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Biblioteca Básica
Quinta-feira,
9/10/2003
Dez Autores
Ricardo de Mattos
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Não tenho e nem posso já ter uma lista de dez livros definitivos, ou ditos "os mais importantes". Afinal tenho apenas 27 anos. Por mais que tenha lido, é satisfatório lembrar da imensidão da selva de livros a minha frente. Quantas obras por conhecer e quantas ainda serão escritas? Instalado nesta escrivaninha arrolo não livros, mas autores, sem saber se alcançarei a dezena indicada. Quando gosto da obra de um autor, costumo adquirir todos os títulos disponíveis. Assim recentemente com Svevo.
Na escola, no começo de cada ano, havia o hábito de se pedir para cada aluno levar um livro e ajudar a formar a biblioteca da classe. A minha freqüência, como a de todo aluno, era anotada para controle do destino do "acervo". Lembro daí que vez ou outra eu recebia algum elogio das professoras por sempre buscar um livro na caixa. Lia de tudo, mas guardei pouca coisa: as colecções Vaga-Lume, Para Gostar de Ler, O Cachorrinho Samba. Ainda nesta fase, uma professora deu-nos vários trechos de livros de Monteiro Lobato para estudarmos. Entre estes trechos, o começo de Caçadas de Pedrinho. Estudei, fiz a prova, e certo tempo depois encontrei o volume em casa, um livrinho de capa dura e colorida em verde, amarelo, laranja e branco, lido por minha mãe e por meu tio quando crianças. Reconheci o texto fornecido em sala de aula, e só larguei o livro quando terminei. Passei deste para todos os livros infantis de Monteiro Lobato encontrados em casa: Memórias da Emília, O Minotauro, Gramática da Emília, Os Doze Trabalhos de Hércules. Manifestei o gosto ao meu avô materno, levando-o a presentear-me semanalmente com um livro do autor e assim consegui ler toda a obra do meu conterrâneo. Anos depois foi a vez das obras adultas, ou melhor dizendo, os contos, a começar pelo Urupês, n'uma edição da década de vinte do século passado, com a ortografia de então. Se já havia o volume em casa, por que adquirir outro? Bastou um pouco de esforço. Mínimo o tempo, também, de leitura dos dois volumes d'A Barca de Gleyre, correspondência entre Lobato e Godofredo Rangel: o segundo volume mencionando o primeiro de forma cervantina. Tais os elogios daquele à obra deste, Vida Ociosa, que passei anos atrás do livro. A amizade de Lobato e a minha expectativa talvez tenham sido exageradas, pois a leitura foi frustrante.
Estava ainda no primário, quando tive meu primeiro contacto com Machado de Assis, através de Helena. Sempre lendo de tudo, sem muito critério, virtude que tento manter até hoje. Muito petulante, já havia lido meu primeiro Dostoievski — Recordações da Casa dos Mortos — e desnecessário dizer que só mais tarde pude apreciar verdadeiramente esta obra. A estória da moça Helena apresentou-me o mundo de Machado de Assis. Por ler e ouvir música ao mesmo tempo, vinculei este livro à Sinfonia Pastoral de Beethoven. Tomo o livro, lembro da música; ouço a sinfonia, lembro da narrativa. E mais tarde busquei os demais títulos: Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Braz Cubas, Quincas Borba, Ressurreição, A Mão e a Luva, Esaú e Jacó, os contos. Conheci paralelamente a obra de José de Alencar, começando por O Guarani, mas preferi aquele a este. Ao final do ano passado li sem muito ânimo o pomposo e artificial A Pata da Gazela. Não desmereço José de Alencar. O Guarani impressionou-me à época, principalmente o desfecho com a explosão da casa. Eu imaginava que se um dia também precisasse explodir a minha, deveria ser daquela forma, com toda a monumentalidade descrita.
Ainda entre os brasileiros, indico Érico Veríssimo. Especificamente as duas primeiras partes d'O Tempo e o Vento. A terceira — O Arquipélago — foi descaracterizada por tanta preocupação política. Tenho a obra completa do gaúcho e recentemente tornei ao Gato Preto Em Campo de Neve. Acompanhei o conhecimento da vida pela menina Clarissa, aprendi algo com Olhai os Lírios do Campo. Nós temos muito boa literatura, só precisamos parar de exigir que cada uma seja uma obra-prima. O brasileiro parece ter a mania de tomar um livro e pensar enquanto lê: "Joyce não escreveria assim", ou "Oscar Wilde teria feito melhor". Afianço que tal posicionamento impede a fruição prazerosa do livro.
Honoré de Balzac foi praticamente um professor. Eu tinha entre quinze e dezoito anos quando entrei em contacto com sua obra, através da famosa colecção organizada por Paulo Rónai, e fiquei estupefacto ao reconhecer na sociedade as atitudes descritas nos seus livros. Isso aqui, em São Francisco das Chagas de Taubaté! O marido usa a esposa para ostentar sua riqueza, mas mantém-la com a carteira vazia, o avarento, solteirões retirados da vida social, as personalidades femininas descritas em Memórias de Duas Jovens Esposas. Pensei estar sendo influenciado mas não, arte e realidade estavam emparelhadas, porém os personagens melhor elaborados que as pessoas. Parei no terceiro volume e pretendo retomar a leitura no próximo ano e ir até o fim.
