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Terça-feira, 23/3/2004
Os desafios de publicar o primeiro livro
Luis Eduardo Matta
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+ 37 Comentário(s)

Costumo dizer que é preciso muita coragem, paciência e uma atração fora do comum pela Literatura e pelo ato de escrever, para uma pessoa, em algum momento da vida, cometer o desatino de querer ser escritor no Brasil e aceitar enfrentar os percalços espinhosos decorrentes desta, eu diria, quase irresponsável decisão. Não só pelo trabalho em si, que é árduo, demorado e, muitas vezes, penoso, como pelas pobres perspectivas de êxito num mercado ainda imaturo, tacanho e rudimentar, cujo grau de profissionalismo, a despeito dos inegáveis avanços verificados na última década e meia, encontra-se ainda muitíssimo aquém do desejado.

Um autor desconhecido que deseje transformar o manuscrito no qual trabalhou durante meses, às vezes anos, num livro publicado terá pela frente uma missão muito mais difícil e enigmática do que imagina. É um problema que aflige uma enormidade de brasileiros - em especial jovens apaixonados pela escrita ou, tão simplesmente, pela perspectiva de construir uma carreira literária -, os quais fazem chegar, semanalmente, às nossas casas editorias centenas de manuscritos, na esperança de que sejam lidos e, quem sabe, publicados dali a alguns meses. Raras vezes isso acontece. Ao que parece, impera nas editoras uma indisfarçável má-vontade em lidar com autores inéditos, o que é comprovado pelo precário processo de avaliação de originais não-solicitados praticado na maioria delas. Em geral, esta função é delegada a assistentes editoriais pouco graduados que, depois da leitura de umas poucas páginas intercaladas, encaminham os textos diretamente para a pilha de devoluções, como num jogo de cartas marcadas, onde a sentença já está decidida antes mesmo de iniciado o julgamento. E então, num prazo que costuma variar de trinta dias a um ano após a remessa dos originais, o autor recebe um comunicado frio e sucinto da editora, informando que o livro não se encaixa na linha editorial da casa (mesmo quando se encaixa) ou que o cronograma de lançamentos para os próximos meses já está definido (mesmo quando não está. E em geral nunca está. Isso porque, quando um título interessa, os impedimentos imediatamente desaparecem) ou as duas anteriores juntas, isso quando a editora se dá ao trabalho de responder. Muitos editores optam pelo silêncio, acreditem ou não, por receio de que uma resposta por escrito crie um indesejado vínculo com um autor chato, que em vez de se limitar ao papel de consumidor de livros, fica amolando a editora com seus garranchos impublicáveis. Não é brincadeira. Tive a oportunidade de ouvir isso textualmente por mais de uma vez, em rodas de conversa das quais me aproximei sem ser notado durante saraus, lançamentos de livros e nos corredores da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que freqüento desde a edição de 1993.

Esse conflito entre autores e editores não é propriamente novo e a rejeição de um manuscrito por parte de uma editora está longe de significar um veredicto definitivo e irrefutável acerca da sua qualidade ou do seu potencial de vendas. John Grisham, autor de mega-sucessos como A Firma e O Dossiê Pelicano e um dos escritores de maior vendagem desde os tempos de Gutenberg, teve o seu primeiro romance, Tempo de Matar, recusado por quinze agências literárias e vinte e oito editoras nos Estados Unidos até, enfim, conseguir ser publicado com uma tiragem modesta pela pequena Wynwood Press, em 1989. E o que dizer de Paulo Coelho, que viu a primeira edição de O Alquimista ser devolvida por seu primeiro editor por haver vendido menos de mil exemplares e de Margaret Mitchell, que teve a tradução brasileira de E O Vento Levou rejeitada, nos anos trinta, por ninguém menos do que Érico Veríssimo, à época editor da Globo, que não fora capaz de prever o êxito estrondoso que a saga de Rhett Butler e Scarlett O'Hara teria poucos anos depois, sobretudo após o lançamento da sua monumental adaptação cinematográfica, hoje um clássico do Cinema internacional.

