COLUNAS
Quinta-feira,
21/8/2003
O Botão de Puchkin, de Serena Vitale
Ricardo de Mattos
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“Não todo morrerei: a arcana lira
Custodiará meu espírito, inimigo
Da corrupção. E eu serei lembrado
Enquanto viva um poeta sob o sol;”
Aleksandr Sergueevitch Puckin, o mais famoso dos poetas russos, nasceu em 1.797 n’uma família de antiga nobreza. Foi bisneto do conhecido Ibrahim, o Negro de Pedro, cuja biografia iniciou e legou inconclusa. Nos séculos XVII e XVIII havia o costume de manter-se em casa, com fim meramente ornamental, uma pessoa negra. Ficava bonito o quadro de família adornado ao fundo com a pessoa em trajes exóticos. Pedro I comprou um para si e afeiçoou-se como a um filho, educando-o no exterior e fazendo-o general. Entre Ibrahim e o herdeiro do trono russo, o destino foi melhor para aquele.
Puchkin viveu durante o reinado de três czares: Paulo I (1.796/1.801), Alexandre I (1.801/1.825) e Nicolau I (1.825/1.855). O primeiro era pai dos seguintes e foi assassinado por conspiração da corte. O segundo é descrito por Tolstoi como inseguro e perdido entre os acontecimentos. Qualquer um ficaria desarvorado se aos 24 anos perdesse o pai, assumisse o governo do maior império da época e poucos anos depois, tendo por conselheiros generais de salão, precisasse enfrentar justamente Napoleão. A famosa vitória em 1.812 deu forças aos aliados do absolutismo, pois segundo eles, somente um país com esta forma de governo poderia vencer, sendo assim desnecessária qualquer mudança política. Em dezembro de 1.825 abriu-se a sucessão de Alexandre I sem certeza sobre quem seria o czar seguinte. Os adeptos do liberalismo tentaram valer-se do momento para promover uma revolução e extinguir a servidão, reformar o ensino e a burocracia. Daí os termos “dezembrismo”, “dezembristas” ou ainda “decabristas”.
O poeta teve problemas com ambos os irmãos czares por manifestar, inclusive em quadras satíricas, sua oposição. Ele não teve envolvimento comprovado no dezembrismo mas não deixou de ser exilado em virtude de poemas como A Aldeia e A Liberdade, nem de ser observado pela polícia. Mandado para Odessa em exílio interno, conseguiu ser devolvido pelo governador de lá. Ora criticava os governantes, ora enviava-lhes cartas suplicando favores. Seus últimos anos foram no exercício da função de kamer-iunker de Nicolau I no palácio Anitchkov, algo próximo a pajem. Além do desagrado pelo emprego precisava tolerar algo irritante para seu génio ciumento: na corte sua mulher captava, dia a dia, fama pela beleza.
Há nas livrarias principalmente livros de contos. O mais recente é Contos de Belkin, trazendo um conjunto coeso tal como planejado por Puchkin. Dos cinco contos deste volume, três foram seleccionados e fazem parte de um volume mais antigo: A Dama de Espadas – Prosa e Poemas. Ambos foram traduzidos directo do russo, embora o novo seja mais festejado. Merecidamente festejado, pois a edição é óptima. São prosas ainda de feitio setecentista, aparecendo acentuadamente a influência de Voltaire. N’este ano foi lançado Uma Rosa Para Puchkin em nada relacionado ao poeta. Todavia a obra responsável pela sua consagração é o poema Ievgueni Onieguin um romance intercalado de sátira social. Talvez nem haja edição em português. Seria bem vindo, portanto, um volume trazendo a tradução directa do russo, completa e em verso. Há um péssimo costume entre nós de traduzir excertos de uma obra e de apresentar em prosa o escrito em verso. Se for para fazer assim, nem é preciso alguém dar-se ao trabalho.
Referir-se a Puchkin como “pai do romance russo” desconhecendo os antecedentes da literatura é apenas reiterar um lugar comum de característica imprecisão. Até ele a literatura limitava-se a crónicas, textos religiosos, vidas de santos, sermões, alguma tentativa de história. Com Pedro I, dito O Grande, as portas abriram-se para o Ocidente. Porém parece ter havido mais cópia dos modelos clássicos franceses e não criação original, embora alguns nomes tenham ficado. Puckin foi o primeiro “original” com seu romance A Filha do Capitão. Esta obra é o braço ficcional de suas pesquisas sobre uma rebelião nas localidades de Kazan e Orenburg ocorrida na época de Catarina II. O braço histórico é o livro Rebelião de Pugatchiov. A importância do romance deve-se ao facto de ser o primeiro a conjugar o rigor da investigação histórica com o esmero no tratamento do idioma e só neste aspecto a realização foi enorme. Os interessados têm muito a estudar sobre isso: do alfabeto adaptado do húngaro por São Cirilo ao russo cultivado por Turguieniev a evolução foi longíssima, lenta e complicada. Acresça-se a elaboração de retractos psicológicos e compreender-se-á o valor do romance e o patronato.
