A fronteira entre a Tashkent "uzbeque" (esq.) e a cidade "russa"
Tashkent, 02.06
A divisão geográfica da capital uzbeque é tão clara quanto a divisão humana entre russos e centro-asiáticos.
Levantei e peguei o luxuoso metrô. Quem nunca esteve em Moscou, Kiev ou Tashkent dificilmente consegue visualizar o que é um metrô soviético. Os líderes do Kremlin tinham a idéia de criar uma espécie de museu em cada uma das estações, investindo pesadamente em pisos de granito impecáveis, candelabros imensos, mosaicos luxuosos nas paredes. Cada estação parece ter um tema diferente, e todas são iluminadas por uma luz difusa, amarela, que dá a impressão de que, na verdade, você está em uma espécie de porão de algum palácio czarista, respirando ares de eternidade imutável na companhia de sofisticados detalhes decorativos. E os trens vêm e são pontualíssimos – um relógio marca quanto tempo se passou desde que o último parou na minha estação, e exatamente após sete minutos um outro se aproxima. Em Moscou, esse tempo é de dois minutos no horário de pico, e em Kiev, às vezes de quatro. Os três sistemas gêmeos de transporte subterrâneo, mais de dez anos depois da queda do rubro lábaro com a foice e o martelo, mantêm o que de melhor os soviéticos deram ao mundo. Emocionante. Não é sem motivo que senti um grande contraste ao, depois da minha pequena jornada por esse universo, subir as escadas rolantes e botar meus pés no Tchorsu, uma grande feira livre no noroeste da cidade.
É no Tchorsu que os uzbeques de Tashkent gritam aos ventos a força de seu patrimônio cultural. Um patrimônio que tem muito de persa, muito de árabe, muito de nômades do deserto e nada de russo. Há dezenas de mercados (também chamados de bazares) como o Tchorsu na cidade, mas ele é o melhor para se encontrar as senhoras vindas do Vale de Fergana, o reduto dos muçulmanos conservadores do país. Ou vindas de mais longe, de Khoresm ou de Karakalpakstan, duas regiões administrativas uzbeques engolidas pelo Deserto do Kyzylkum e pelos restos mortais do Mar de Aral, a centenas de quilômetros de Tashkent. Os olhos puxados e os sorrisos não são parte da mercadoria à venda. O mesmo vale para os cheiros deliciosos na parte do mercado onde são vendidos as especiarias e os pães non, um dos símbolos nacionais – em forma de disco, com bordas bem grossas e com desenhos feitos com a ponta de um garfo no centro, e ainda algumas sementes de papoula para dar um gosto especial. Os aromas circundam vastos continentes de produtos industrializados, que por sua vez ocultam mais mercadores com metros e metros da mais pura e colorida seda de Margilan, um dos centros de produção do tecido do Uzbequistão, no Vale de Fergana. Vi vários grupos de mulheres com seus vestidos de seda deslumbrantes, com tons surreais de branco, vermelho, verde e azul. Sentadas, lado a lado, sorrindo e exibindo orgulhosas seus trinta dentes de ouro, preenchendo completamente suas bocas e refletindo o sol do início de tarde. Há doces, há algodão não-industrializado, vindo diretamente das plantações. Há restaurantes improvisados que vendem churrasco, e a fumaça das grelhas se espalha, criando nuvens baixas que as pessoas têm que atravessar. Algumas áreas do bazar são cobertas, mas grande parte dos vendedores tem que enfrentar o calor de 32 graus sem sombra alguma. A maioria deles não tem barracas – estendem suas toalhas no chão mesmo e lá expõem seus produtos. Não há placas com preços, e o vendedor berrando, coisa tão comum nas feiras brasileiras, é raro. Mesmo se você o encontrar, certamente ele vai estar exaltando a qualidade de sua mercadoria, não o preço dela.
