COLUNAS
Quinta-feira,
11/3/2004
Heloisa Seixas e as pérolas absolutas
Adriana Baggio
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A pérola, por seu processo de formação, é uma metáfora conhecida para a capacidade do ser humano em transformar uma situação crítica em algo bom. De uma forma mais popular, o mesmo processo pode ser descrito pela tirada "fazer do limão uma limonada". Em seu sétimo livro, Pérolas absolutas (Record, 2003), Heloisa Seixas descreve o processo pelo qual duas mulheres se redescobrem depois de uma relação destrutiva com o mesmo homem.
A narrativa mostra que não dá para culpar apenas Anatole, o tal homem, pelos estragos causados na alma destas duas mulheres. De formas diferentes, ambas sofreram com o tipo de opressão psicológica que só as famílias podem impor aos seus membros. Opressão essa que se reflete nos caminhos que as duas seguiram.
A história se passa no espaço de 24 horas. No decorrer deste período, a narrativa alterna-se entre o presente e o passado de cada uma delas. Para o leitor, diferenciar quem está falando e em que tempo não é nada fácil. Mas parece ser essa a intenção da autora: não somente pelo conteúdo, mas também pela forma, fazer o leitor entrar na loucura de Sofia e Lídice, e ter contato com os monstros que assombram cada uma delas.
Parece que este tipo de narrativa polifônica e entrecortada está na moda, tanto no cinema quanto na literatura. Em relação ao primeiro, o exemplo mais recente é o filme 21 gramas, onde a história é contada alternadamente pelos seus diversos personagens, também em tempos alternados. A vantagem em relação ao livro é que, se o tempo fica indefinido, os personagens, não. A visualidade do cinema não existe na literatura, o que torna essa última expressão mais interessante para o jogo de esconde-esconde arquitetado pelos autores.
Em Pérolas absolutas é preciso acostumar-se com as personagens e com suas características para poder descobrir quem está falando. A autora facilita nossa vida ao criar (partindo-se do princípio de que se trata de ficção) uma personagem morena - Sofia, e outra loira - Lídice. Mas além delas, percebe-se na narrativa mais duas vozes: a de Lídia, gêmea esquizofrênica de Lídice, e um narrador em terceira pessoa, observador dos fatos, que poderia ser a própria autora. Apesar de afirmar conhecer as teorias literárias apenas superficialmente, Heloisa Seixas maneja com habilidade a polifonia e a ruptura do tempo, na medida certa para que a confusão do leitor desperte o interesse pela obra, mas sem que chegue ao ponto de abandoná-la por não compreendê-la.
A própria narrativa tem um pouco de esquizofrênica, e isso parece já fazer parte do estilo de Heloisa Seixas. Ela assume que a paixão, a loucura e a morte são temáticas comuns em suas obras. Assim como elementos que são quase como uma obsessão - os gatos, os velhos, os espelhos, os olhos, as portas, a lama. Em Pérolas absolutas todos esses elementos estão presentes. Um exercício interessante é buscar seus significados e, com essa informação, reler a participação deles no contexto da obra. Os dicionários de sonhos mostram que os gatos, por exemplo, podem representar um aviso de que se pratica ou se prepara uma traição. Sofia, a traída esposa de Anatole, tem uma gata. Sofia também interage com outro elemento extremamente simbólico, que é a lama. Como bióloga, ela vive pelos manguezais, que também representa o seu refúgio. A lama, no entanto, pode significar uma situação perigosa, pela qual ela passa no início da história ao se encontrar com Lídice: a sua rival, amante de Anatole, chega com uma arma, disposta a matá-la.
Lídice, por sua vez, vive uma relação extremamente desgastante e sufocante com sua mãe, que exagera a gravidade de suas doenças para chantagear emocionalmente a filha. Lídice sonha com a morte da mãe para se libertar. Oniricamente, a figura da mãe morta ou prestes a morrer representa a recuperação da saúde, o que no caso de Lídice é um sinal muito claro: liberta do jugo da mãe, ela poderia libertar-se também de seus demônios interiores e salvar-se da loucura que parece inerente à sua família.
Como numa tensão dialética, Sofia e Lídice encontram-se e percebem-se em síntese, como partes separadas que finalmente se juntam. A ausência de Anatole permite a elas essa união. Por dividirem o mesmo homem, Sofia e Lídice são "irmãs de sêmen", líquido nacarado que recobre as impurezas, o machucado, o ferimento, dando origem a pérolas absolutas. Em frente ao mar, como que para se reconciliarem com suas vidas, elas parecem ter encontrado a paz. Como o mar representa o aguardo de uma aventura amorosa, de algo novo em andamento, Sofia, Lídice, Lídia e Heloisa, "no derradeiro instante, querem ainda dizer que, apesar de todo pranto, todo horror e toda mágoa, esta é apenas - e acima de tudo - uma história de amor."
Para ir além
Adriana Baggio
Curitiba,
11/3/2004
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