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Viagem
Quarta-feira,
11/7/2001
A próxima viagem
Daniela Sandler
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Não teve coluna mais difícil de escrever do que esta. Parece surpreendente. Afinal, "viagem" é o tema inspirador por excelência, desde as composições sobre "as minhas férias" da quarta-série. Quem é que não viaja? Quem não se empolga ao falar do assunto? E até mesmo quem não gosta de viajar pode justamente escrever... sobre isso. Não só pela popularidade do tema. Viagens parecem ter relação estreita com letras. Muito viajante pouco afeito à escrita acaba rabiscando um cartão-postal (ou email). Para não falar daqueles que encontram, enfim, motivo e tema para um diário.
Agora eu, justo eu, que sou louca por viagem, que já fiz tantas jornadas diferentes, tenho o "bloqueio de escritor" na hora de escrever a coluna.
Será porque eu queria contar a vocês todas elas e, como isso é impossível, não consigo contar nenhuma? Hummm, não (isso soa demais a psicologia de esquina).
Será porque, nos últimos dois anos, minha vida virou uma espécie de eterna viagem? Estudo em Rochester, Nova York, onde passo de oito a nove meses por ano. No resto do tempo, estou em São Paulo, para onde venho duas vezes por ano. Quatro vezes por ano: fazer compras, limpar a casa, arrumar as malas, pegar o táxi, o primeiro avião, o segundo, passar na imigração, na alfândega, pegar o táxi, desarrumar as malas, readaptar-me ao clima, ao fuso horário, às pequenas rotinas da vida. Quando chego em São Paulo, até a água do filtro eu estranho - tem tanto químico que dá para sentir o cheiro (agora já me acostumei de novo).
Mas não acho que seja essa a razão do meu bloqueio - quero dizer, o estresse repetido de viagens tirando a graça de viajar. Acho que é o oposto. É justamente por eu sempre me animar tanto com viagens que não consigo escrever. Há viagens que são apenas diversão, mas, em geral, minhas viagens têm um sentido pessoal - há sempre algo em mim que se transforma; a jornada não é só física. Eu sou cética, mas, se tenho algo de místico, deve estar relacionado a duas coisas: arte e viagens. Espero muito de qualquer viagem, e estou sempre esperando pela próxima viagem. Como escrever, se a viagem fantástica está sempre por vir? Se tudo o que eu vejo, viajo, vivo até um determinado ponto da minha vida parece uma preparação para a viagem que há de vir então?
Plataforma de embarque
Então que eu deveria pelo menos puxar uns fios de viagens passadas, já que são elas que tecem a minha paixão por viajar. Em inglês, esse siricotico é chamado de "wanderlust" - literalmente, algo como "forte desejo de sair por aí". Inglês, língua esperta e ativa, empreendedora e desarraigada, que inventou a palavra para esse estado em que é penoso ficar no mesmo e conhecido lugar. A nossa língua, que alguém já disse ser melancólica como a alma de Portugal, inventou "saudade" para traduzir a dor de partir (ou ficar, quando alguém parte) e de sentir falta do conhecido lugar que se deixou.
Diário de bordo
Disse que viagem para mim tem um sentido pessoal. Que frase perigosa. Deixa-me a um passo de parecer ingênua ou fanática. Sem ofensa, vocês nunca me verão seguindo o Caminho de Santiago de Compostela para encontrar a minha lenda pessoal ou pagar promessa ao santo. Também não me verão na Índia em busca de um ashram onde encontraria, sei lá, paz espiritual (paz, sei que nunca terei; em espírito, não acredito).
Mas talvez vocês me vejam seguindo o Caminho de São Tiago só para refazer a "Via Láctea" que Luis Buñuel registrou no filme de mesmo nome. E, se eu for para a Índia, não será (só) para ver o Taj Mahal, mas para deixar que os sons, as cores, os gostos e os credos do país me impregnem: escolhi a palavra para dar o sentido de fertilidade e, por que não, de transformação.
Tesouros de viagem que a gente pode encontrar no dobrar de uma esquina; numa tarde "perdida" em que não se foi ao ponto turístico; num imprevisto, até num mal-estar. Motivos para viajar que não estão no mapa, mas num livro lido, numa comida, numa pessoa admirada.
