COLUNAS
Segunda-feira,
16/7/2001
Diários já foram da corte
Eduardo Carvalho
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Um hábito que parece que se perdeu é o de escrever diário. Todos os grandes homens, depois que um outro inventou a palavra escrita, reservaram um tempinho do dia para se debruçar na escrivaninha e escrever o que lhe viesse à cabeça, sem compromissos. O fato de se colocar no papel algumas impressões cotidianas, ao reduzir a velocidade do fluxo normal do pensamento, exige do escritor amador que repense questões, reveja comportamentos, alinhe raciocínios, organize idéias, articule pensamentos, recupere lembranças. É um exercício de auto-análise e, ao mesmo tempo, um alivio terapêutico, em que tudo, e especialmente falar mal dos outros, é permitido.
Hemingway, não bastasse a publicação de "Paris é uma festa", entregou curiosos hábitos de amigos íntimos e ilustres. Mencken, que já metia o pau nos outros abertamente, revelou em suas memórias um estilo admiravelmente leve. O relato que Darwin deixou da sua viagem pelo mundo à bordo do Beagle é ainda hoje motivo de inspiração para qualquer aventureiro. As anotações que Marco Polo fez, em suas viagens pelo Oriente, serviram-lhe depois para compor seu "Livro das Maravilhas", e ampliar os horizontes de toda uma civilização. Colombo escreveu, em sua vigem à América, um diário que G. Garcia Márquez chamaria, quinhentos anos depois, de "o primeiro livro de realismo fantástico". Eu provavelmente não deixarei nada de muito especial para os outros, mas deveria ao menos ter o direito de escrever o meu próprio diário. Mas quando, em uma grande papelaria, perguntei por um, fui apresentado a um caderninho com cadeado dourado e capa de pelúcia cor de rosa-choque. Virou coisa de menininha.
Qualidade total
A revista TPM anuncia que vai tratar mulher como até então parecia impossível em revistas femininas: sem considerá-las idiotas. Para quem não sabe, e também não desconfia de nada, Paulo Lima, seu editor, amigo de Luciano Huck, é um dos, digamos, idealizadores de personagens como Tiazinha e Feiticeira. Inovou. Em vez de apenas tratá-las como idiotas, fabrica-as como tal.
Apagão
Recomendado por um amigo para que lesse Peer Gynt, obra-prima de Ibsen, segundo Borges, fui procurá-lo em algumas das grandes livrarias paulistanas. Nada. Nem sombra. Aliás, sim, havia uma sombrinha, ou melhor, um raio de luz, projetado pela escritora Ana Maria Machado. Era uma adaptação para crianças.
Mas não encontrei nenhuma tradução do texto integral. Os adultos, pelo que se percebe dando uma olhada nos títulos dos livros destinados a eles, devem estar preocupados com outras coisas, mais importantes. Tipo ser feliz.
A história de Peer Gynt, o homem amoral, o mentiroso encantador, que sacrificou todos os princípios para se enriquecer traficando escravos e vendendo ídolos para selvagens, permanece tão atual quanto desconhecida.
Recorri, então, à Internet, e encomendei uma edição inglesa, que chegaria mais rápido à minha casa: 3 semanas. Carpeaux, austríaco, fez o que pôde para iluminar o debate literário aqui no Brasil, e chegou a escrever que "Peer Gynt continua a ser a imagem mais completa da natureza humana criada desde o Faust." Nada adianta. Continuamos no apagão.
A julgar pelas aparências...
Paulo Markun até que tentou, mas parece mesmo impossível extrair um discurso honesto de um político cubano. Segunda, 18/6, no Roda Viva, o presidente da Assembléia Nacional Cubana, Ricardo Alarcón, repetiu a mesma ladainha castrista de sempre. O curioso é que, entre tantas falácias, alguns detalhes supostamente irrelevantes passam batidos, como consenso. Um deles é, como reafirmou lá um jornalista do Valor, aparentemente bem intencionado mas mal informado, o de que o governo de Castro é amplamente apoiado pelo povo cubano. Parece, mas não é. Em Cuba, há um Comitê Revolucionário em cada quarteirão, literalmente, fiscalizando e controlando cuidadosamente, como na distopia de Orwell, a vida de seus habitantes. Qualquer opinião corriqueira pode ser suspeita de conspiração anti-revolucionária. Não é por outro motivo que 1 milhão de havaneros foram às ruas, no último 26 de julho, supostamente apoiar Fidel e marchar contra o bloqueio norte americano. Puro medo. Depois de uma hora e meia dizendo absurdos, como o de que há liberdade civil e de imprensa em Cuba, tem gente que ainda quer que acreditemos que comunista não come criancinhas. Pode até não comer. Mas que parece...
Estudantes paulistanas
Subindo a Augusta às 11 da noite, eu e um amigo. Por mais que pareça estranho, voltávamos da apresentação da Ute Lemper, no Cultura Artística. Para distrair, procurávamos alguma mulher na rua que não fosse prostituta. Estava frio. Duas meninas saem de um hotel e atravessam a rua na frente do nosso carro. Caras de estudante, cabelos de estudante, roupas de estudante. Até mochila de estudante. Meu amigo não teve dúvida: "Essas daí não, olha só, coitadinhas, acabaram de sair da faculdade. À esta hora, sozinhas na rua, num lugar destes... Podem estar perdidas." Fiquei quieto. Mal atravessaram a rua, o magrinho de bigode abriu a porta pra elas. Entraram, e subiram uma escada comprida, escura. Foram sumindo devagar, primeiro os cabelos, depois as mochilas, as calças, os sapatos. Desapareceram. Espero que estejam fazendo uma pesquisa para um trabalho de antropologia...
Eduardo Carvalho
São Paulo,
16/7/2001
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