Tchaikovsky (1.840/1.893) converteu em música sua admiração pela obra do poeta. Não obstante denominado As Estações do Ano, há um ciclo de doze composições para piano dedicadas aos doze meses e cada uma inspirada n’um poema russo. As dos meses de Janeiro e Setembro foram elaboradas sob influxo, respectivamente, de Junto à Lareira e Caça, de Puchkin. Sobretudo, duas óperas expressam o entusiasmo de Tchaikovsky. A Moscou de 1.879 viu estrear Ievgueni Onieguin, ópera em três actos com libreto de Shilovsky em co-autoria com o músico. Sua impressão com o poema foi muito além do imaginado. Como o compositor detestava Ievgueni pelo seu procedimento em relação a Tatiana, aceitou a declaração de amor de uma ex-aluna do conservatório visando não incorrer no mesmo erro. Contudo era homossexual, e segundo relata Kobbé, o casamento desencadeou uma crise nervosa de suficiente gravidade para seus médicos sugerirem o divórcio. No ano seguinte foi a vez de São Petersburgo assistir à primeira encenação de A Dama de Espadas – Pikovaya Dama. O libreto é de Modest Tchaikovsky, irmão do maestro, e ao contrário da anterior não se teve aqui o mesmo receio de desvirtuar a obra original. Também Modest Mussorgsky foi compositor de versões (sic) operísticas da peça teatral Boris Godunov, complementada pela História do Estado Russo escrita por Karamzin.
Puchkin morreu no dia 29 de janeiro de 1.837, 36 horas após duelar com Georges d’Anthès, por adopção, Barão de Heeckeren. Da chegada de d’Anthès à Rússia até as derradeiras cenas da vida do poeta e as conseqüências de seu assassínio, eis o conteúdo do farto livro de Serena Vitale, O Botão de Puchkin. Farto devido ao volume documental obtido em pesquisas inimagináveis quanto à extensão.
Serena Vitale (1.945) é grande estudiosa da língua e da literatura russa, cuja competência podemos agora testemunhar através deste livro sério e suficiente. As obras daquela literatura chegam ao público italiano por suas mãos, tal como entre nós encarregou-se Boris Schnaiderman de fazê-lo. Realmente o paralelo é preciso. Hoje ela lecciona no Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras Modernas da Faculdade de Ciência Lingüística e Literatura Estrangeira da Universidade Católica do Sagrado Coração, de Milão, actividade conciliada à tradução, ensaística e acompanhamento de edições. O livro desta senhora, escrito em 1.995, é o pico d’uma imensa pirâmide de obras já escritas pelos especialistas sobre o assunto. Entretanto ela teve o talento de sintetizar as pesquisas anteriores e acrescer a sua as revelações advindas da descoberta, no verão de 1.989, de um maço de cartas de d’Anthès ao pai adoptivo. O oficial relativamente mudo pigarreou e passou a falar com voz própria.
Compreende o volume todo o relacionado ao evento fatal, o comportamento do poeta, de sua mulher Natalia Nikolaevna Gontcharova-Puchkina, do referido D’Anthès e da sociedade, cujo ignóbil papel foi decisivo. Vitale cita as fontes emendando-as conforme as novas descobertas: cartas, diários, despachos de embaixadas, documentos oficiais, recibos de casas de penhor. Tudo objecto de uma leitura de primeira mão, pode-se dizer. Apesar disso, é bom ler antes uma biografia de Puchkin, mesmo sucinta, apenas para organizar o sabido sobre ele. O bardo russo sabia não ser amado pela esposa, mas amando-a, preferia fazer vistas grossas para os flertes a perde-la em definitivo. As fontes mostram Natália como uma beleza demasiadamente elogiada. A ciência da própria beleza somada ao excesso de loas não combinaram bem n’um espírito pequeno. Até serem descobertos novos documentos autógrafos, ela permanecerá na história como aquela cuja frivolidade permitiu um fácil acesso ao oficial da guarda real. Além disso, o próprio czar era cotado como um de seus amantes. Após a morte do poeta, recebeu-a na corte com favores, providenciou-lhe outro casamento e ao novo marido foi dado um cargo na capital.
D’Anthés, filho d’uma decadente família de origem franco-germânica foi adoptado pelo embaixador holandês, o Barão Heeckeren. Adopção claramente destinada a tentar encobrir o relacionamento homossexual entre os dois. O oficial poderia declarar-se a qualquer mulher – e o fazia! –, mas deveria manter um lugar reservado para o velho barão. Sempre olhei desconfiado para os “grandes conquistadores”. Já a sociedade conseguiu uma peça teatral com personagens e desenlace reais. Cuidou para os sentimentos não esmorecerem, provocou quando necessário, providenciou cartas anónimas e depois comoveu-se com a tragédia resultante. Justificou, enfim, a conduta dos misantropos.
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté,
21/8/2003
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