Quem quiser seguir o conselho de Baudelaire e, vez por outra, chafurdar o fochinho na lama, deve ler a obra de John Fante, ou apenas Pergunte ao Pó, lançado este ano no Brasil pela editora José Olympio, com tradução de Roberto Muggiati.
O escritor ítalo-americano John Fante nasceu no Colorado, em 1909. Sua carreira literária começou em 1929, mas só conseguiu publicar seu primeiro conto em 1932, na The American Mercury. Seu primeiro romance, Espere a primavera, Bandini, saiu em 1938. Logo após, no ano seguinte, publicou Pergunte ao pó. Em 1940 saiu uma coleção de contos, denominada Dago Red, que se encontra reunida agora no livro O vinho da juventude.
Fante também ocupou-se com roteiros de cinema para Hollywood — vale conferir o sugestivo "Walk on the wild side" (Pelos bairros do vício).
No ano de 1955 Fante começou a sofrer por causa da diabete, que o levaria à cegueira em 1978 — o que não o impediu de continuar a criar, ditando sua prosa para a sua companheira Joyce. Aos 74 anos, bastante convalescido, bateu as botas.
O prefácio da edição brasileira de Pergunte ao pó traz um texto escrito por Charles Bukowski. Ali ele narra seu interessante encontro com a obra de Fante. Naquela época, passando fome, trepando com qualquer buraco que encontrava, bebendo feito um desgraçado e tentando ser escritor, Bukowski procurava alguma coisa que prestasse para ler, numa biblioteca pública de Los Angeles. Cansado da mistura de sutileza, técnica e forma que encontrava nos romances, deu de cara com Pergunte ao pó. Deu uma espiada, viu que valia a pena investir tempo naquela leitura, decidindo-se por levá-lo para casa. Claro, leu numa sentada só e, depois, procurou tudo o que o escritor havia publicado. Encontrou na obra de Fante seu irmão literário. Sentiu-se, como descreve, como alguém que encontra ouro no meio de um lixão da cidade.
As características que encantaram Bukowski? Um fluxo cambaleante de escrita que parecia uma mistura de jazz, conhaque barato, heroína, linhas movidas a energia descontrolada, uma emoção criada apenas por aqueles que não a temem, um humor e dor entrelaçados numa soberba simplicidade.
O livro conta a história do alter-ego do autor, o escritor Arturo Bandini, filho de imigrantes, jovem dotado de interesse por ser escritor e marginalizado pela sociedade. O personagem sente através de sua vocação literária o desejo de traduzir na sua obra o calor da vida desregrada na qual ele mesmo vive mergulhado. O romance se passa nos anos trinta, nas ruas, bares e hotéis pobres e podres de Los Angeles.
Bandini é um herói literário que se consome no sexo e no álcool, um vagabundo melancólico, eufórico e sórdido, trazendo uma cota de escatologia, autenticidade e autodestruição bastante exemplar do niilismo que lembra o fim do século XIX. Sua obsessões são alcançar a fortuna,o êxito literário e conquistar as mais belas mulheres. Porém, não consegue mais que derrotas, trabalhos medíocres onde o pagam quase nada e o amor de uma mulher que tem a idade de sua mãe, com a qual viverá experiências grotescas.
Lida em perspectiva, a obra de Fante é um registro do rápido século XX que encontrou nos Estados Unidos uma mistura frágil de ambição e desilusão, concentradas na idéia da luta pelo progresso e pelas oportunidades individuais que se potencializam mutualmente: quanto maior o fracasso, maior o desejo de seguir à frente, a qualquer preço.
O livro é escrito em ritmo de alta velocidade, num calor próximo às apresentações jazzísticas da época. Assim também nós fazemos a sua leitura. Nesse sentido, ele anuncia o que viria a ser a prosa e a poesia da Geração Beat.
Não se deve procurar nesse romance uma "prosa de época", uma "reportagem" sobre a Los Angeles dos anos 30. Não há aqui nenhum tipo de jornalismo. Como disse Proudhon, "o jornal é o cemitério das idéias". Na literatura a coisa é diferente. E neste caso, em Pergunte ao pó, as coisas esquentam como o sangue injetado de cocaína e uísque. A vida flui em sua contradição mais desesperadora, misturando afetos, desejos, pobreza, desdém, desespero, solidão, descontrole alcoólico e libidinal.