A razão disso é que não existem preços. Como em todos os países do Oriente Médio, a pechincha é uma espécie de esporte milenar, venerado secretamente como uma verdadeira religião. Pena que não sei falar russo direito, e muito menos uzbeque. Só comprei no Tchorsu um lindo pão non, tão grande e fofo que ainda não consegui terminar de devorá-lo. 200 sums, ou cerca de 20 centavos de dólar. Poderia tê-lo conseguido pela metade do preço ou menos.
A hospitalidade é comovente. Na madrassa Kukeldash, ao lado do Tchorsu, um estudante quase me abraçou quando disse que era turista e lhe pedi para ver o jardim do pátio interno, recheado de rosas. Depois, me mostrou uma pequena sala onde os estudantes colocam à venda peças de artesanato que eles mesmo produzem. Parece que o produto mais popular é um porta-corão de madeira, que pode assumir cinco posições diferentes. Você encaixa as peças móveis e o porta-corão fica mais baixo, mais alto, maior ou menor. O estudante me mostrou como mexer as peças para colocar o objeto nas cinco posições. Depois me convidou a tentar fazer o mesmo. Respondi que, se eu conseguisse fazê-lo, comprava o porta-corão. Obviamente não consegui, mas cheguei à conclusão de que colocar o objeto nas cinco posições o transformam numa espécie de mandala. Ou seja: antes de ler o Corão, o estudante de lei islâmica pode refletir sobre o poder de Alá percebendo os sutis movimentos e angulações do porta-corão, e ser inspirado pelos seus mistérios. Sim. Uma técnica sufi de iluminação.
A madrassa e o bazar marcam o início de uma área onde não há prédios imensos soviéticos, não há estátuas soviéticas, e nem metrô soviético. O que há além do Tchorsu são casinhas que aparentam ser muito, muito humildes. Elas são feitas muitas vezes de barro misturado com palha. Outras, de alvenaria simples, deixando transparecer tijolos. Algumas aparentam ser tão pobres que me fizeram pensar que, na verdade, eu estava numa favela. Essa impressão que tive em 2001 logo se evaporou quando meu tradutor me explicou que as pessoas que lá vivem são na verdade ricas, bem de vida. Um dos grandes segredos dos uzbeques é o que eles escondem atrás dos portões de suas casas, portões que um turista só cruza se for sortudo o suficiente para ser convidado para um chá ou um jantar. Por fora, as casas são nada, mas dentro sempre há um imenso pátio com árvores frutíferas e passarinhos, muita sombra e muito carinho. Comprovei espiando na fresta de um dos portões fechados: crianças brincavam lá dentro e uma mulher cozinhava ao lado, em uma sala coberta e com grandes janelas. A doce vida secreta uzbeque na cidade velha.
Difícil navegar pelas ruas estreitas e empoeiradas. Procurando por uma antiga madrassa, finalmente me deparei com os primeiros turistas nesta parte de Tashkent. Eram dois franceses jovens, um mais baixinho e loiro e outro alto e moreno. Faziam uma dupla engraçada, e era impossível não perceber que eram visitantes de uma terra distante. Perguntei a eles se falavam inglês e responderam com empolgação que sim, brevemente interrompendo a seção de fotografias de um detalhe perdido da rua. Me indicaram o caminho de Khast Imom. Não imaginava que os veria de novo.
A indicação estava certa. O Khast Imom é um complexo que inclui uma madrassa, uma mesquita, um mausoléu e instituto de estudos islâmicos. A madrassa, chamada Barak Khan, abriga hoje o equivalente islâmico de uma arquidiocese de quatro países: Uzbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão e Quirguistão. Imagine uma catedral no meio da favela da Rocinha – é mais ou menos a impressão que se tem. Não que o prédio da madrassa ou da mesquita sejam grandiosos. Pelo contrário: o Khast Imom é muito mais modesto do que se espera. Nada de mosaicos grandiosos. No pátio interno da Barak Khan, entrei sem fazer barulho e vi as rosas e abelhas refletindo o sol que passava pelas sombras das amoreiras. Muito bonito. Enquanto admirava o jardim, um funcionário do local mostrou que seu radar para turistas estava bem calibrado. Chegou rápido. “Fala uzbeque? Russo? Inglês? De onde você é?” perguntou o gordinho bronzeado, aparentando ter uns 25 anos.