Primeira estação
Por exemplo: fui a Canterbury (ou Cantuária) porque havia lido os Contos de Cantuária, de Geoffrey Chaucer - histórias medievais passadas nessa cidade do sul da Inglaterra. Quando lá cheguei, descobri que o turismo local tinha tido a mesma idéia: há uma atração que recria personagens e episódios do livro. Felizmente, meu "senso crítico" (ou seja, nariz torcido para o que parece lugar-comum, vulgar, superficial, mistificado, burro etc.) sempre acaba por criticar a si mesmo antes que vire preconceito. Decidi não deixar que o cheiro de disneilândia atrapalhasse minha estadia. Ainda bem. Canterbury é linda. Quem gosta de cidadezinhas medievais, com casinhas meio tortas feitas de pedra ou madeira e ruas sinuosas e estreitas, vai adorar a cidade. Primeira coisa que fiz foi visitar a catedral, ponto de peregrinação de cristãos desde a Idade Média, inclusive os personagens do livro de Chaucer. Quase me ajoelhei - não por piedade, mas porque é a catedral mais bela e impressionante que já vi. Muito alta e alongada, espreguiçando-se para o alto, onde o olhar e o teto se perdem na penumbra. Fiquei tão enlevada que até fui à tal recriação dos Contos de Cantuária - uma besteira, por certo, mas divertida. Um percurso percorrido parte a pé, parte num trenzinho lento, ao longo do qual distribuem-se bonecos mecânicos que repetem falas do livro. A encenação inclui até o cheiro que a cidade teria na Idade Média - uma versão suave do fedor que devia ser, com estrume de cavalo, esgoto, produtos expostos no mercado, suor de gente que não tomava banho.
Hoje, Canterbury, assim como outras lindas cidades medievais européias, está limpa e tem água corrente em todos os hotéis. O meu era uma acomodação simples, numa casinha de pedra, que ficava em cima de um dos melhores restaurantes em que já comi. Il Pozzo (O Poço) era o nome, pois ficava no porão, a escada saindo da rua mesmo. Fomos ao restaurante porque era no hotel, sem imaginar como seria bom (e chique - e nós em nossas calças jeans!). Já faz cinco anos e só lembro que comi um cordeiro com molho e cogumelos. Não esqueço que o molho era leve, sedoso, feito com alguma bebida (tipo vinho do porto) e com creme de leite, só que muito suave, sem nada daquelas espessuras gordurosas dos molhos cremosos. Estou até hoje tentando fazer um molho assim. E se vocês forem a Canterbury antes que eu volte, quem sabe ainda encontrem Il Pozzo (a cidade não é grande e, se o restaurante ainda existir, não deve ser difícil achá-lo).
Escala - hora do lanche
Como se vê, não separo viagem de comida - assim como muita gente, inclusive nas outras colunas deste especial. Bem antes de mim, e com mais talento, Proust já alinhavara comida e memória com as madeleines molhadas no chá. Entre memória e viagem, por sua vez, a ligação é forte. Registros, fotos e lembranças são modos preferidos de guardar a experiência de uma viagem - talvez sejam os modos mesmos de experimentá-la. Natural que a comida, então, no encontro de vísceras e sentimentos, seja atração turística tão memorável. Nunca entendi as pessoas que vão para a Europa e, para economizar e poder "aproveitar mais" com o dinheiro economizado, comem no McDonald's ou vivem de maçã e biscoito. Parte da delícia de estar lá é experimentar a comida local, que nem sai tão cara assim.
Sei que isso não se aplica, por exemplo, a aventureiros e ecoturistas cuja comida tem de ser funcional. Uma escalada de grande montanha não será lembrada pelas refeições (ainda mais porque grandes altitudes dão enjôo). Por outro lado, acampamentos de passar fome (ou de passar a leite em pó e atum em lata) acabam sendo tomados por longas e nostálgicas conversas sobre... comida. Sei por experiência própria! A falta de comida é razão para que ela "apareça". Quem viu A Bruxa de Blair pode se lembrar da cena em que os três personagens descrevem os pratos que gostariam de comer ao sair da selva. Dava água na boca só de ouvir as descrições.
