Dedicado ao mero estudante de sociologia que o assina.
"Vem que vem cantar/ Vem que vem soprar/ Vem que vai voltar/ Vem que vai trazer/ Tudo aquilo que eu tive/ E o ventou carregou/ Quando eu estava distraído/ a olhar pro meu umbigo/ E o momento já passou" ("Vento Perdido", Pedro Bandeira in Cavalgando o Arco Íris, 1984).
O livro da minha vida chama-se É proibido Miar, do Pedro Bandeira. Uma revelação dessas, iniciativa de alguém que, deduz-se, seja um suposto crítico literário ou congênere, não é lá algo muito positivo para o currículo. Estou disposto a pagar o preço. Não seria honesto renegar que toda minha volúpia - às vezes exacerbada, confesso - pela leitura tenha nascido a partir de suas páginas.
É demasiado humano (e compreensível) que determinada falange de críticos necessite expressar, ad infinitum, seu apreço pelas obras-primas adultas; quando não para encontrar ressonância entre seus leitores, tal ato tem o rasteiro propósito de demonstrar força e enciclopédicos saberes, feito glacê para um bolo de feno.
John Fante, por exemplo. É a bola da vez. O clichê do ramo. Que mais precisamos conhecer sobre ele e seu Pergunte ao Pó (Ask The Dust, 1939)
, disparado um dos vinte melhores livros do século XX? Todavia, é o atual número um dos cadernos culturais. Fácil enfrentar a ribalta do palco com uma platéia entupida de amigos.
Mas na medida em que o jovem toma seu primeiro contato com a literatura através dos infanto-juvenis, fico com a impressão de que é espantosa burrice (pequenez intelectual dos doutos) rebaixá-los a divisões intermediárias em pujança artística. Quando muito, fala-se no sazonal Salinger e seu Apanhador no Campo de Centeio. Pior: qual passe de mágica, todos os déspostas esclarecidos da "periferia do capitalismo" (quem pescou a ironia, pescou) iniciaram suas leituras aos 14 anos, com Kafka e Saramago. Aos 16, deglutiam com fluência filosofia alemã: Liebniz, Schoppenhauer, Kant, sempre consideraram as teorias hegelianas de um idealismo carola deprimente e só então passaram a Nietzsche, a espinafrar de pronto seus dualismos e os flertes que sofreu a direita e a esquerda. Um assombro.
Não faz muito, já em vista a confecção deste artigo, cavouquei pelos sites de busca da Internet ensaios ou vestígios relativos a prosa de Pedro Bandeira. Fiquei no vácuo. Em compensação, trabalhos sobre cânones literatos piscavam convidativos na tela. Alguém precisa, urgente, clamar pelo óbvio: Bandeira, ladeado por Ziraldo, é o autor mais adotado pelos colégios brasileiros (supera as badaladas Lygia Bojunga, Ana Maria Machado e Ruth Rocha, três ganhadoras do Hans Christian Andersen Medalhe, equivalente ao Nobel na categoria), e diretamente tem influenciado e formado nossos garotos e garotas desde a década de 80. Modular o discurso pulando um conceito cientifico e pedagogicamente sacramentado é covardia, é achaque.
Pouquíssimas obras mantêm tamanha sintonia com temas relacionados à segregação social e a liberdade de expressão quanto meu favorito. Talvez só encontre similaridades no espetacular Tanto, tanto! (de Trish Cooke, ed. Ática), livrinho infantil que revolucionou as táticas educacionais anti-preconceito (deixo os motivos no vazio como lição de casa: procure-o em livrarias e sebos). Outro perdido na solidão empoeirada das prateleiras.
Lançado pela editora Moderna em 1983, no limiar da ditadura militar, É proibido miar narra a trajetória do cãozinho Bingo, que desde seu nascimento demonstrava certa inabilidade com o espírito de corpo coletivo (ainda que fosse explicitamente doce, afetuoso e peralta), característica que se acentua drasticamente ao estabelecer amizade com um gato misterioso (oras, todo felino é um mistério pardo). Bingo admira seu amigo e decide copiá-lo em seus miados. Um insulto à raça canina, um código estranho ao seu meio. Configura-se a partir desse confronto um pesadelo foucaultiano clássico. Bingo sofre sucessivas tentativas de enquadramento à norma, a começar pelo desgosto e ausência de brilho nos olhos paternos, passando por vizinhos e até pela família que acolhe os cães, que representam todo o peso da super-estrutura que paira sobre o grupo. Acaba aprisionado juntos aos seus "iguais" (errantes em pobreza, sujeira e doença) no Canil Municipal, alegoria dos manicômios, prisões ou linhas ferrenhas de produção as quais um desviante humano será subjugado. Decide fugir. E foge. Para miar em paz.
Daí entra o vetor principal dos infantis de Bandeira: travestido na redentora sensação de happy end, aquele final metafórico, algo ambíguo, que tornam boas histórias em apoteoses artísticas. O mundo exterior a ele pergunta-se, solerte, por onde andarás seu filho desgarrado. Continuará a receber chibatas por ai ou migrou para uma tribo?
"Ninguém mais pôde encontrar o Bingo. Nunca mais se soube para onde ele foi (...) Outros acham que ele foi para uma terra onde todo mundo pode falar à língua que quiser. Uma terra onde é permitido miar. Uma terra onde é permitido ser diferente"
O livro é recomendado para crianças entre oito e nove anos.
Imaginou o quanto isso pode reverberar numa criança dessa idade?
Nos anos 60, Pedro Bandeira fez tudo o que se esperava de um filhote da esquerda contra-revolucionária. Foi jornalista do campeão de matérias decapitadas, o Ultima Hora de Samuel Weiner, meteu-se com teatro e ciências sociais na USP, todas essas atividades cancerígenas ao andamento azeitado de saúde das reformas propostas por militares e dinastias ultra-conservadoras da igreja e da política. Tem, portanto, o pedigree de outros mais incensados pelas altas rodas culturais, vende muito bem, é um mestre do texto, mas estranhamente não rende um debate, uma tese, uma linha. Desleixo, deliberado ou não, vergonhoso.
Antes de um prepotente onanismo acadêmico, autofágico e um tanto canalha, isso aqui é um puxão de orelhas vigoroso em quem se enxerga formador de opinião.
Pois saibam, damas e cavalheiros, que os primeiros filhos da geração Pedro Bandeira cresceram. E agora já começam a soltar seus primeiros miados incômodos de desabono.
Eu lembro de outros livros, como os vários de Monteiro Lobato, as histórias mais amenas das 1001 Noites, as fábulas dos irmãos Grimm, Esopo e por aí vai. Mas, pelo calor da sua defesa, estarei comprando este para presentear a Damaris, minha filha de 8 anos. É uma leitura útil num tempo em que se discutem tanto as diferenças de credo, de cor, políticas e sexuais.
Abraços
Querido Daniel,
Você realmente me tocou com o seu texto. Como agradecer-lhe? Você, que escreve, sabe o quanto é importante saber que algo que se escreveu teve alguma ressonância no coração e na mente de quem leu. É por isso que a gente escreve, não é?
Aquele abraço do
Pedro Bandeira