pessoais são tão fugazes quanto a rapidez com que precisa terminar as cópias, sem sobrar nenhum tempo para acabar a leitura do "Soneto Nº 12", de Shakespeare. E este é apenas um dos exemplos de como o diretor utilizou recursos diversos para traduzir essa inconstância de elementos, que, em uma colagem, talvez tracem um esboço mais ou menos acertado dos dias de hoje: Teixeirinha, Mozart, Creedence Clearwater Revival - até o emaranhado musical é utilizado para compor a rapidez e descontinuidade comportamental que envolvem o nosso tempo. (Fora a quantidade de outros recursos menos imperceptíveis à primeira vista, mas que, tal qual nos filmes do tipo cult, são enumerados em uma página do site da produtora gaúcha Casa de Cinema, em uma espécie de "trívia" que nos desafia a descobrir o calhamaço de referências.) Que isso gere confusão e falta de perspectivas na juventude é profundamente compreensível, e é disto também que nos fala o filme: o que temos são jovens sem profissão, sonhando com o dinheiro e o amor que podem trazer alguma mudança neste cenário estático.
Nestes jovens se incluem também Marinês, interpretada por Luana Piovani, uma coadjuvante de luxo que, juntamente com o personagem Cardoso, do ator Pedro Cardoso, comparece para dar uma leveza à obra que poderia soar por demais pesada, não fosse o tom de humor com que acabou envolvida. Pesada por que, em dado momento, estamos diante de jovens que têm a certeza de que tudo é justificável para o alcance de seus sonhos. E nisto se incluem assalto, falsificação e morte.
Traçando um vôo (que obviamente não se detém sobre a moralidade dos atos dos seus personagens), Jorge Furtado nos convida a uma investigação das ações humanas - motivadas por causas nobres ou não. Alguém aí gritou que é preciso ser muito inteligente para fazer isso? Talvez ter algum embasamento, como o gerado pelas citações que se somam no filme. Georges Perec, Xavier de Maistre, Daniel Boorstin... Todos estão à serviço da obra, para garantir a "leitura" que se pretende. Não, não é preciso ser um erudito para se chegar a uma conclusão. São apenas elementos envolvidos para tornar mais espessa a massa fragmentada que forma o universo que nos impulsiona a atos quase que injustificáveis.
No final das contas, o que nos resta? Ser salvos pelo amor que pode estar escondido na outra ponta do binóculo? Porque, ainda que ao término das perversidades que são cometidas em nome do amor, é sobre o amor que trata o filme. Sobre a descomunal necessidade que faz um jovem falsificar dinheiro, roubar e entrar em vias de morte para que as coisas fujam do seu rumo natural e, então, fragmentos de felicidade possam se fazer presentes. Mesmo que pareça ser para justificar cada ato - e devemos, sim, ter em conta a seriedade e gravidade dos seus atos -, o discurso que permeia as cenas é recheado de amabilidade - pode ser uma amabilidade quase esquizofrênica (instintiva, fria, desesperada, sexual). Mas continuam a ser tentativas de dar significado para os questionamentos que se colam à nossa mente e que querem nos afundar na confusão cotidiana.
Uma pena este filme do Jorge, que são dois. Um, do início até o assalto ao carro forte, bom filme, outro daí em diante.O que Jorge nos entrega no segundo filme é aquele presente que vem dentro de uma caixa, que contém caixas menores, até a última, mínima. Quem presenteia desta forma pode divertir-se muito, mas para o presenteado cada caixa é uma chateação e uma convocação a desempenhar o papel coadjuvante do palhaço que leva as bordoadas, os tombos, as esguichadas d’água.Fosse há vinte anos, em vez da Piovani poderia ser a Xuxa, a quem ela copia, em vez do Cardoso poderia ser o Didi. Claro, lá os heróis não matavam os amigos por chamá-los de cagões e por dinheiro, não matavam o padrasto por espiar na fechadura e por dinheiro. Mas as artes têm que evoluir conforme os costumes, não é mesmo? Passados vinte anos ficamos mais sofisticados, em vez de trapalhões, somos normais.Jorge desta vez não foi inovador, copiou dos norte- americanos suas marcas registradas: roube um banco, mate um amigo e o sogro e vá ser feliz no Rio de Janeiro. Atualmente filme ianque / bul, quando consegue ter alguma coisa que preste, e nove entre dez não conseguem, é no primeiro tempo. É na apresentação do conflito, na circunstancialização, na construção da trama que eles conseguem ser bons. Os desenlaces, as soluções apresentadas, são de uma mesmice estúpida e intragável para quem não é viciado em dinheiro e violência, sexo e violência, sordidez e violência e violência e violência. Esqueci alguma coisa? Deixo a receita: olhe filmes ianque / buls e este Hq C até a metade e vá embora imaginando os desdobramentos das situações propostas antes que comece o tiroteio, os roubos e, ainda que por puro besteirol, os assassinatos e traições, ah, e as explicações. Em suma, saia antes da imbecilização de todos os personagens e do enredo, ao que, por ficar até o final, reajo em legítima defesa. Felizmente houve aquele primeiro tempo em que o Hq C jogou bem. Vi personificadas ali boas sínteses, ora leves e frugais, ora densas e emotivas, de jovens que conheço e as características de uma boa comédia de costumes. A primeira parte do Hq C vale o ingresso e compensa o que passamos depois. Mas para que arriscar? Vá assistir ! E saia na metade. É lucro 100% garantido.