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Terça-feira,
22/7/2003
A aventura de educar os filhos
Alessandro Garcia
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Atualmente, não é a ignorância a principal responsável pela dúvida sobre de que forma se deve realizar determinada ação ou proceder em determinado caso. A abundância de conhecimentos é o que produz mais perplexidade, maiores qüestionamentos e desorientação sobre um enorme leque de possibilidades que se abre. Nisto, se inclui com certeza, a paternidade e a forma de se educar os filhos, uma "arte" que nunca primou pela facilidade, mas que, nos dias atuais, encontra ainda mais empecilhos frente às técnicas diversas, e especialistas das mais diferentes correntes a afirmar o que se deve e o que não se deve ser feito. O que se deve ensinar aos filhos é o título do livro e a pergunta que a filósofa espanhola Victoria Camps propõe para tornar ainda mais saudável tal debate, e tentar enriquecer todo e qualquer meio onde a questão da educação dos filhos se faz presente.
Desde o começo, vê-se que a autora não pretende dar uma resposta definitiva sobre o tema. Já no prólogo esclarece não ser especialista em psicologia, nem em pedagogia ou qualquer outra disciplina que poderia ser mais apropriada para tratar sobre o tema. Utiliza-se, então, do que conhece: a filosofia e a experiência de ser mãe de três filhos (para ela, a tarefa de educar uma criança possui muito mais segredos e meandros do que os que poderiam ser transcritos em forma de um manual de instruções). É para a vida que um filho é criado. Não há, portanto, regras rígidas e pré-estabelecidas para se obter êxito na boa educação de uma criança. Da mesma maneira que fatalmente uma mulher chega a ser mãe sem ter se preparado fundamentalmente para sê-lo, as receitas também de nada serviriam para tentar moldar os descendentes de quem se encarrega desta louca e maravilhosa tarefa.
Se não há regras, no entanto, fica a cargo do instinto (ou, quem sabe, de um certo "talento natural") a educação de um filho? Bem, se não há receita, para que serve escrever (e mesmo ler) um livro cujo título se propõe à elucidação? E, por favor, não se culpe uma possível tradução oportunista: o título original do livro aparece com a mesma tentadora frase em resposta às dúvidas de qualquer pai ou mãe (Qué hay que enseñar a Los Hijos).
Victoria Camps, como boa filósofa que mostra ser, nada mais faz do que contribuir - e de maneira bem significativa - para as questões que invariavelmente se levantam nestas horas. E sua contribuição se dá de uma maneira prática e direta. Se é verdade que a abundância de conhecimentos gera mais perplexidade, a autora não se perde em rodeios ao abordar assuntos que considera de fundamental importância. Por isso, o livro é dividido em dezenove capítulos, nomeados com uma idéia ou conceito, que servem tanto para elaborar perguntas (e suscitar reflexões quanto para abordar pontos primordiais sobre o que se é considerado virtude e passível de ser ensinado aos filhos.
E são idéias e conceitos essenciais - felicidade, caráter, responsabilidade, auto-estima, respeito, gratidão, liberdade, amabilidade, etc. - que podem ser lidos como se consulta um dicionário (neste caso, buscando o significado que a autora coloca e que usa, na maioria das vezes, a partir do senso comum). Ou ainda regando-se ao prazer de estabelecer diálogo com a autora sobre determinados temas que se vinculam uns aos outros, como quem conversa com uma "mãe amiga" sobre os desafios da criação de uma criança. Afinal, é a despretensão que norteia as páginas do livro: despretensão de dar respostas definitivas, porque simplesmente não há respostas definitivas.
Começando pela "felicidade", a autora recorre a Sêneca para afirmar que "a vida feliz é a que está em conformidade com a natureza das coisas". Frase que em si já é um ótimo argumento para reforçar que ser feliz pode ser simplesmente saber aceitar. Aceitar a própria realidade: a sua e a dos filhos que não devem ser o resultado das frustrações dos pais ou dos seus desejos pessoais não realizados.
No fim das contas, vê-se nisso uma certa ingenuidade; a mesma que abriga desejos de conquista da felicidade. Vista como algo táctil, ou como um objetivo a ser alcançado, ela nada mais é do que o próprio prazer da realização de tantas pequenas e grandes coisas. Ter em vista, continuamente, esta verdade, já poderia ser um grande "atalho" para muitos pais que nada mais querem a não ser felicidade dos filhos.
No entanto, educar uma criança para felicidade, para, digamos a "não-realização" imediata e para a fuga dos modelos de oferecidos pela sociedade é a grande questão. Como levar uma criança a entender que "felicidade" não está necessariamente na conquista mais "belo", no mais "rico" e no mais "forte"? Cabe aos pais se perguntarem se não são os próprios fomentadores da disputa da satisfação a qualquer preço.
Conforme vão se apresentando os capítulos, descobre-se o quanto é difícil proporcionar a tão sonhada "boa educação". Se a necessidade de se desvencilhar de regras rígidas esbarra em uma tentativa de "educar na liberdade", quão irresponsáveis e indisciplinados não poderão ser nossos filhos? E como embutir-lhes o respeito sem produzir, ao mesmo tempo, o medo? São perguntas que se estendem por exatas 118 páginas e qie funcionam quase como um terapia de grupo de pais. Pois, longe da imposição pedagógica, dos "macetes" ou das formas "modernas" de educação, o que se tem neste livro é um material de leitura fácil e agradável.
Como não poderia deixar de aparecer em um livro desta espécie, são gastas algumas páginas para um pequeno debate acerca da televisão. É um dos poucos momentos em que seu discurso se iguala ao de todos os detratores da TV, com argumentos já vistos e revistos. Considero perda de tempo acusar, igualmente, a publicidade como "manipuladora" e dar eco a teorias antiquadas que vêem os programas televisivos como "monstros devoradores da infância": "As crianças - há estatísticas que o confirmam - passam horas demais vendo televisão, e vendo certos programas que vão da trivialidade ao mau gosto, quando não caem no decididamente desaconselhável."
São pontos, no entanto, que, de maneira alguma, ofuscam o valor da obra (e da sua conveniente contribuição em tempos onde tudo é "fácil", "rápido" e "descartável"). Livros assim servem como um lembrete de como é preciso manter-se atento às pequenas peculiaridades e aos grandes esforços durante a educação das crianças. Uma tarefa que não se reduz a pequenas receitas, e para a qual são necessários permanentes atenção e amor.
Para ir além
O que se deve ensinar aos filhos - 118 págs.
São Paulo: Martins Fontes, 2003
Victoria Camps, natural de Barcelona e catedrática de filosofia moral da Universidad Autônoma de Barcelona, é autora de diversos livros, entre os quais: Virtudes Públicas, prêmio Espasa de Ensayo 1990; Los Valores de La Educación; Manual de Civismo, escrito em colaboração com Salvador Giner; e El Siglo de Las Mujeres, sua obra mais recente.
Alessandro Garcia
Porto Alegre,
22/7/2003
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