COLUNAS
Terça-feira,
26/8/2003
O mundo aos olhos de um pescador
Alessandro Garcia
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Ainda que no próprio título o autor remeta a uma clássica definição popular da pesca - "Um bobo na ponta de uma linha esperando um bobo na outra ponta" - a noção de responsabilidade ecológica e conhecimento histórico (tanto dos primórdios quanto de fatos e números atuais a respeito do mercado e de tudo o que envolve a pesca esportiva) faz com que saibamos desde o começo que, de bobo, o autor não tem nada. Mais ainda, ficamos é fascinados com a profusão de conhecimento sobre o assunto que Robert Hughes esbanja e nos apresenta em Um bobo em cada ponta sem parecer esnobe. Da mesma maneira, ao ler o livro, eventuais imagens pré-concebidas, de pescadores como simplórios homens de caniço e cesto de vime na cabeça, esvaem-se por completo. O que o livro nos proporciona, através de sua fluente e agradabilíssima leitura, é um mergulho completo no universo que pode cercar a paixão de um homem pela pesca, e todos os fatos que envolvem tal prática. (Que pode ser esportiva ou predatória, com dados estarrecedores.)
Um bobo em cada ponta integra uma série da Editora Rocco denominada Idéias Contemporâneas. O texto que a apresenta diz o seguinte: "Esta é uma série que aborda os temas mais provocantes, fascinantes e relevantes da atualidade (...) A forma escolhida é livre, abrangente e variada, o objetivo, sempre o mesmo: dizer coisas que precisam ser ditas."
Eu, na minha até então admitida ignorância sobre o assunto, considerava que poucos esportes me pareciam mais sem importância que a pesca. Pior: achava que tal prática sequer deveria ser chamada de esporte. Sim, era até então partidário de pensamentos que ajudaram a perpetuar ditados como o que dá título ao livro. O grande problema, no fim, era não me deixar atrair por esse pequeno livro, de 118 páginas, e com um subtítulo ironicamente atrativo: Reflexões de um pescador medíocre. Ora, com tal abordagem permeada de humor, ainda que fino, impossível não passar algumas horas com tal leitura. A dificuldade maior acaba sendo não se deixar fascinar por esse livro, e não se extasiar com as informações, entremeadas de deliciosos comentários e doces lembranças que remontam à importância da pescaria na vida do autor.
Dividido em três pequenos tópicos, inicia falando a respeito da pesca em alto mar. "Água Salgada" é a parte em que Robert Hughes começa fazendo considerações do quanto sua paixão pela pesca pode ser vista como algo ridículo, considerando-se a quantidade de gastos que tem com sofisticados instrumentos e apetrechos, mais manutenção de barcos e viagens a diferentes localidades do mundo, atrás de pequenas (ou enormes) preciosidades.
O conhecimento do autor sobre o assunto - Robert Hughes tem cerca de sessenta anos e é crítico de arte da revista Time - faz com que, em momento algum, ele se deixe levar por argumentações fundamentadas somente em seu extremo gosto pelo esporte. Pelo contrário, ao longo de toda a obra, críticas à forma indiscriminada com que ela tem sido feita vão permeando a leitura, da mesma maneira com que a condenação de certos fetichismos gastronômicos. Exageros que acabam fazendo com que, por exemplo, no Japão, um atum do tipo bluefin possa ser vendido pela inacreditável soma de US$ 83,5 mil.
Até chegarmos a informações disparatas e surpreendentes desse tipo (convenientemente reunidas no tópico "Águas Revoltas"), percorremos um agradabilíssimo caminho em que Hughes nos leva por recordações de como se deu sua entrada no mundo da pesca. Além disso, são muitas as citações a um tipo de literatura que se começou a produzir a partir de 1890: a pesca como um safári perigoso, a caça de presas de grande porte. Desta forma, trechos de clássicos são citados em vários momentos. Muitas vezes, desmitificando o excesso de heroísmo e de façanhas inacreditáveis com peixes que, sabe-se, não poderiam nem mesmo ter o tamanho descrito, nem ser capazes de certos malabarismos até serem capturados.
A certeza de que o esporte se converteu num dos mais desgastantes se revela por meio de descrições do processo e dos percalços envolvendo a chamada "pesca oceânica". Ficar preso a um grande marlin, que puxará violentamente centenas de metros de linha da carretilha num mergulho irreversível para as profundezas do oceano, não parece nem de longe com a imagem pacata de um velho enrugado, e seu caniço envergado, à espera de uma pequena truta. Essa caça a um marlin é apenas um dos momentos em que a supremacia humana, repleta de apetrechos e de embarcações moderníssimas, se faz necessária com toda a sua força para poder vencer esses pequenos monstros do mar. (E a referida caçada se deu com o próprio Robert Hughes. Levando-se em conta que ele se considera um "pescador medíocre", no momento em que começa a descrição de todos os outros artifícios, usados pela indústria da pesca em grande quantidade, e de todas as práticas irresponsáveis cometidas por gananciosos mercadores de peixe, nos é dada a real dimensão da pesca e de sua importância para o mundo.)
Não poderiam deixar de faltar, é lógico, as noções recheadas de superstições que envolvem alguns hábitos da pesca. "Nunca olhe para o olho de um atum" é um princípio comumente empregado por quem pesca com arpão, e deveria ter sido o princípio a guiar Hughes, no momento em que, fascinado pelo olhar dilatado de um peixe que perseguia, acabou por perdê-lo completamente, congelado por "Deus", que o olhava através daquele peixe.
As informações sobre os peixes e suas peculiaridades são muitas, sem se tornar enfadonhas de maneira alguma, já que somente são introduzidas na medida em que se fazem necessárias nas histórias que conta. Dados sobre o bass listrado, entre outros, só nos acrescenta em prazerosas informações, como a particularidade de sua carne, seus próprios hábitos alimentares, bem como as águas onde pode ser encontrado, etc. As formas de pesca, utilizadas para capturar este e outros peixes, são incrementadas por um pequeno glossário no fim do livro, o que nos faz recorrer constantemente às suas últimas páginas. (Melhor seriam notas ao final de cada página.)
O tópico "Água Doce" traz informações da pesca nesse tipo de água, bem como evoca recordações da infância de Hughes, que foram fundamentais para o desenvolvimento da sua paixão. A pesca em família com seus pais e irmãos, em grandes acampamentos à beira do rio, bem como o respeito por práticas lícitas de pesca (o princípio de nunca pescar além do que for suficiente para comer), além de outros ensinamentos de seu pai, foram fundamentais para a consciência que o autor adquiriu ao longo de sua vida, e o fizeram se tornar um respeitoso pescador. Também indignado com práticas escusas e inconseqüentes que vêm - segundo assombrantes dados - destruindo por completo e cada vez mais rapidamente a chamada "parte líquida do mundo". Uma zona de medo, que provoca temores, da mesma forma que é um lugar de infindável curiosidade, sedução e prazer. Prazer que, com a ajuda de pescadores conscientes como Hughes deveria ser mantido.
Para ir além
Um bobo em cada ponta, Robert Hughes, Ed. Rocco, 118pgs.
Alessandro Garcia
Porto Alegre,
26/8/2003
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