COLUNAS
Quarta-feira,
9/7/2003
O Telhado de Vidro
Alessandro Silva
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"Pelas Praias do Mundo" é um belíssimo livro de memórias escrito por aquele poeta chileno cujo encanto maior é extrair das coisas simples da vida colossos de ternura.
O estilo impressionista nos faz lembrar de Proust; naturalmente sem a sofisticação cartesiana deste, também num ritmo menos ansioso e mais simples. A arte de Neruda satisfaz-se com aquela alegria percebida nos almoços sobre a relva imortalizados por Renoir.
Impressionista ainda porque a prosa se desenvolve ao sabor de uma tênue e semi-inconsciente associação de palavras; com efeito, a ordem temática advém do tom, muito menos de um encadeamento de idéias. Nem seria para menos: estamos falando de alguém vasto como um continente.
Muito semelhante à sua obra em versos, os primeiros capítulos nos conduzem à uma sagração, à uma orgia quase ininterrupta.
É também Neruda o primeiro a nos ensinar geografia e história de um modo agradável.
Em nossa mortal escala de valores deveria significar prestígio presentear a amada com "Pelas Praias do Mundo" depois de nosso gozo pessoal.
Recorda-nos "O Último Suspiro" de Buñuel. Sabe do que se trata quem leu a biografia do cineasta espanhol. Igualmente um mundo de histórias exóticas em torno das figuras de Dali, Garcia Lorca, Rafael Alberti, Pablo Picasso, etc.; um mundo estranho de arte e de exacerbação dos sentidos, de loucuras geniais amalgama-se em nossa consciência sob a égide de uma idade conhecida por estar associada com o ouro.
Em verdade, o que Neruda nos tem a dizer atravessa a linguagem dos murmúrios. Estamos recebendo a chuva sob um telhado de vidro.
Não será impossível que uma alegria sem causa nos toque silenciosamente; como se o velho Walt tivesse se aproximado, sagrando à nossa humilde respiração.
Neruda é um sistema em cataratas silábicas cujo objetivo é nos tornar grandes amantes.
Está velada a menção a seu nome no conhecido "Aleph" de Borges; mas a ironia a certo poeta que versejava por metro quadrado, a um estilo geograficamente prolixo, antes, quando se trata de Neruda, constitui-se em elogio.
Também não há possibilidade de um relacionamento ser melhor sucedido do que o de Neruda com o mar.
A satisfação sensitiva proveniente encontra paralelo na arte visual de Dali; a associação do poeta com o surrealismo decorre de seus poderes de bruxo, de revelar o mistério mais inesperado do comum. O desconhecido fica palpável; apreciamos o que não conhecemos; pela tensão criativa, somos capazes de sentir saudades do nunca antes contemplado.
Se a ligação crítica a ser estabelecida é de Neruda com o velho Walt Whitman, não menor é a dívida do poeta chileno com os franceses, malditos e não malditos. Em sua admiração cabiam Hugo, Rimbaud e Baudelaire. Desse último, guardava o retrato sobre a escrivaninha em sua residência de Isla Negra; temos motivos mais que abundantes para suspeitar que aquele rosto torturado sobre sua escrivaninha não menor influência, não menor angústia, lhe infundiu do que o expoente máximo da poesia norte-americana.
Durante a leitura, é possível que a devoção pátria do vate à sua terra venha a nos incomodar. Ele quer nos contar das raízes de seu Estado e de sua cidade natal e do que se pôde fazer para rastrear-lhe as origens. Antes contudo que Araucania ( nome original de seu país ) nos transporte ao torpor de um guia de ruas, as anedotas acerca de fatos políticos nos devolvem o gozo elementar. E mais de uma vez a pungência verbal é substituída, como grande calmaria, por esse terno humor do poeta diante dos costumes estrangeiros ( suas viagens compreendem desde o México até a Argentina, da Espanha até a Hungria, da Rússia passando pela China, Brimânia e Ceilão até a Ìndia ).
O gosto pelo exótico alia Neruda a uma porção de outros artistas. Wallace Stevens, Gauguin, Picasso, Paul Celan, Matisse, Delacroix... em suma a muitos e muitos outros que igualmente compartilham de um "temperamento francês".
Seu poder de caracterização não é menos devedor ao que lhe ensinaram os franceses:
"Seu corpo ( de um certo chinês ) parece ser tão usado quanto o cabo de um martelo".