Não apenas pratos elaborados e restaurantes finos fazem lembrar lugares. Quando penso em Ipioca - uma praia perto de Maceió, que visitei quando viajei pelo Nordeste com seis amigas -, penso nas sete mangas que comi direto, uma atrás da outra, ao lado da Rê, que fazia o mesmo. Sete mangas de uma vez não se esquecem, mas aquelas eram especiais. Não muito grandes, doces na medida certa. Nessa viagem, que fizemos aos 19, tínhamos por lema "o máximo de lugares com o mínimo de dinheiro". Foram 45 dias, uma dezena de cidades entre São Paulo e Pipa (RN), por 250 dólares. Incluídas todas as passagens (de ônibus, claro). Frutas penduradas nas árvores, para a gente pegar! Que festa para a nossa meta econômica. Em Pipa, no terreno do camping, achamos um cajueiro. Eu e a mesma Rê demos voltas e mais voltas ao redor da árvore, buscando frutas e fugindo das vespas. Cada uma chupou uns dez cajus, acho que empolgadas pela experiência das mangas. Só que caju não é manga. Caju resseca a boca, não? Imaginem o que deve fazer no estômago. Ficamos enjoadas o dia inteiro.
Uma vez um homem quis cobrar pela fruta-pão de uma árvore à beira de seu quintal, em Itaúnas (ES). A árvore estava era na rua mesmo. Sei lá de quem era a árvore, nem sei se fruta-pão se cultiva, mas uma amiga (a Rê, aliás!) se indignou: onde já se viu cobrar pela natureza, a fruta está lá, nasceu sozinha....! Não comemos. Fruta-pão eu havia comido em Caraíva, sul da Bahia, outra viagem. Fôra cozida por um nativo na casa de quem me hospedei, junto com meu amigo Nando. O nativo, conhecêramos por meio de um índio que havíamos encontrado na caminhada de 32 km entre Trancoso e Caraíva. O índio levou a gente para a casa de Pinduca, o nativo. Tomamos chá de erva-cidreira morno, mesmo sendo verão, e comemos a fruta-pão. Parece batata cozida, mas é mais suave. Tudo combinava: a fruta macia, o doce do chá e a luz que vinha pelos vãos dos bambus da parede. Uma doçura só. Nunca mais comi fruta-pão. Muito depois, já em São Paulo, soube que o Pinduca era traficante de droga, detestado em Caraíva. Quem diria?
Quanta lembrança boa de comida dessa viagem; mandioca frita na praia, queijo-de-coalho, moqueca, uns sorvetes gigantes em Natal. Podia ficar só nisso, mas acho mais engraçado lembrar as comidas ruins. Como o sorvete de um floco só, em Gaibu, praia perto de Recife, em que achamos pouso barato e de onde íamos, todo dia, à vizinha Calhetas, prainha paradisíaca verde-esmeralda. Em Gaibu, tinha um trailer que vendia sorvete. Alguém pediu de creme, outra pediu de doce-de-leite, outra pediu de flocos. Todos os três eram iguais. O mesmo, com nomes diferentes. No de flocos, não havia um floco sequer. Ou seria o sorvete o próprio floco? Mas isso não é nada perto da lingüiça do seu Cardoso. Sem malícia, por favor! Fomos a Penedo, em Alagoas, cidade histórica à beira do rio São Francisco, no interior - perto da foz, que fica em Pontal do Peba. Alugamos uns quartos espaçosos, simples e baratos, do seu Cardoso, simpaticíssimo. À noite, nos convidou para jantar. Arroz, feijão, tudo ia bem. No meio, serviu a atração principal, uma lingüiça escura e inchada, quase arrebentando a tripa, preta, seca que só, com gruminhos de gordura branca. No nosso terror, até pêlo vimos naquela lingüiça! Éramos sete: apenas uma comeu um pedacinho. E toca disfarçar para não ferir o seu Cardoso!