Ao invés da América ascética, protestante, bem firmada em seu conservadorismo, em seu racismo e prepotência fascistóide, mergulhamos com o romance de Fante em situações e emoções tipicamente humanas, do mais baixo calão, porém, dotadas de uma vitalidade noturna traduzida, no fraseado melódico de sua literatura, em gritos e hurros provindos da natureza animal daqueles que habitam à margem das cidades. Sim, trata-se dos cidadãos da noite, que vivem em bares sujos, dormindo em hotéis decadentes, gozando de prazeres desregrados, consumindo heroína, blues, jazz (essa manifestação, segundo Norman Mailer, do lado negro e reprimido da América), e vivendo atolados em delírios alcoólicos.
"Venha para a América e conheça o quão selvagem pode ser o amor, a ambição e a dor do homem civilizado". Esta poderia ser a epígrafe do livro de Fante.
Este romance encontra sua tradução perfeita no belíssimo poema "Howl", de Allen Ginsberg, que traduz uma geração inteira, posterior a Fante, no entanto, devedora de seu espírito literário e existencial. Um poema de longos fraseados, como o sax de John Coltrane num bar esfumaçado (danem-se os não-fumantes — que se tranquem em casa e nos deixem em paz com nossos sentimentos e bares noturnos), fruto de uma mente que corre solta, desengonçada, inspirada e selvagem. Eis um trecho do poema:
"Histéricos, nus e famintos
tragados pelas ruas negras da madrugada a procura
de um pico raivoso, Hipsters angelicais queimando-se pela primitiva ligação celestial
Nos dínamos chocantes das engrenagens da noite,
Miseráveis e esfarrapados com olhos sagrados nas alturas do fumo
Na escuridão do topo das cidades contemplando jazz..."
Mas não se pense que o caso de Fante se relaciona com a literatura de protesto. Aqui a vida se transfigura, não em discursos politicamente corretos, mas em visões delirantes, talvez mais próximas de um Blake do que de um Marx. Os personagens de Fante se torcem pelas ruas e pela vida numa verdadeira fúria adversa, numa ambientação muito próxima a das soturnas obras criadas por Goya. Seu realismo é sujo, vulgar, pronto para a indecência e o desespero. Assim o é porque seu escritor é um selvagem, um antiintelectual.
Apesar disso, os personagens de Fante estão orgulhosos de ter nascido na América, de ali viver, pois eles sabem que "vão comer hamburgueres, ano após ano, e viver em apartamentos e hotéis empoeirados, infestados de vermes, mas toda manhã vão ver o poderoso sol, o eterno azul do céu, e as ruas estarão cheias de belas mulheres que vocês nunca possuirão e as noites quentes e semitropicais recenderão a romances que vocês nunca vão viver, mas ainda assim estarão no paraíso, rapazes, na terra do sol".
A loucura do personagem Bandini, com seus delírios de grandeza e seu impiedoso orgulho, tem a virtude de expressar as pressões morais dos sujeitos "incorrigíveis". Sua fúria contra a religião, seu desprezo pelos débeis, seu ódio pela mediocridade burguesa e a seu próprio abatimento, são os elementos que dão a voltagem do personagem e seu encantamento.
Parabéns pelo artigo, caro Jardel.
O início do texto é um primor de concisão acerca da obra de Fante.
Ler pergunte ao pó é, de fato, chafurdar o focinho na lama.
"Hurros"? Bom texto, Jardel. Pena que alguns livros de Fante (como Sonhos em Bunker Hill) e Bukowski (Hollywood, A mulher mais linda da cidade, etc) só se têm em português e a preços razoáveis naquela coleção da L&PM pocket, cheia de erros.
fabiana,
obrigado pelo comentário. em termos editoriais estamos num buraco sem fundo. não há nada traduzido nesse país. e as editoras exigem traduções diretas do original, o que piora tudo.
jardel
Bom texto,traduz bem o espírito da obra de Fante.
Comete apenas um equívoco: Pergunte ao Pó não foi lançado no Brasil este ano. E sim em 1983, pela Editora Braziliense, com boa tradução.