"Victor Hugo é um polvo tentacular e polimorfo da poesia".
No capítulo "Contribuição do domínio do trajes" ( p. 165 ) há um narrador irmão espiritual de Marcel Proust.
E na verdade, se pormos de lado a teoria freudiana que nos ensina a procurar muito mais no que está escondido nas entrelinhas, somos capazes de acreditar na devoção pura de um poeta à causa operária ( ao mineiro, ao carvoeiro, à sua dor ).
Mas há pistas para especular, e muitas, acerca de um homem mais mortal. Assim Neruda se refere a D.H. Lawrence:
"As obras de Lawrence me impressionaram pela sua aproximação poética e certo magnetismo vital dirigido às relações escondidas entre os seres. Mas logo percebi que, apesar de seu gênio, era frustrado, como tantos grandes escritores ingleses, pelo seu prurido pedagógico. D.H. Lawrence criara uma espécie de cátedra de educação sexual que tinha pouco a ver com a nossa espontânea aprendizagem da vida e do amor".
É suficiente especular porque um tal juízo não foi estendido a alguém como Brecht, conhecido pelo poeta e igualmente "artista sistemático". Na verdade há margem até mesmo para indagar de sua conduta política, não fosse o elevado grau de desprendimento, de pureza, que granjeou sua obra.
Na verdade Neruda usou muito mais do que foi usado pela política. Nunca foi integralmente seduzido por seu canto, isso porque tinha sempre à vista a vida e as necessidades do povo, o que não acontece com o político comum, que quase sempre é uma besta neurótica engajada no nada. A leveza de Neruda em relação à política é percebida por exemplo na narração de sua passagem pelo Brasil. Ele diz:
"O deputado Marcio me abre todas as portas. Mas Brasília não tem portas: é um espaço claro, extensão mental, claridade construída. Nas áreas comuns as crianças pululam, seus palácios dão dignidade inédita às instituições. O arquiteto Ítalo, companheiro de Niemeyer, já tem dez anos de Brasília e nos mostra o novo Itamaraty, o Congresso, o Teatro por concluir, a Catedral, rosa férrea que no alto abre grandes pétalas para o infinito.
"Brasília, isolada em seu milagre humano, no meio do espaço brasileiro, é como uma imposição da suprema vontade criadora do homem. Daqui nos sentimos dignos de voar aos planetas. Niemeyer é o ponto final de uma parábola que começa em Leonardo: a utilidade do pensamento construtivo; a satisfação espacial da inteligência".
Que idílio! Podemos arrumar as malas: rumo à Brasília!
É extremamente salutar para a manutenção da integridade artística deixar de fora a rapinagem política; destituir-se dessa ansiedade maliciosa que é uma constante para a ruína do talento. ( Aonde não teria chegado Auden se não o limitasse em grande parte suas idéias políticas, etc. Hoje vemos com mais clareza: W. B. Yeats, que em parte foi seu judas, fica; Auden permanece como um poeta menor. )
Neruda tem leveza. Não era para menos num epicurista não confesso. Sabia usar com plenitude a gama das sensações.
Epicurista: de "Pelas Praias do Mundo" é possível extrair-se: uma manual de botânica, um tratado dos costumes dos povos e um guia gastronômico.
Desse livro, o que pode desagradar é a necessidade conclusiva de o vate explicar-se, a si e sua arte. Ele faz referência ao "prosaísmo" apontado pela crítica em "Canto Geral". Defende-se, afirmando que tratou de ser o cronista de sua época. Mas inevitavelmente delata certa insegurança. Ao pé em que chegou devia olhar para trás vendo seus versos como "irrevogáveis pilares de ternura". Indo além, olhá-los como coisas, friamente, tal qual o fabricante diante do féretro.
Explicar uma tal obra é sacrilégio. Mas, se assim o quis Neruda, deixemos o leitor com o conselho dirigido a todo poeta incipiente:
"O poeta que não for realista vive morto. Mas o poeta que for apenas realista também vive morto. O poeta que for apenas irracional será entendido apenas por sj mesmo e por sua amada, e isso é um bocado triste. O poeta que for apenas um racionalista será entendido até pelos asnos, e isto é também absolutamente triste."
Para ir além
Alessandro Silva
São Paulo,
9/7/2003
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