Segunda estação
Penedo, aliás, também vale história. Foi cidade de recursos, tem igreja antiga, bonita, decorada; construções sólidas e belas de épocas mais prósperas (mas aqui minha História me falha, não saberei dizer mais). Quando a visitamos, em 93, estava decadente, quase miserável. Ainda assim, lembro que Penedo era impressionante de ver, paredes brancas ardendo sob a luz forte do sol da tarde; janelas de moldura bege, colonial; o São Francisco brilhante. Três das amigas saíram para procurar lugar para ficar. Eu e as outras esperamos na rodoviária. As três voltam depois de um tempo com expressão de terror. "Vocês não vão imaginar", disse uma. "A cidade está tomada por piolhos". Piolhos! "Todo mundo aqui é muito piolhento! As crianças! É uma epidemia de piolhos!" Passamos as mãos pelos cabelos, nervosas. Estaria já tudo perdido? Deveríamos pegar o primeiro ônibus de volta? Será que boné o tempo todo protege? "Bom, no máximo a gente vai ter de raspar todo o cabelo." O momento de pânico fútil passou; depois descobri que nem é mais tão comum ter de raspar cabelo piolhento, há remédios eficazes. Esquecemos os piolhos, adoramos Penedo. Mas às vezes eu passava a mão na cabeça só para ter certeza de que não estava coçando. Hoje rio da nossa vaidade urbana, mas acabo de lembrar que eram os piolhos que transmitiam a peste bubônica (junto ao cheiro ruim, mais um dos dados românticos da Idade Média).
Mirante - Vista panorâmica
Tem muita gente que gosta de viagem-rally. Não estou falando daqueles pacotes "Europa: 56 países em 20 dias", que são objeto óbvio de ridículo. Há muita gente que ri fácil desse tipo de exagero e, quando chega em Paris, começa a percorrer a cidade como uma bússola desgovernada: Torre Eiffel! Sacre-Coeur! Sainte-Chapelle! Notre Dame! Agora os Champs-Elysées! Olha o Arco do Triunfo! Toca prá Opéra! La Madeleine! A Monalisa! "Anarriére"! Olha a chuuuva! Já passou! Olha a cobra! É mentira! A cavalgada! La Défense! Montmartre! Jeu de Paume! Bate palma!!! No guia turístico, as atrações principais - "imperdíveis", "básicas" - vão sendo riscadas: isso eu já fiz, esse eu já vi, já fui, já vi, já fiz. O guia vira uma checklist, vira lista de supermercado. Inclui, claro, além do arroz-e-feijão, uns patezinhos: "endereços secretos", "exclusivos", os "achados". A lojinha especializada em relógios-cuco, a banquinha de flor mais cheirosa, a padaria que tem a melhor migalha de toda a França!
Talvez o custo da viagem - não só o preço da passagem e hotéis, mas também o custo físico e emocional do traslado, do cansaço, da língua diferente - provoque a ansiedade de aproveitar tudo, de ter todos os "benefícios". De qualquer modo, todo mundo é livre para gastar seu tempo e dinheiro como bem entender. Mas acho que, além de voracidade, há muito de mania nesses turistas competentíssimos e energéticos - mania coletiva, ainda que não viajem em grupo. É como se precisassem ir aos tais pontos turísticos não só para encher suas barrigas, mas para mostrar que foram, provar que viram. Comparam-se com outros turistas, com amigos, com jornalistas de turismo, entre outras autoridades imaginárias. Afinal, quem foi que disse que se deve ver isso ou aquilo, subir à catedral de St. Paul em Londres, passar pela National Gallery, ver a troca da guarda no Palácio de Buckingham e andar sobre a London Bridge? Guias turísticos são obras de referência, não bíblias. São valiosos, pois economizam trabalho de pesquisa, reúnem para o viajante as principais informações de que precisa para decidir o que fazer; são práticos, pois dão endereços, preços e dicas.
Muitas vezes conversei com gente que esteve nas mesmas cidades que eu, por menos tempo, e que se mostra surpresa com o "pouco" que vi. "Ah, mas você não foi ao Museu Picasso de Barcelooona? Mas você não disse que adooora Picasso?" Em resposta, sinto-me entre envergonhada e ofendida. A pessoa acaba soando arrogante, como se estivesse me dizendo que é melhor (ou que aproveitou melhor) porque cumpriu o périplo turístico. E em que esse périplo difere da pagação de promessas dos caminhos santos? Desisto de retrucar que, em vez do Museu Picasso, passei uma tarde maravilhosa andando pelo Bairro Gótico e pelo vizinho El Raval, que, sujo e bagunçado, revelou umas vielas inundadas de luz maravilhosa, velhinhos, vitrines, letreiros, umas vistas vivas tão boas quanto quadros de Picasso. É isso o que eu dizia no começo deste texto: tesouros de viagem que podem estar nesses "dias perdidos" - "dia perdido", expressão usada em tom de desculpa e confissão por viajantes que se deixam ficar uma tarde inteira numa mesinha de café parisiense, folheando livros e lendo revistas recém-compradas (se bem que, do jeito que vai, até esse programa já está virando clichê de guia turístico!).