Na mesma época, conheci o terrível Marquês de Sade. Fiquei assombrado. Era tudo realidade ou só imaginação? Mesmo sendo apenas imaginação, qual sua fonte? Eu conheci primeiro a figura do Marquês, daí procurei seus livros. Compreendi a crítica à religião, ao Estado — vide o panfleto embutido n'A Filosofia da Alcova — mas a questão sexual foi assinalada. Desde então, venho observando tudo o que o ser humano faz em nome do prazer, e caramba, até onde pode alcançar. Quando inocentemente julgo já ter visto de tudo sou novamente surpreendido, não sem espanto na maioria das vezes. Por isso sou renitente em aceitar que "tudo que dá prazer é válido", pois anteponho a dignidade ao sexo e ninguém me convence da não ocorrência de patologia em certos casos.
Na área jurídica, aprecio muito a erudição de Pontes de Miranda. Contudo, o livro mais influente em minha formação é Hermenêutica e Aplicação do Direito, do professor Carlos Maximiliano. Agora convencionaram rejeitá-lo como datado, ultrapassado, insuficiente, errado, etc. Saio em sua defesa e afirmo não haver autor contemporâneo responsável por livro equivalente, tanto pelo valor quanto pela defesa do bom senso na prática forense. Foi meu livro de cabeceira e todo o escrito posteriormente, de forma pretensiosa ou não, acaba por repetí-lo sem o mesmo talento.
Tenho Michel de Montaigne como um amigo mais velho a transmitir-me sua vivência e ajudando a evitar erros. Já li e reli Os Ensaios e tornarei a fazê-lo enquanto tiver olhos. É questão de temperamento: aprecio sua lucidez a forma como expõe um problema e a solução mais racional. Seus devaneios levam-no bem longe do assunto inicialmente tratado — algumas vezes é deveras esquecido — e são na verdade um acréscimo. Tomara alguma editora providencie os seus diários de viagem. A despeito desta admiração, quem abriu-mos olhos para a importância da Filosofia foi Descartes. Estava n'uma livraria esperando a vendedora providenciar meu pedido, quando encontro Discurso Sobre O Método em uma estante de arame. Eu tinha dezassete anos, cursava o terceiro ano colegial. Lembro bem o período, pois li o nome do autor na capa e sendo sofrível aluno de matemática, adquirí-o visando obter algum auxílio. Este auxílio perdura até hoje. Foi algo próximo ao famoso estalo do Padre António Vieira. Tanta coisa segui-se à leitura do Discurso, que seria trabalhoso e indiscreto enumerar.
Nem tenho mais como expressar minha admiração por Dostoievski. Compro todos os livros lançados e hesito um pouco antes de ler. Ele não afagará a cabeça do leitor, nem abrandará as cores das situações descritas. O homem pagou com Dostoievski o preço de ser como é. Não só foi desvendado, como obrigado a olhar tudo que foi descoberto. Dentre os russos, este o favorito.
Monteiro Lobato, Machado de Assis, Érico Veríssimo, Honoré de Balzac, Marquês de Sade, Carlos Maximiliano, Montaigne, Descartes, Dostoievski. Nove até agora. Para encerrar a lista, incluo Tolstoi. Sobre Tolstoi, descobri uma teoria esdrúxula. Eu procurava no dicionário jurídico, organizado pela festejadíssima Maria Helena Diniz, um sinónimo para "tomador". Perto deste termo, encontrei "tolstoismo", com a nauseabunda definição atribuída a um tal José Lopes Zarzuela: "homossexualismo que leva o paciente a ceder às exigências do parceiro, entregando-lhe dinheiro, jóias, etc., chegando até mesmo a cometer delitos para tanto". Gostaria de saber quais os fundamentos deste diagnóstico e porque a vinculação ao grande escritor. É uma situação cretina, a exposição desnecessária de um grande nome que não possui em sua biografia nada que dê embasamento a isto. Jamais haverá quem escreva algo próximo a Guerra e Paz, assim como jamais alguém pintará um tecto similar ao da Capela Sistina ou comporá sinfonia próxima à Nona de Beethoven.
De acordo com o que falei no primeiro parágrafo, se a lista limitasse-se em verdade aos "mais importantes", aos imprescindíveis, então esta seria reduzida a dois nomes: Monteiro Lobato e Descartes. De alguma forma eles conduziram-me ao conhecimento e apreciação de todos os outros. Basta falar que se não tivesse lido o Discurso, eu não buscaria mais adiante Os Ensaios. Se as obras infantis de Lobato não tivessem despertado ou ao menos mantido meu gosto pela leitura, talvez hoje eu desconhecesse não apenas os aqui listados, mas tantos outros amigos. São muitos os que poderiam constar da lista: Borges, Checkov, García Marquez, J. A. Dias Lopes, cujas colunas serviram-me de guia inicial no Digestivo Cultural.
Quase Cinco Anos Depois ...
Eu não posso deixar de acrescentar as obras de Allan Kardec, principalmente O Livro dos Espíritos. Sempre procurei respostas e sempre quis me ver como filósofo, ainda que tenha certa repulsa pelas Faculdades de Filosofia. Ao terminar este livro, percebi que o que eu buscava estava lá. Parte da minha jornada espiritual e filosófica terminava alí. Não foi uma leitura suave, pois nunca tive pejo de reconhecer que, por várias vezes, eu quis atirar o volume à parede. Contudo, gostando ou não de certos trechos, concluí que deveria aceitar a totalidade, e não apenas as partes que eu mais gostava.
Ricardo de Mattos
Taubaté,
9/10/2003
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