Creio que todos os que já tiveram a oportunidade de fazer seriamente algum tipo de análise (freudiana ou lacaniana, no meu caso) percebem como é importante buscar em aspectos até inusitados do nosso dia-a-dia (ou de nossos comportamentos) questões e respostas. Conseqüências de nossa própria personalidade, para assim nos entendermos melhor, resgatando aos poucos, no oceano que é nosso sub-consciente, experiências e informações recebidas no passado que acabam, de alguma forma, regendo e determinando o que somos hoje. Isso se chama auto-análise.
Acredito que nossos atos, idéias, sensações, preconceitos, medos, inseguranças, gostos, reações, tudo tem uma causa inconsciente que normalmente não é fácil de detectar a origem.
Mas porque essa introdução tão psicológica num especial sobre livros? Quando lemos um livro, vamos interpretando o que o autor escreveu, registrando algumas passagens mais que outras, justamente em pontos que nos fazem pensar, concordando ou não, ou simplesmente parando onde nos "aperta o calo". Cada pessoa registra e interpreta à sua maneira.
Ao elaborar uma lista dos livros que mais me marcaram, me surpreendi notando certa coincidência na maioria deles, onde os autores de certa maneira criticam a sociedade de sua época, as convenções e as conveniências, o (falso) moralismo e a hipocrisia, gerando grandes conflitos psicológicos em seus personagens. Essa coincidência não deve ser por acaso.
Começando pelo clássico O Primo Basílio, onde Eça de Queirós critica a sociedade lisboeta através do micro-cosmo doméstico de Jorge e Luísa (que mostra Jorge como o retrato do marido burguês, atarefado em seu trabalho, e Luísa, como esposa frívola, limitada intelectualmente e até ingênua; fora a representação da luta de classes através da amargurada Juliana). Retratando as convenções sociais do casamento e seu conseqüente tédio, Eça traça um panorama ainda atual. (Engraçado que não vejo Luísa como culpada e sim vítima do sistema pré-estabelecido.)
Seguindo a linha crítica a instituições, coloco Dom Casmurro, de Machado de Assis, onde o machismo, o sentimento de posse, a dúvida e a insegurança do medíocre Bentinho em relação a Capitu, mais uma vez, mostram a fragilidade da instituição casamento.
Em O Grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald que, em meio a festas suntuosas e um estilo de vida esbanjador, mostra a infelicidade de Jay Gatsby e a falsa alegria que ele queria passar à sociedade americana de sua época. Para, no fundo, esconder sua grande frustração amorosa, achando que com um estilo milionário pudesse assim atrair e conquistar sua amada do passado, a já casada Daisy.
Um paralelo pode ser feito com O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë, onde Heathcliff, filho adotivo e maltratado pela sociedade como um "bastardo" (ou empregado), tem um romance com sua irmã de criação, Catherine. Essa, sob pressão da sociedade e, como não falar, por frivolidade, casa-se com seu vizinho rico. O sombrio Heatchcliff vai embora e retorna rico alguns anos depois, pronto a se vingar dos seus desafetos e a conquistar sua amada Catherine.
Nesses dois romances, os protagonistas mostram-se como os injustiçados por uma sociedade materialista, fruto da valorização pessoal pelo status e posses de cada um. Em ambos, ficam claras as críticas a essa mesma sociedade (apesar de enfocarem épocas cronologicamente distantes) e os danos causados aos indivíduos. Mesmo assim, em nenhum dos dois romances o final é feliz; seus personagens permanecem infelizes.
Outro livro que me chama a atenção é Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, onde vários aspectos da sociedade inglesa são retratados sob o tal olhar crítico, através de personagens que podem ser considerados, cada qual, como um segmento da sociedade: a esposa burguesa entediada que procura preencher o vazio de sua vida com recepções; sua empregada amargurada; a vendedora de flores; o funcionário público de meia-idade medíocre e em crise; a velha aristocrata que se orgulha de seus antepassados nos retratos e pinturas; o ex-combatente de guerra perturbado psicologicamente. Enfim, um mosaico social, tenso, onde existe uma tênue linha que separa a posição e o lugar de cada um na sociedade, permeada por seus conflitos e dramas pessoais.
Claro que não poderia faltar Fiodor Dostoievski, no conto "A Dócil", onde a personagem órfã e pobre, vive de favor com suas tias interesseiras. Ainda que se deixe levar pela convenção de um casamento por puro interesse econômico, com um homem mais velho, dono de uma casa de penhores (note que não é por acaso). "A Dócil" mantém sempre sua altivez de espírito, o qual não entrega a seu marido. Por fim, termina por se matar. (Note a ironia do título do conto.)
Em se tratando de críticas sociais, não poderia deixar de fora o mais ácido e lúcido crítico de costumes e convenções da sociedade: Nelson Rodrigues. Os meus favoritos são o popular A Vida Como Ela É e A Menina Sem Estrela (esse último de memórias do autor, onde relata as passagens que o inspiraram em diversos contos de A Vida Como Ela É). Interessante pelo retrato do Rio de Janeiro de sua época, o carnaval, sua estada quando jovem em uma clínica para tratar sua tuberculose, o dia-a-dia e acontecimentos fundamentais que lapidaram sua personalidade, seu ceticismo e ironia.
Para finalizar, gostaria de citar uma não-ficção, e que acho de extrema importância para o entendimento da história do século XX: A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawn. Esse livro é uma análise das transformações políticas, sociais e econômicas do "curto século XX" (que teria começado na Primeira Guerra e terminado em 1989, com a queda do Muro de Berlim), amarrando-o ao "longo século XIX" (que sociologicamente teria começado na Revolução Francesa e terminado na Primeira Guerra Mundial). Hobsbawn trata as décadas também desta forma, como os anos 50, que teria começado em 1946, no fim da Segunda Grande Guerra, e terminado em 1963, com o assassinato de JFK.
Enfim, uma leitura bastante indicada, ótimo ponto de partida, uma vez que nos abre um panorama de cada época, suas conseqüências atuais sobre o mundo e sobre nós mesmos, o que somos e por que somos.
Li sobre os vários livros listados e lembrei que entre os que mais me marcaram estão: Clarice Lispector, todos, e Thomas Mann (alemão, filho de mãe brasileira de Paraty/RJ), A Montanha Mágica. Que protagonista, que história, recomendo.