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Segunda-feira,
14/7/2003
Um brasileiro no Uzbequistão (II)
Arcano9
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Arquitetura soviética e islâmica no centro velho de Tashkent
Tashkent, 01.06
Estou cansado. Dormi das 3h30 ou mais até às 10h30, depois tomei café e voltei a tentar dormir até às 12h, com duas moscas muito chatas pousando toda hora na minha cara. Acordei de vez, tomei banho e me livrei da minha barba antes de matar os insetos.
Para minha alegria, Muhammad Sharif, meu tradutor da primeira vez em que estive em Tashkent, me recebeu muito bem. Nem tive que ligar, ele me encontrou. "Não foi difícil, a maioria dos turistas fica nesse hotel", disse, rindo. Eu lhe falei que havia trazido algumas suculentas cervejas Guinness para ele, e Sharif respondeu que estava perto do hotel e que poderíamos nos ver em 15 minutos. O sol estava forte lá fora.
O tempo não havia mudado meu amigo e seu inglês perfeito. Fomos juntos à sua casa, a casa onde fiquei da primeira vez, onde junto com sua esposa e seus filhos acompanhamos, atônitos, os atentados contra as torres gêmeas em Nova York (por uma absurda coincidência, eu estava no Uzbequistão no 11 de setembro). A esposa rapidamente nos trouxe chá e frutas secas, o acompanhamento perfeito para um bate-papo à sombra da árvore em seu quintal. Sharif me disse que, desde nosso último encontro, havia abandonado um emprego chato na agência de notícias estatal uzbeque, em que era constantemente vigiado para falar bem do governo. Depois, dedicou-se a alguns trabalhos autônomos (com um repórter da revista Time) e, no momento, estava trabalhando numa agência ambiental ligada à ONU, que monitora a castigada natureza no país. "Mas eu gostaria de ir para a Inglaterra", disse, com um sorriso hesitante e brilho nos olhos. "Da última vez que eu vivi lá, trabalhava para a BBC, mas minha esposa me pediu para voltarmos, porque ela queria estar perto de sua família. Hoje, ela mudou de idéia, porque percebeu como eu estou infeliz." Disse que esperava o resultado de um concurso para a vaga de produtor no serviço mundial da BBC. "É muito difícil que eu seja aprovado; a esposa de um produtor que eu conheço está concorrendo, e ele vai tentar convencer os chefes a contratá-la."
Voltamos ao carro e fomos nos encontrar com Hairula, um uzbeque de origem tadjique com cara de russo, que trabalha em Londres no serviço de rádio em uzbeque da BBC, transmitindo notícias para seu país. Ele já era conhecido meu e ficou feliz ao me ver em seu país. Ele também havia acabado de chegar à cidade e foi passear conosco. Por incrível que pareça, pedi a Sharif que me levasse a um lugar que ele, que mora na cidade há décadas, não conhecia. Precisei mostrar-lhe o local em um mapa, e todos nós precisamos de faro aguçado para encontrá-lo, de tão escondido que era.
O que eu queria ver eram três mausoléus de estudiosos muçulmanos, sendo o mais importante dele Yunus Khan. Os mausoléus, hoje, ficam dentro do perímetro de uma universidade islâmica da cidade. Sharif teve que pedir ao guarda de plantão, em uzbeque, que nos deixasse entrar. Depois, Hairula me falou que, mesmo para os habitantes de Tashkent, o local que estávamos prestes a visitar era muito secreto.
Os mausoléus são bonitos. Eles datam do século XV, tendo sido restaurados no século XIX. O principal, o de Yunus Khan, tem uma linda cúpula azul, a cúpula azul que caracterizou a arquitetura dos tempos de Tamerlão e que, dias depois, me deixariam hipnotizado em Bukhara e Samarkand. Yunus Khan em si não é muito conhecido, mas ele ganha peso por causa de seu ilustre neto: Babur, que um dia iria conquistar a Índia. Outro mausoléu, o Kandergach Bi, tem um teto de metal com formas geométricas, e lá no alto uma ponta em forma de meia lua, em que um pássaro sapeca foi pousar. O interior dos mausoléus é fresco, mesmo com o sol intenso devorando a poeira lá fora. Em um deles, encontramos um estudante da universidade, quieto e devoto, num canto. Assim que chegamos, nos sentamos frente a ele em uns bancos ao lado da tumba de um dos sábios. Vestia calça bege e camisa social branca, muito formal. Com os olhos escuros e estáticos, ficou nos observando, como se fossemos não apenas estranhos, mas completos alienígenas. As pessoas têm medo do que é diferente. Mas, naquele lugar, não senti medo de nosso acompanhante desconfiado. Permaneci em silêncio e, pouco depois, percebi que ele já nos respeitava mais. Voltou seus olhos para o chão, reverenciando o invisível.
O mais divertido da minha visita aos mausoléus foi sem dúvida o que encontramos depois, quando fomos pegar o carro para ir embora, em frente à entrada principal da universidade: um casal de adolescentes de mais ou menos 16 anos - ela vestida com calça de moleton rosa e camiseta branca, ele com calça jeans e camisa pólo - trocavam carícias apaixonadas dentro de um Lada com as portas abertas. A sombra fresca apaziguava um pouco as chamas de seus hormônios, mas ainda assim a luxúria era bastante inconcebível em frente a um centro de estudos islâmicos. Paradoxos de um país muçulmano ex-comunista.
Depois, fomos comer frango. Um frango sem nada de mais, que meus amigos me disseram que era à moda uzbeque. O repasto deixou minhas mãos pegajosas, e elas ainda estão, por mais que eu as tenha lavado. Para fazer a digestão, pagamos a conta e fomos caminhar pela Broadway.
