Ano passado, nas eleições municipais para a prefeitura de Curitiba, ousei dizer que votaria no candidato do PFL. Não por uma ligação com a linha do partido ou por qualquer tipo de interesse financeiro, mas simplesmente porque achava o candidato do PT uma ameba ambulante, um completo incapacitado para gerenciar uma cidade do tamanho de Curitiba. Fui vaiado, xingado, expurgado do convívio dos meus (esta última parte é mentira, mas a expressão dá um belo tom dramático, não?). Por coincidência, neste período entrevistei o auto-intitulado filósofo Olavo de Carvalho, para o jornal em que trabalho. Tinha já travado algumas conversas com Olavo de Carvalho via email, lia seus textos na internet havia pouco tempo e achei que era uma pauta interessante. Para minha maior infelicidade, o PFL usou a entrevista em um de seus jornais de campanha, sem minha autorização (mais tarde vim a saber que não precisavam dela). Novamente: fui vaiado, xingado, expurgado do convívio dos meus.
Um ano antes, em 1998, um grupo de sem-terra havia acampado em frente ao Palácio Iguaçu, sede do governo paranaense. Mandaram-me cobrir a invasão e eu escrevi um dos mais belos textos de minha lavra, na minha nada modesta opinião. Não havia nada de essencialmente jornalístico naquele texto. Tampouco havia uma só gota de ideologia; procurava este romântico cronista contar como estavam acampados os sem-terra, quem eram e como se portavam na presença de um estranho que não se identificava como repórter. Publicado o artigo, a esquerda novamente pegou no meu pé (vaiado, xingado, expurgado do convívio dos meus), simplesmente porque dizia que aqueles seres humanos, em sua patente miséria e em sua quietude na manhã gelada de Curitiba, em nada lembravam os bravos e bárbaros homens que, de foice em riste, desafiavam a polícia em cenas vistas e revistas na televisão.
A esta altura do texto convém explicar que a denominação esquerda e direita há muito tempo vem sendo empregada erradamente. Ou melhor, o termo ao longo de dois séculos, vulgarizou-se a tal modo que perde seu sentido tradicional, oriundo da Revolução Francesa. A saber: durante a Revolução (não sei exatamente em qual período e estou sem tempo para pesquisar. Me desculpem a inexatidão, pois), sentaram-se à mesa de negociação nobres e plebeus. À esquerda ficaram os plebeus, que queriam reformas profundas. À direita ficaram os nobres, que queriam a manutenção de seus ancestrais privilégios. Por algum desvio que eu identifico como religioso, possivelmente relacionado com a figura de Cristo numa mesa, com apóstolos de um lado e de outro, a esquerda ficou sendo sinônimo de pobres e, por conseguinte, bonzinhos ("é mais fácil uma camelo..."); já a direita ficou sendo sinônimo de ricos mauzinhos. É bom explicar, ainda, que entre a esquerda original, por assim dizer, o que menos havia eram pobres. Os plebeus eram, em sua maioria, burgueses sem título.
No século que passou (ainda acho estranho escrever isso, mas), o termo ganhou outra conotação. Esquerda ficou sendo sinônimo de comunista; direta, de capitalista. Santa ignorância, Batman.
Se retomarmos o sentido original dos termos, veremos que eles podem ser traduzidos em sinônimos muito mais eficazes a esta hora da noite: conservadores e reformistas. E, por este aspecto - veja só quanta confusão! - nada mais reformista do que ser conservador.
Sim, porque vivemos num mundo em que é essencial transmutar-se o tempo todo. Hoje eu sou homem, amanhã, só deus sabe. Hoje eu te amo, amanhã te odeio. A manutenção de um status quo, qualquer um, é vista com maus olhos pela sociedade. Não é à toa, por exemplo, que os manuais do bom executivo dizem que você não pode (não pode!, não pode!, não pode!) ficar mais de cinco anos na mesma empresa. Casado por vinte anos? Só se estiver louco. Esta é a era das transformações e você tem de agir segundo sua era, bicho!
E o que a sua era, de contestação inata, lhe diz? Para amar o Caetano Veloso (coisa que você nasce aprendendo), para não ter preconceitos, para transar antes dos 13 anos e para experimentar de tudo entre quatro paredes, para votar no PT, claro, para entrar no movimento estudantil, para jamais aceitar emprego num banco, para ler Sartre, para usar calça rasgada com camiseta rasgada, para escutar rock misturado com música eletrônica comendo um hambúrguer.
Se você chegou até aqui e está espumando de raiva, sugiro que pare e olhe ao seu redor e veja se pelo menos um dos que te cercam não é assim, escrito, lavado e escarrado.
Meu argumento, neste sofisma, é que a direita virou esquerda. Nada mais reformista, revolucionário, prafrentex, do que ser conservador. Escutar Beethoven ou Carmen, de Bizet (como faço agora, por exemplo). Ir a um alfaiate (alguém aí ainda sabe o que é um alfaiate?). Ler A República, de Platão. A Poética, de Aristóteles. Não precisa votar no PFL, não; mas também não precisa sentir esta ojeriza coletiva e burra com relação a nomes como Roberto Campos, por exemplo. Taí uma coisa extremamente revolucionária: saber admirar os opostos. Ler os clássicos. Sentir-se à vontade para não transar, ou só transar com uma (um) parceira. Ser fiel - quer coisa mais revolucionária?! Não precisar gritar Fora FHC! Nem precisar fazer carteirinha da UNE para encher o cu do movimento estudantil de dinheiro. Sair da faculdade e querer um emprego decente. Tomar uísque 12 anos (como o que tomo agora. Old Parr).
Citei os exemplos acima para que se perceba o quanto estas pessoas que se dizem de esquerda são conservadoras em suas atitudes. Todas elas reclamando de uma provável "ditatura branca", não aceitavam que este cronista escrevesse uma linha a respeito de um nome que discordassem de suas idéias. Também não permitiam que se revelasse os sem-terra sem as linhas vermelhas que lhes escondem a vergonha da propaganda maoísta.
O cúmulo de ser revolucionário hoje em dia: permitir-se a pluralidade de idéias. Coisa que ninguém, ninguém mesmo, com uma camiseta do Che Guevara, vestido em saias compridas ou calça boca-de-sino, escutando rock ou Caetano Veloso, com Marx debaixo de um braço, vai conseguir entender jamais. Porque são "direita" demais. Se é que me faço entendido, neste (não tão) humilde (assim) sofisma.
Só concordo com uma parte. É realmente sofístico o raciocínio que tenta induzir nos leitores a ideia de que, hoje, não há nada mais revolucionário do que ser conservador. Só pra ficar no exemplo tão profícuo da revolução francesa, o que a "direita" buscava conservar era um sistema social e a "esquerda" ansiava por alterar. Nosso sistema social, excetuando-se TALVEZ o wellfare state e o comunismo muito mal implantado mundo afora, não sofreu grandes alterações desde que a burguesia comprou o poder político, e é precisamente isto o que se busca revolucionar hoje, não o consumo de bebidas alheias à nossa realidade histórica ou a leitura e a oitiva (muito proveitosa) de clássicos...