Os filmes de Guel Arraes e Cláudio Assis, respectivamente Lisbela e o Prisioneiro e Amarelo Manga, sofrem de certa prisão a princípios estabelecidos de antemão. O primeiro está preso a certo rótulo de cinema popular, que deu muito certo com O Auto da Compadecida; o outro sofre de vontade demais, de disposição demais para chocar sem pensar muito no processo de realização.
Lisbela e o Prisioneiro é o que se poderia chamar de mais do mesmo, como já dito aqui mesmo neste Digestivo. Dirigido por Guel Arraes, este não tem nenhum pudor em igualar cinema e televisão, ação, aliás, típica de homens da televisão que se aventuram pelos ares do cinema.
Mas em Lisbela o que aconteceu foi que Guel acabou prisioneiro de seu próprio talento, demonstrado em O Auto da Compadecida. E esse espectro gerou nele a repetição, a imitação, a multiplicação e, por conseguinte, exaustão de elementos de uma fórmula, se original em determinado momento, cansativa e despropositada em outro. O filme traz os mesmos atores vivendo praticamente os mesmos personagens de O Auto da Compadecida. Mais uma vez Selton Mello é o herói às avessas, sedutor e malandro; Marco Nanini, de cangaceiro matador em um para corno matador e perseguidor implacável noutro; Virgínia Cavendish e Bruno Garcia são os coadjuvantes de ambos os filmes. Parece que Guel pôs à prova a tese de que “time que se ganha não se mexe”. Só isso para explicar a repetição dos atores, dos personagens, das situações, do humor por vezes inteligente por vezes despropositado. Mas aqui a fórmula saturou, ainda mais com a inclusão de um ator de comédia, Tadeu Mello (da Turma do Didi), que, se nas comédias de Renato Aragão ele funciona bem, num filme como Lisbela seu papel soa forçado e sem graça, ficando nítida a vontade do diretor de expor no cinema certas gags cômicas bem-sucedidas na televisão.
O sertão novamente é o palco da narrativa. Nenhum paralelo ao sertão revolucionário do Cinema Novo, apenas uma decisão em função da obra original de Osman Lins. Pelo contrário, aqui o sertão é palco do lúdico, da malandragem, do espaço do pseudoartista que leva a vida sem pensar no amanhã. Um possível revolucionário, já que Leléu é o pequeno que escapa sempre aos grandes, que se perde pela direção do roteiro, privilegiando o cômico, o farsesco, o supostamente inusitado (que, na verdade, é mais do que já esperado). O que poderia ser um embrião de algo a ser refletido pelo espectador se esvai como a lágrima na chuva pela auto-imposição do diretor de querer fazer um cinema dito popular. Para Guel, esse popular recai nas tendências a igualar duas linguagens diferentes – cinema e televisão –, montar o filme sem deixar uma possibilidade de reflexão e silêncio ao espectador, sem deixar de lado a fórmula hollywoodiana de dar ao público o gosto do final feliz.
Felizmente para os produtores, Lisbela está sendo um sucesso (3 milhões de espectadores). Para quem pensa num cinema brasileiro mais independente e original, fica o aviso de que a almejada indústria de cinema é, infelizmente, isso – filmes para entreter massas e cujo sucesso está cada vez mais permeado pelo extracinema como linguagem (distribuição, comercialização, marketing). Essa discussão e suposto hibridismo de cinema e televisão, sempre em voga no discurso de Guel Arraes quando este fala de seus filmes, já virou redundância. Assim como Lisbela e o Prisioneiro, assim como o próprio Guel. Oxalá o diretor volte a seus bons tempos quando descobrir o que é um e o que é outro, mesmo que ambos sejam a mesma coisa.
Amarelo Manga tem sido o filme que muitos viram como o fôlego de rejuvenescimento que faltava ao cinema brasileiro. Vencedor de diversos prêmios pelo Brasil, essa obra do pernambucano Cláudio Assis é um libelo da ambigüidade encontrada no cinema brasileiro. Tem suas qualidades, em especial nos atores, na fotografia de Walter Carvalho e na fuga do eixo Rio-São Paulo, mas esbarra em elementos muito simples do que se convencionou ser o embrião de revolução, da rebeldia, da renovação: mostrar imagens que chocam. E Amarelo Manga bebe desse elixir alucinógeno – contém imagens que buscam chocar os mais pudicos. A começar pelo cartaz do filme, que só os olhos mais atentos verão um púbis feminino. Cenas da morte de um boi, o sangue escorrendo e o sofrimento do animal contrastam com cadáveres, o púbis loiro em close da dona do bar, as imagens sugeridas pela poesia do amarelo podre e a transformação radical da cristã devota em devassa e transgressora. Tudo muito bem costurado, mas que soa como fetiche do chocante. A intenção do diretor não foi fazer um filme, mas sim chocar uma classe média estabelecida, que é maioria nas salas de cinema. O filme foi um pretexto encontrado para tanto.
Um filme que busca retratar o submundo do Recife parece cuspir seus personagens e lhes vestir carapuças que nos façam repudia-los. O homossexual de Matheus Nachtergaele se mostra implacável ao que se refere à realização de seus desejos. Como não ver certo preconceito e estereotipação quando, num monólogo para o espectador, Dunga diz “Bicha quer, bicha faz!”? Certo que este é o personagem criado por Assis, não é ele uma representação de todos os homossexuais, mas quando se fala em ética no cinema e se critica Cidade de Deus, não podemos fugir da discussão com tal argumento. Que o diretor exponha certo ceticismo e ranço frente à humanidade, é inteiramente compreensível, mas o que Amarelo Manga mostra é toda uma série de personagens que fogem de qualquer esquema de identificação e projeção do espectador. Assis nos afasta de seus personagens, nos nutre certa aversão e a nossa aversão é a mesma dele próprio frente à sua criação. Isso porque nenhum dos personagens é confiável, nenhum deles é valoroso em algum aspecto; ressalta-se o lado obscuro. O que deveria ser uma virtude do filme – bem e mal não estarem pré-definidos – se perde no caminho, o que impede a direta conexão filme-personagem-espectador. Dunga, o homossexual, que em tese teria a virtude de ser mais sensível e compreensível porque sofreria com o preconceito, se mostra sórdido e calculista para atingir seus objetivos; a esposa devota e religiosa, quando descobre a traição do marido, transforma-se em outra mulher, explodindo num casamento de sexo e luxúria do modo mais devasso possível.
Se um filme é algo para ser visto, suas idéias e como elas estão representadas também são. Percebê-las ou não, no campo do consciente, é de cada espectador; já no campo do inconsciente não. Daí toda a polêmica em torno de propagandas com mensagens subliminar consideradas antiéticas.
Pode-se detestar o filme de Assis como também se pode amá-lo, depende de como cada espectador recebe e decifra as imagens exibidas, mas perceber certas reduções representativas de tipos é de responsabilidade daqueles se julgam criadores. O choque como denúncia tem um contexto de existir, mas o choque como mero estratagema de camuflar um sentimento, não.
Não dá para comparar os dois. Tirem Walter Carvalho de perto de Cláudio Assis, para ver se ele sabe fazer alguma coisa. NADA. Digo porque sei do que estou falando. Guel Arraes é um gênio. Basta. Sabe tudo. Aprendeu cinema lavando o chão do estúdio e limpando moviola com Jean Rouch e Godard. Hoje faz o que quer.