Graças a Julio Daio Borges, que provavelmente nunca imaginou que responderia ao seu pedido de escrever sobre os dez autores que marcaram a minha formação intelectual, faço esta retrospectiva no melhor estilo "anamnesis" sobre o tópico já citado, sempre na esperança de que algum leitor entenda que literatura é experiência - e talvez a mais radical de todas porque envolve um contato profundo com a linguagem e, conseqüentemente, com aquele fundo insubornável do nosso ser (apud Ortega Y Gasset).
É bom lembrar ao leitor que a leitura é um dos maiores remédios contra esta bruxa chamada solidão (o outro maior remédio - este infalível - é ter uma moçoila ao seu lado que entenda que, afinal de contas, ler um bom livro depois do acto em questão é muito melhor do que fumar um cigarro) e cada vez que entramos em um mundo imaginado ou memorizado (porque, já dizia Joyce, imaginação é memória) a janela de possibilidades chega no limite do infinito e assim somos vítimas, amantes, amigos e confidentes daqueles sujeitos que resolveram colocar um pouco de suas experiências no papel. A leitura é o antídoto contra a solidão ("In my solitude you hauuunnt meeeee", sussurra Billie Holiday) porque vivemos mil e uma vidas, mil e uma mortes e sempre estamos com aquela chance de ressurreição que só o retorno à primeira página pode nos dar.
Por isso, quando, no meio desta "anamnesis" platônica, tento conceber uma lista de dez autores que me formaram (para o bem ou para o mal só Radamanto, Minos e Ione saberão), posso alinhá-los de forma cronológica para facilitar sua leitura, caro leitor, ou posso embaralhá-los para provar a inutilidade do seu conhecimento sem rumo, mas o mais importante é perceber que cada autor citado foi lido não como uma forma de querer ser curto numa conversa de bar e sim como uma vida que nunca foi deixada de lado - pois este é o verdadeiro poder da literatura: viver a vida dos outros, através da memória e do conhecimento dos outros, com seus acertos e erros, para aprender com ela e viver a sua vida da melhor forma possível.
Assim, volto aos tempos em que a infância e a adolescência ainda eram indefinidas e a primeira coisa que me vêm à mente é Holmes, Sherlock Holmes. Nos meus tenros doze anos, li todos os livros de Conan Doyle e aprendi logo imediatamente o que seria esta pequena questão que os teólogos de todos os tempos tentam resolver, mas não conseguem: o problema do Mal, a.k.a Teodicéia. Imaginem você estudar em um colégio jesuíta, teologia da Libertação avant la lettre, e toda vez que o professor dizia que Deus era bom, etc. e tal, a memória lhe remete para o apartamento 221B Baker Street e você se lembra do catálogo de crimes que o Professor Moriarty fez para aterrorizar Londres. Hummm, difícil, não? É provável que o meu fascínio pelo Mal tenha surgido destas leituras dos livros de Sherlock Holmes, além de uma batelada de romances noir (leiam Dashiel Hammett, leiam!) e de Georges Simenon.
De Holmes vamos para o bom e velho Bill Shakescene, como Ben Jonson (who?!) apelidou um tal de William Shakespeare, dramaturgo, poeta e famoso beberrão. A leitura de "Hamlet" aos quatorze anos foi um espanto e, se Aristóteles estiver certo ao dizer que o início do conhecimento vem com o assombro, então aí que as coisas começam a fazer algum sentido: sim, era só substituir Dinamarca pelo Brasil e, aquela sensação de ser o único são em um hospício, tinha toda uma nova forma de expressão (Não, meu pai não morreu envenenado e não há casos de incesto na família - e eles vão bem, obrigado -, apesar de já ter me relacionado com uma suicida, mas isto é uma outra história). A linguagem de Shakespeare é de uma exuberância ímpar e basta prestar atenção que você sentirá que toda aquela poesia aparentemente rebuscada lida com os assuntos centrais da existência humana: amor, morte, família, sexo, loucura, luz e trevas porque, afinal de contas, quando se trata destas últimas, uma não consegue viver sem a outra.
E por falar em "this thing of darkness that I acknowlegded as mine", confesso que dei uma de Kierkegaard e dei um salto de desespero de um depressivo príncipe para um defunto não muito brilhante chamado Brás Cubas. Não se pode falar de livros que fazem a sua formação se o nome de Machado de Assis não for citado. Quem nunca passou os olhos em uma linha escrita por Machado não conhece a língua portuguesa e, o pior, não conhece os meandros da alma humana - especialmente os meandros mais escuros. Nos quatro maiores romances que a literatura brasileira já nos deu - "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba", "Dom Casmurro" e "Esaú e Jacó" -, Machado analisa nossa mesquinhez, nossa inveja (e nunca a nossa cordialidade pois esta nunca existiu, ao contrário do que pensava Ribeiro Couto e o pai do Chico), nossa infinita capacidade de fazer o Mal. Quem quiser entender o brasileiro, leia Machado; quem não quiser fazer uma coisa nem a outra, que tome um piparote e vá para o inferno.