* * *
"I looked with awe at Tashkent (...) I felt surrounded by the sweep and grandeur of a true capital. It was a cosmopolis of over two million people, the industrial giant of Central Asia. (...) Its citizens had lost the look of intruding peasantry, and seemed almost urbane. Nearly forty per cent were Russian "
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
O Uzbequistão, assim como o poder de Tashkent, são obra russa. O país, para início de conversa, foi criado como uma república autônoma depois que os russos conquistaram toda a região, já no século XX. Durante o século XIX, o território do país estava dividido em três pequenos reinos, governados cada um por um khan (uma espécie de Rei): o khanato de Khiva, o khanato de Bukhara e o khanato de Kokand. Tashkent pertencia ao terceiro, mas foi tomado pelos russos em 1865. Rapidamente o local foi atraindo imigrantes russos, especialmente depois da chegada à cidade da ferrovia transcaspiana, em 1889. Ainda durante o czarismo, Tashkent se tornou a principal base russa na região, de onde partiam as missões para conquistar o restante do território. Depois da revolução russa, em 1918, Tashkent se tornou a capital da República Socialista Soviética do Tuquestão. Depois, quando essa república foi dividida, o status de capital da nova República Socialista Soviética do Uzbequistão ficou com Samarkand. Só em 1930, Tashkent reconquistou sua posição de destaque.
Até hoje, em que pese uma forte campanha de estímulo à língua e cultura tradicionais uzbeques e um forte movimento de saída dos russos que vivam no país, a maioria dos habitantes de Tashkent ainda têm origem russa. Essa verdade é clara quando você caminha pelo centro da cidade. A Broadway é uma avenida curta, bem no centro, onde ficam dezenas de pequenas bancas de camelôs vendendo artesanato e bugigangas, lanchonetes com mesinhas vendendo churrasco em espetinhos, sorveterias, bares, lojas de cds e fitas cassete pirateados, músicos de rua. Broadway, é claro, é um apelido irônico, que mostra a que país o Uzbequistão aspira se parecer. Adotou-se Broadway e não Arbat, o que seria de se esperar. A Arbat é uma rua em Moscou que é exatamente assim, o mesmo espírito. Talvez a maior diferença é que, lá na Arbat, há um McDonald's. A poderosa rede de restaurantes fast food, até o momento, não abriu nenhuma filial no Uzbequistão. Estranho estar num país sem McDonald's. Estranho mesmo.
Todavia, a maior diferença de Tashkent para Moscou ou Kiev é que, de fato, aqui está muito presente o elemento centro-asiático. Na praça Tamerlão, no centro da cidade, você vê muitas loirinhas falando russo, mas também charmosas balzaqueanas com olhos puxados e vestidos coloridos, com suas crianças correndo descontroladas ao redor delas. Outras mulheres surgem no nosso caminho com os vestidos e véus na cabeça, cobrindo completamente as orelhas e a nuca, com a pele bem curtida pelo sol. Encontramos uma e Hairula me disse que eram do Vale de Fergana - o reduto dos mais devotos muçulmanos no país. Depois, encontramos um casal, ao qual Hairula se dirigiu falando em russo. Eram tártaros, me disse ele depois. Espero, viajando para o interior, ver mais dessa beleza humana.
A cidade, em si, tem imensas avenidas, imensos prédios e imensas estátuas. Tudo soviético. Na praça Tamerlão, o local onde ficava a estátua de Marx foi substituída por uma estátua do conquistador que, hoje, é o mais venerado herói do país. Tamerlão gigante, em pose gloriosa sobre um cavalo musculoso, igualmente intimidador. Estátua de metal sólido, frio, rijo. Não longe dali, uma outra estátua de igual gigantismo ituano conta a história de um mito soviético tatuado no inconsciente desta gente. O memorial mostra um ferreiro chamado Sham Akhmudov e sua esposa que, juntos, teriam adotado 15 órfãos durante a Segunda Guerra Mundial. Para lá a noroeste, além de um canal barrento, fica a parte uzbeque, separada, distante e próxima. O mercado Tchorsu e a cidade velha. Sem estátuas. Amanhã vou lá.
Agora estou aqui no hotel assistindo TV. O canal 1TV é exatamente o que vi em 11 de setembro de 2001. Transmitiu, primeiro, um noticiário em uzbeque, e agora outro em russo. Como em 2001, o conteúdo do telejornal é o mesmo e se chama Islam Karímov. O todo-poderoso líder uzbeque teve um encontro com o presidente chinês Hu Jintao e presidentes de outras nações centro-asiáticas durante as comemorações de 300 anos de São Petersburgo. Não só a reportagem incluiu, na íntegra, o discurso que Karímov fez durante as festividades, mas também uma entrevista imensa que ele concedeu com exclusividade para a emissora. Pelo que eu pude entender, ele está falando de terrorismo. A tal reportagem começou bem antes de eu escrever e parece bem longe de acabar. Está no ar há uns 20 minutos, no mínimo.
O pobre coitado do editor de imagens já ficou sem fórmulas faz tempo para tornar a transmissão mais atraente. Parece um discurso em rede nacional transvestido de telejornalismo. E o que dizer dos jornalistas que aparecem na reportagem, acompanhando a entrevista? Parecem estudantes esforçados da quinta série, com seus óculos e caderninhos, ouvindo e aprendendo com o formidável professor, escrevendo tudo tintim por tintim.
Neste país, ninguém tem insônia.
(Continua aqui)
Arcano9
Miami,
14/7/2003
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