Aí é que está. Danem-se os clichês! Farei o que quero. Se quiser passar uma semana em Roma e não visitar o Vaticano, problema meu. Se quiser ficar quatro horas na fila e me apertar com os outros turistas na Torre Eiffel, problema meu também. Mas sou contra empunhar feitos turísticos como trunfos; sou contra ver vinte atrações em dez dias; sou contra ficar dez segundos em frente a cada quadro do Museu D'Orsay. Na última vez em que estive no British Museum, como sempre, consegui visitar talvez umas três ou quatro salas em um dia inteiro. Enquanto lia os textos de cada mostruário e ficava "viajando" nas peças, sentia trotar por trás de mim tropas de rápidos e eficientes turistas. Quinze salas numa tarde, três eras por hora... e três horas na lojinha do museu. Gente! Não me levem a mal. Não quero ser pedante. Mas depois ouço tantas pessoas reclamando que até mesmo Auschwitz virou disneilândia, com hordas de turistas, máquinas fotográficas e ônibus de excursão. Sei que as modernas teorias de recepção artística me proíbem de avaliar, preconceituosamente, o uso que cada um faz de sua viagem-rally, de seus dez segundos diante do quadro. Sei que isso não deve influenciar o modo como eu mesma aproveito as minhas viagens. Mas que é difícil se concentrar em meio a essa balbúrdia, lá isso é!...
Desfazer a mala
Temo que os lugares que amo - e aqueles que desejo ver e ainda não conheço - sejam estragados pelo turismo de massa, que, justiça seja feita, está cada vez mais sofisticado e que tem também seu lado democrático (e eu, que tinha por ídolos de adolescência Olga Benário e Rosa Luxemburgo, não deixo de sorrir diante disso). Talvez não haja como escapar. Talvez fique tudo pasteurizado. Talvez, daqui a uns anos, eu volte a Penedo e não haja mais piolhos por lá. Em Caraíva chegará luz elétrica, e Caraíva vai virar Trancoso. Trancoso já virou Arraial d'Ajuda, e Arraial já virou Porto Seguro, que, por sua vez, já tem aeroporto para aviões de grande porte. Em Cordisburgo, ao lado do museu do Guimarães Rosa, hão de fazer uma recriação de Primeiras Estórias inspirada naquela de Canterbury, com o burrinho pedrês mecânico zurrando. Não sobrará um centímetro de mundo "autêntico" ou "nativo"! Até as selvas infestadas de guerrilha no extremo da Ásia vão virar jogo interativo em tempo real (aliás, esses locais já são atração turística - ainda que não tão difundida - para gente que quer fumar ópio). Isso, esse artifício, é que será o "autêntico" do mundo - o parque temático será a nossa verdade. E a maioria ficará feliz, porque tudo ficará mais fácil, mais barato e mais limpo, e as sensações não acabarão.
Enquanto isso, ainda espero ser a mesma, sonhando com a minha viagem pelo extremo do sertão mineiro para ver o Chapadão fatal e as Veredas Tortas do Guimarães; sonhando em fazer a caminhada nos Himalaias, ver os sherpas, ver o céu doído de azul e passar mal por causa da altitude; ver todas as cores da China e o branco total da Antártida. Talvez meus arroubos críticos sejam um resquício de passado, e eu, relíquia turística, ainda estarei esperando muito de cada viagem, muito mais que as emoções prontas e seguras da disneilândia. E, por certo, estarei, como agora, sempre esperando pela próxima.
Para ir além
Canterbury
Penedo
http://www.sunnet.com.br/alagoas/francisco3/
Daniela Sandler
São Paulo,
11/7/2001
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