Dos quatorze aos dezessete anos devorei Machado de Assis. E o problema de permanecer em um autor que, por mais genial que seja, possui uma visão inegavelmente pessimista da natureza humana, é que você começa a ver tudo da mesma forma. E, como sabem, o homem não é o summum malum que Hobbes imaginou. Por mais difícil que isso pareça, há um resto de bem nele. Assim, senti que deveria procurar algo mais "iluminador" - e lá fui eu para os pubs irlandeses ao encontro de James Augustine Joyce e seu "Ulysses". Entretanto, havia um obstáculo: não tinha condições para ler "Ulysses". O romance não era complicado apenas do ponto de vista formal - aqueles longos parágrafos sem vírgula, aqueles fluxos de consciência fragmentados -, mas Joyce inseriu um catálogo enciclopédico de erudição que não possuía. Então tomei uma decisão: faria um guia de leitura e estudaria cada livro necessário para entender o "Ulysses". Aliás, aconselho este método a qualquer um que tenha dificuldades em ter uma disciplina para leitura: escolha um livro bem complicado, daqueles impossíveis de serem lidos e leia tudo o que for relacionado com ele para compreendê-lo melhor. É tiro e queda - em menos de um ano sua mente ferverá como uma panela enciclopédica.
E graças a "Ulysses" descobri uma série de autores que me ajudaram a enfrentar melhor a dureza da vida: Yeats, Eliot, Homero, Dante, Vírgilio, Thomas Mann, Hermann Broch, Proust, Chaucer, Donne - faça a lista e você terá o nome que quiser. E, sim, ao ler o "Ulysses", consegui entendê-lo porque, mesmo com toda aquela carapuça erudita e de virtuosismo técnico, é a história singela de três pessoas que, no dia 16 de junho de 1904, descobrem a importância de si mesmos em um mundo consumido cada vez mais pela anulação do indivíduo e de seus valores morais. Por incrível que pareça, "Ulysses" me ensinou o valor do indivíduo frente a uma sociedade que quer dominá-lo a qualquer custo e, se não fosse por James Joyce, nunca descobrira a palavra-chave que envolve a magia da literatura e que consiste naquele dom que Santo Agostinho afirmou que somente os verdadeiramente abençoados possuem: a perseverança.
Logo depois de "Ulysses" (e, para a sua informação, caro leitor, não li "Finnegans Wake"; fica para a próxima, viu?), chegou em minhas mãos três livros: "V.", de Thomas Pynchon, "Minima Moralia", de Theodor Adorno, e "O Jardim das Aflições", de Olavo de Carvalho. Os três têm uma visão-de-mundo completamente paranóica e me ensinaram que, afinal de contas, a paranóia sempre mantém o ser humano atiçado com as coisas ao seu redor - e isso, hoje em dia, é a coisa mais importante do mundo: to pay attention, pay attention, old pals. E cada um me levou para novos caminhos literários: Pynchon e Olavo me levaram para o estudo sério de filosofia com Eric Voegelin, um dos maiores filósofos do século XX, e injustamente desconhecido no Brasil (seu "Order and History" é essencial para se entender porque estamos na situação desoladora em que nos encontramos), além de Olavo ter me aberto os olhos para a poesia de Bruno Tolentino que, no ano passado, publicou o livro que colocou a literatura brasileira no seu devido eixo: "O Mundo Como Idéia" (aliás, vencedor do prêmio Jabuti e do prêmio José Ermínio de Moraes, dado pela Academia Brasileira de Letras). E, finalmente, por último mas não menos importante, Adorno me levou a Marcel Proust que, com seu "Em Busca do Tempo Perdido", me fez reaprender a arte da escrita e, principalmente, a íntima relação entre a literatura e a memória. Assim como a luz e a sombra, uma não consegue viver sem outra e, como já disse, a literatura é uma experiência que só pode ser compreendida pela libertação da memória. O escritor usa a lembrança da mesma forma que um médico usa o bisturi: dissecando cada momento de um fato ou cada gesto de uma pessoa para descobrir o inesperado que quebra o hábito e revela, enfim, o mistério da vida. Cada um dos autores citados e cada um dos seus livros me deram a memória e o conhecimento que nunca poderia ter em uma única vida. E espero que o leitor que leu este relatório "anamnético" possa fazer o mesmo, ao superar os obstáculos da vida, principalmente para continuar com a perseverança dos verdadeiramente abençoados.
Não só este texto ,mas como todos os outros que relatam os dez livros básicos na formação intelectual são interessantes.
Acredito até que deva haver produção de mais artigos envolvendo o mesmo tema de modo a tornar isso uma série , que com certeza terá grande importãncia para a formação de bons e novos leitores
Abraços e considerações
Victor