COLUNAS
Quinta-feira,
23/10/2003
Rio — uma cidade excitante demais
Rafael Lima
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A lerdeza da fila na bilheteria do Teatro Carlos Gomes acentuava a apreensão do diretor, que decidira segurar mais um pouco o início de Otto Lara Resende ou Bonitinha mas Ordinária. Carros de luxo ainda estacionavam nas tristes cercanias da Praça Tiradentes, de onde saltavam casais e solteiros para assistir ao texto de Nelson Rodrigues encenado por atores da Globo. Dois baleiros, tabuleiro à cintura, circulavam por ali, fazendo seus reclames: "o espetáculo dura 2 horas. Duas horas sem balinha não dá". À medida em que a fila andava, eles encerravam o expediente, contabilizando o ganho do dia. Começaram a comparar as moedas que haviam arrecadado, cada pilha maior do que a outra. Lá pelas tantas, o mais desbocado não se agüentou e soltou, naquele tom pra quem quiser saber: "Esse pessoal leva moeda quando sai de noite. Eu, quando saio com mulher, não levo moeda, não!". No Rio de Janeiro o bacana ter cultura, andar num importado do ano e escoltar mulher bonita não o impede de ser esculhambado por um zé mané qualquer na primeira oportunidade.
Essa história poderia constar do livro Carnaval no Fogo, de Ruy Castro, o mais recente volume da coleção "o escritor, a cidade", juntando-se aos tomos já editados sobre Paris, Florença e Sidney pela Cia. Das Letras, onde o autor é levado à delicada tarefa de capturar e descrever a essência de uma cidade e sua relação com aqueles que vivem do que sai de seus tinteiros. Poderia constar, por exemplo, como amostra da informalidade que norteia os encontros, própria de seus habitantes, sem a qual é impossível a completa compreensão do que o Rio de Janeiro é e como veio a sê-lo. O próprio Ruy reconheceu que os cariocas já sabem tudo o que há entre as duas capas, e que o livro teria sido escrito muita mais para estrangeiros, especificamente, um projeto de uma editora inglesa em conjunto com a Cia. Das Letras, daí a quantidade de explicações que aparecem no sob forma de apostos, justificáveis para quem conhece a cidade só de fama, nome ou novela na televisão.
Afinal, o que faz uma cidade merecedora de um volume nesta coleção? O que há de especial em cidades tão díspares quanto Paris, uma vez o centro do mundo, e Sidney, ex-colônia penal? Se fosse apenas pelo dinheiro que corre em suas ruas, Palo Alto seria algo mais do que a hoje rica cidadela que recebeu absurdos influxos monetários da Hewlett-Packard, e os ônibus de turistas japoneses teriam o que visitar além de laboratórios de micro-circuitos eletrônicos. O dinheiro apenas não conseguiu levar o requinte que havia no Rio para outros cantos, quando a capital saiu daqui, como explica Ruy Castro. Mais do que ter sido, sucessivamente, um importante porto comercial, a sede de um império e a capital de uma república, o que fez do Rio de Janeiro uma cidade notável foi o fato de ter conseguido elaborar as influências de nativos e visitantes ao longo de 500 anos de história numa síntese, "não uma aglomeração", com voz própria e identificável nos sete mares afora. Uma identidade que apresenta e abre as portas do Brasil ao mundo.
Para esboçar essa identidade, Ruy Castro divide seu livro em quatro capítulos, além do prólogo e um primeiro capítulo na linha esquentando os tamborins. Nesse primeiro capítulo fica a tentativa de fazer um perfil da cidade, entremeada pela narrativa dos primeiros encontros entre invasores portugueses ou franceses e índios locais, e também a defesa contra certos clichês negativos que assolam o carioca; nos demais, o foco é levado para, sem se limitar a, alguns assuntos específicos: carnaval ("ninguém entenderá o Rio sem entender o carnaval"; basta dizer que, algumas páginas depois, comenta-se que a Revolta da Armada "prejudicou seriamente o carnaval" do ano seguinte. "De 1930 a 1960, o Rio teve um carnaval como de nenhum outro lugar ou época", um capítulo que dá arrepios de se ler — como se alguém tivesse esguichado lança-perfume Rodouro na sua nuca), mulher (segundo Ruy, apesar da vasta safra de geólogos, botânicos, biólogos e engenheiros, o que o Rio é pródigo mesmo em mulher), centro da cidade (e a maneira como seus cidadãos interagem e transformam a paisagem) e Copacabana, num passeio levado pela mão através dos séculos, em privilegiado testemunho do processo que leva para formar a tal síntese, para que eles passem a ser reconhecidamente famosos por, bem, não importa: pelo que quer que seja. Por coisas nas quais "ninguém teria a audácia de desafiá-los".