Respondi a suas perguntas em inglês, e ele mostrou conhecer bem a língua. “Brasil? Futebol? Ronaldo!”, sorriu. O cartão de visitas do futebol é infalível, pensei eu. Ele disse que já havia encontrado brasileiros visitando o complexo, e eu fiz uma cara de espanto. “Foi há muito tempo, umas poucas pessoas vieram”, explicou. Depois, numa ironia para um estudante de religião, me perguntou se eu tinha dólares para trocar no mercado negro, porque ele poderia me ajudar. Agradeci, disse que não, e lhe perguntei sobre o Khast Imom. “Aqui na Barak Khan ficam escritórios. Você pode olhar. Lá do outro lado da rua fica a mesquita Telyashayakh.” Eu disse que já havia dado uma olhada na madrassa e lhe perguntei sobre a mesquita e sobre o seu grande tesouro, guardado na biblioteca ao lado. O tesouro que atrai pessoas de muito longe. “Sim, ele está lá”, disse o estudante. “O velho corão. Mas você não pode ver, infelizmente. O bibliotecário está doente, e a biblioteca está fechada.”
O corão em questão é considerado o mais velho que existe. Chama-se Corão de Osman. Diz a lenda que o tomo pertenceu ao califa que lhe deu o nome, Osman, o terceiro sucessor de Maomé. No ano de 655, ele foi assassinado em Medina, e o seu sangue teria manchado as páginas do livro. Em 661, Ali, primo e genro de Maomé, foi assassinado, abrindo caminho para que os sucessores de Osman voltassem ao poder no Califado. Esses fatos estão na raiz da principal divisão na religião muçulmana. Os seguidores de Ali passariam a ser conhecidos como xiitas, e os seguidores da linha ligada a Osman, de sunitas. As lendas sobre o livro continuam: antes de morrer, Ali o teria levado para a cidade de Kufa, hoje no Iraque. Lá ele teria permanecido até o século XIV, quando Tamerlão conquistou a região e decidiu trazê-lo para sua capital, Samarkand. Em Samarkand ele teria permanecido mais alguns séculos, até que os russos chegaram. Em seguida, o livro teria sido vendido para os russos, que o transportaram para um museu em São Petersburgo. Só muito tempo depois o Corão de Osman seria devolvido e passaria a ser guardado no Khast Imom, apenas para que eu, que viajei de tão longe, não pudesse vê-lo. Que bom que outros viram.
And there it was. It resembled no other Koran I had seen. It bore no ilumination, nothing exquisite at all, but was strong and utilitarian, with the beauty of something primitive. It lay mounded on itself in separate pages: thick, deerskin leaves. The script flowed long and low over them, like a fleet of galleys going into battle. The strokes were broad and strong. They belonged to the harshness of history, not embroideries of faith. - Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
Com lendas e imagens que nunca testemunhei na cabeça, um tanto chateado, fui devagar tomando meu caminho de volta à Tashkent russa. Peguei o metrô novamente e, enfrentando um calor que me fez passar mal, fui ver o colossal Palácio da Amizade dos Povos – uma regalia arquitetônica, bastante evidente, dos tempos soviéticos. Vastas paredes de concreto cinza, com uns 10 metros ou mais de altura, projetadas para vencer a eternidade. Pensando bem, você não precisa de coisas tão gigantescas para vencer a eternidade. Você precisa de boas histórias.
Bebi uma Coca-cola. Adeus Tashkent, por ora, esta é minha despedida. Amanhã parto para o oeste. Para longe.
O monumental (e horrível) Palácio da Amizade dos Povos
Olá! Sou professora de Geografia. Meus alunos estão estudando o continente asiático. Por isso, preparei uma atividade para ser trabalhada com a reportagem 'UM BRASILEIRO NO UZBEQUISTÃO'. Gostei muito do ponto de vista do repórter, infelizmente, não consegui descobri o nome do brasileiro. Vocês poderiam me informar?