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Sexta-feira,
12/3/2004
Laymert politizando novas tecnologias
Daniel Aurelio
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Ao contrário da acidez discursiva adotada contra os intelectuais, afirmo a tolice de renegá-los por completo. Etimologicamente, aliás, a palavra já elimina o charlatanismo acadêmico e serve apenas aos homens de estirpe. O prefixo "pseudo" está ai, é usado exaustivamente, e não me deixa confundir o "ser" e o "parecer ser". Então, sem a menor crise, farei a crítica ao livro Politizar as novas tecnologias (Editora 34, 2003)
, escrito por um desses ilustres pensadores, o professor Laymert Garcia dos Santos.
Laymert é doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Paris IV e titular de cátedra na Unicamp. Não tem olhar blasé e nunca o vi levar a mão ao queixo ao posar para fotografias, mas tem aqueles vícios que a plebe adora espinafrar. Ainda assim, e por isso mesmo, vou executar o movimento contrário ao eixo mais óbvio e resenhar sua coletânea de ensaios. Vamos ver no que resulta.
Pode ser uma generalização de ocasião, não sei. Mas separo os intelectuais em categorias de especulação e nenhuma, em absoluto, é maior do que a outra: há os que, como Norberto Bobbio e Bertrand Russel, subvertem a linha rasa da cronologia e adiantam, em décadas, temas pulsantes e mudanças comportamentais e os que se atêm a análises de fenômenos passados para depois meterem o dedo na ferida do horizonte, como bem fizeram Focault e Norbert Elias. (Claro, a ruptura de pensamento não é tão dura e chapada assim e os grandes mestres sempre passam por diferentes estágios. Apenas utilizei-me de alegoria momentânea. Acho que ela cabe.)
Um terceiro grupo, menos numeroso, se não é sempre certeiro, de longe é o mais corajoso. Constituí-se de indivíduos que decidem pensar com a locomotiva em movimento, no chamado "tempo real". Laymert faz parte desse time, que encontrou nos velhos frankfurtianos e no indefectível Maquiavel a sua melhor tradução (Marx tinha tudo para alinhar-se ao primeiro grupo, mas usou do expediente do segundo para fracassar, junto com seus seguidores, no terceiro).
Na ausência de melhor termo, fico com a definição de Francisco de Oliveira, vertida na orelha da obra: "A produção intelectual de Laymert (...) bem podia chamar-se de olhos bem abertos para perceber a novidade, captar seu significado, enfrentar a esfinge mirando-a nos olhos". A analogia com Kubrick não é despropositada. Chico de Oliveira reverencia um dos maiores especialistas em biotecnologia e seu impacto social do Brasil.
Isso não significa, obviamente, a beatificação do professor. Até porque Laymert escreve mal pra burro. Pode apostar. O texto em si é tão ruim quanto qualquer artigo de Francisco "não obstante" Weffort. Politizar...
comprime, nas suas mais de trezentas páginas, as mais horripilantes manias e terminologias das ciências humanas, o que inclui a clássica e modorrenta repetição de passagens e a palavra "através" a serviço de qualquer mote de raciocínio. Totalmente desaprovado, portanto, para uma leitura seqüencial. Recebi meu exemplar no final de 2003. Precisei de três meses para concluí-lo. Noventa dias de nenhum prazer.
Até ai, Friederich Hegel também castigava nossos olhos e mentes com pelotaços verborrágicos de orgulhar Jacques Lacan. Seu desafeto histórico, o filósofo Arthur Schopenhauer, divertia-se a debochar dele. Cínico, alegava uma suposta ausência de clareza e concisão no autor de A Filosofia do Direito - os conhecedores do ranço legendário de Schopenhauer, entretanto, miminizam seu depoimento. A letra travada, de qualquer forma, não impediu Hegel de ter papel crucial nas noções de Direito, Estado e Sociedade Civil modernos. As grandes idéias, enfim, sobrevivem para além do estilo habilidoso.
Laymert pode não ser Hegel (é impossível que seja um dia), mas produz conhecimento de qualidade, é comoventemente destemido e abraça, com idêntica parcimônia, assuntos com variados graus de delicadeza e polêmica, como o projeto Genoma e o cinema do finlandês Lars Von Trier. Por sinal, seu artigo sobre Dançando no Escuro (que consagrou uma surpreendente Björk como atriz) figura entre as melhores coisas do livro.
Sem apelar para a futurologia abestalhada, sua obra consegue encontrar um elo de ligação sutil (e consistente) entre tecnologias dos mais diversos fins. Sobre a realidade virtual, chega a ser de uma originalidade absurda; quando busca referências e respaldo fora do circuito, torna-se um trator de idéias que não curva a espinha ao sagrado. E isso é mais que um mérito: é atestado de valentia.
Implícita ou explicitamente, abusa de Gilles Deleuze e Walter Benjamim, mas faz questão (e com profunda pertinência) de evocar nomes menos afeitos a textos científicos como o do poeta alemão Heiner Muller ou dos obscuros Richard Fuller e John Walker. No seu caldeirão fumegante acomodam-se ainda o padroeiro da causa beat alucinógena, Timothy Leary, a escritora e ativista política sul-africana Nadine Gordimer (Nobel de Literatura em 1980) e até um hacker paspalhão, perplexo com a teoria algo apocalíptica de que robôs substituirão, em menos de trinta anos, a futuramente dispensável raça humana. Espanta-se como se isso não fosse algo que já ocorresse em "chãos de fábrica" há pelo menos duas décadas. Laymert, arguto, toma como ponto de partida o antagonismo entre discurso e método do rapaz. A humanidade está confusa e amedrontada, pêndula entre vitima e vilã.
Reconhecer se o autor cumpriu a promessa do título (politizar, no sentido estrito e massificado, o debate sério sobre a tecnologia) é problemático, pois o livro continua reduzido ao seu meio e não parece mostrar sinais do contrário - o texto e a divulgação também não colaboram. Mas Laymert, indubitavelmente, pegou na veia. São a tecnocracia, a política silenciosa do Estado e os serviços de inteligência & deptos. de pesquisa, com seu dialeto próprio e impenetrável, que maculam a imagem do intelectual e a aproximam da anedota. Na impossibilidade de compreender o "economês", o "sociologês" e as linguagens programáticas dos computadores, é razoável que fiquemos putos. Afinal de contas, elas são justamente as matérias cardeais para nossa vida social.
Ao mesmo compasso em que somos distraídos com plebiscitos sobre o regime político ou quem deve ser o próximo eliminado do Big Brother
, decisões verdadeiramente valorosas são tratadas e resolvidas, na calada da noite, por técnicos e iniciados. Afastar o populacho do saber jurídico-econômico-administrativo é o bastante. O resto resume-se a gritos efusivos de gol e o exercício bienal do voto.
Como tese, o resultado final é impecável. Todavia, é Laymert o primeiro a desobedecer ao próprio clamor pela democratização real do conhecimento. Talvez o medo de exceder no didatismo e "infantilizar" o leitor tenha atrapalhado a redação final do grande professor. Com isso, nosso analfabetismo digital perdura mais um bocado.
Se ao menos ele escrevesse como o Élio Gaspari...
Para ir além
Daniel Aurelio
São Paulo,
12/3/2004
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