No caso do Rio, segundo Ruy Castro, "os cariocas são bons em botequim, sandália de dedo, frescobol, caldinho de feijão e botar apelido nos outros", além de deterem recordes históricos em "pegar bonde andando, derrotar qualquer forasteiro na porrinha" ou "apanhar samba no ar feito passarinho". Se soa incompreensível jactar-se de qualidades assim, mais típico do carioca é reivindicá-las antes de partir para os departamentos "sérios", onde sempre demonstrou "aplicação e competência" — exatamente como o autor faz, alguns parágrafos depois. São aqueles onde passa em média as 40 horas e 47 minutos semanais de trabalho, de acordo com o IBGE, embora aprecie muito mais as 127 horas e 13 minutos restantes. É a tal "recusa quase carnívora a se levar muito à sério" — e levar os outros, é bom que não se esqueça. Na última vez em que desembarcaram no Rio, o ar grave foi barrado na alfândega e a solenidade levou uma calça-arriada no Estácio, bateram-lhe a carteira na Praça Mauá, de onde ela fugiu correndo para o vapor de tinha descido.
Essa capacidade crítica é alinhada ao não deslumbramento com os notórios (que faz Romário jogar futevôlei na Barra contra uma dupla de desocupados de praia ou Paulo Coelho ir ao botequim da esquina para comprar um isqueiro sem serem absolutamente incomodados em seus afazeres), à simplicidade, à profunda consciência de suas limitações e ao talento gregário para reunir gente de qualquer parte do mundo, seduzindo-a e "corrompendo-a no bom sentido" até transformá-la em carioca típica — sem cair aqui em qualquer conotação de folheto turístico —, indistinguível de um morador a não ser pela cor da pele, e nem por aí seria fácil, dada a quantidade de famílias inglesas, francesas, portuguesas, dinamarquesas, árabes e africanas que aportaram e procriaram com os que aqui estavam, gerando os tipos físicos mais diversos. È gente que reivindica a urbe para si diariamente, caminhando à beira da praia, pedalando nas ciclovias, batendo bola em qualquer espaço aberto maior do que 20 metros quadrados, sobrevoando de asa delta ou escalando uma de suas montanhas, como a Pedra da Gávea, o verdadeiro skyline do Rio, esclarece Ruy Castro. Não é por acaso que, quando "governantes, técnicos e especuladores se reúnem para deliberar a seu respeito, a terra carioca treme".
Demonstrar como o carioca se tornou esse ser deveras particular através do tempo é um dos bons motivos para se ler o livro, ainda que nem em três vezes mais páginas caberia uma explicação, porque esse tipo de coisa não se resume em fórmula. E precisamente por saber disso é que o talento de historiador de Ruy Castro se sobressai, despachando informações preciosas ao longo do texto sem soterrar o leitor num emaranhado de datas, nomes, locais; não deixando transparecer o trabalho que deu reunir aquele conhecimento todo. Por exemplo, no segundo capítulo é possível pinçar que a primeira orquestra integrada de negros e brancos no samba, regida por Pixinguinha, formou-se no Rio poucos anos depois da primeira gravação do primeiro samba ("Pelo telefone"), enquanto a primeira orquestra integrada de jazz demorou 20 anos para se formar desde o primeiro disco: a de Benny Goodman, em 1936. Ou que a cura de uma ferida na perna do presidente Wenceslau Brás por conta de um serviço da Tia Ciata, baiana da praça Onze e sacerdotisa do candomblé teve papel fundamental na consolidação das primeiras rodas de samba, realizadas nos fundos da casa daquela Tia, agora à salvo das investidas da polícia pela gratidão do presidente, livrando-a, e a seus convidados, das perseguições a freqüentadores de terreiros e jogadores de capoeira que costumava empreender.
Mas o melhor é quando Ruy se arma para defender uma tese difícil, como havia feito em O Vermelho e o Negro, ao provar que era balela essa história do Flamengo ter nascido a partir de uma facção do Fluminense. (Ou a desfazer vários mitos com as biografias de Nelson Rodrigues e Garrincha.) Aqui, a tese é de que os tupinambás, nativos da Guanabara, tribo que primeiro fez contato com portugueses e franceses, teriam inspirado os escritos do século XVI: Elogio à Loucura, de Erasmo de Rotterdam, Utopia de Thomas More e o ensaio Os canibais, de Montaigne, desaguando, nos séculos seguintes, em Montesquieu, Voltaire, e finalmente no bom selvagem de Rousseau e seus ideais de fraternidade, igualdade e lealdade. Ou seja, a Revolução Francesa não teria acontecido se não fosse o contato dos europeus com os primeiros, nativos e descalços, mas nem por isso menos... Cariocas.
Nota do Editor
Texto originalmente publicado na revista Paralelos, recém-lançada na Primavera dos Livros de 2003.
Para ir além
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
23/10/2003
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