É certo que a esmagadora maioria dos originais que chegam a uma editora não possui qualidade suficiente para ser publicada, por inúmeras razões que não cabe aqui esmiuçar. Também é preciso que se diga que uma editora comercial é, antes de tudo, uma empresa, que não tem qualquer obrigação de aceitar um autor novo, de avaliar seus textos ou sequer de recebê-los. Para viabilizar seu funcionamento e obter rentabilidade, ela precisa estar atenta aos movimentos de um mercado muito disputado, onde os custos de impressão são altos, os meios de divulgação, escassos e os pontos de venda, em número extremamente reduzido, se comparados ao volume de lançamentos. Além disso, a avaliação criteriosa de um manuscrito custa caro: uma leitura crítica acompanhada de um parecer detalhado, dependendo da extensão do texto, não sai por menos de cento e cinqüenta reais. É preciso que o autor inédito tenha escrito um livro excepcional para ter sua publicação seriamente considerada e, ainda assim, ela implicará num risco que nem sempre o editor está disposto a correr. A editora Laura Bacellar, no seu guia Escreva Seu Livro (Mercuryo; 160 páginas, 2001) afirma que, para ser publicado, um original precisa basicamente: 1) ter qualidade; 2) estar dentro da linha editorial da empresa; 3) ter boas perspectivas de vendas. No entanto, dado o desdém dos editores em relação aos manuscritos que lhes chegam, um texto pode reunir todas essas características e mais alguma coisa e mesmo assim ser sumariamente recusado. Isto é: ter escrito uma obra-prima ou um potencial best-seller não é garantia de publicação.

O que os novos escritores podem fazer diante dessa conjuntura? Como poderão mostrar ao que vieram, se não conseguem sequer encontrar uma única porta aberta que lhes dê uma chance de ser postos à prova? Em países como Estados Unidos, Espanha e Alemanha eles ainda contam com a assistência dos agentes literários, que possuem um esquema ágil e eficiente de seleção e apresentação de originais, poupando os escritores do contato desgastante com as editoras, mas por aqui esses profissionais ainda são raros (menos de uma dezena, enquanto nos Estados Unidos são quase dois mil) e, em geral, com uma sobrecarga de trabalho que os impede de admitir novos clientes. Imaginem o quão difícil seria para um bacharel em Direito tornar-se um advogado renomado se não conseguisse ingressar num escritório onde pudesse pôr em prática todo o conhecimento adquirido na universidade. Assim como um advogado necessita do suporte de uma firma ou escritório para crescer na profissão, um manuscrito só poderá se transformar num livro bem-sucedido, se tiver o apoio de uma casa editorial capaz de identificar nele as qualidades necessárias para convertê-lo em algo viável, seja do ponto de vista cultural ou comercial. Digo isso, porque são raríssimas as ocasiões em que um manuscrito chega a uma editora inteiramente acabado, impecável em todos os sentidos, pronto para ir para o prelo e dali para as prateleiras das livrarias e isso é particularmente verdade no caso dos autores iniciantes. Trata-se de uma circunstância natural e compreensível. Um escritor, por estar intimamente ligado ao seu livro, dificilmente consegue avaliá-lo objetivamente e, por isso mesmo, às vezes comete pequenos deslizes que a orientação correta e profissional de um editor competente e empreendedor pode corrigir sem maiores atropelos. A lapidação de um texto é parte do processo de publicação em todo o mundo editorial civilizado. Se houvesse, por parte das editoras, uma preocupação genuína em garimpar, em meio à pilha de manuscritos inéditos, textos de talentos promissores e uma disposição em investir neles a médio prazo, certamente o mercado editorial brasileiro viveria dias melhores. Ainda porque, o autor brasileiro é barato, se comparado aos estrangeiros, que praticamente dominam o calendário de lançamentos de todas as principais editoras. Para publicar o título de um escritor de fora, além de arcar com os custos da tradução, a editora precisa desembolsar um polpudo adiantamento em dólares ou euros para o autor. Esses livros muitas vezes vendem tiragens modestas que não compensam o investimento e sua divulgação, em geral, é limitada pela evidente ausência física do escritor que não pode ser entrevistado na TV ou travar um contato direto com o público pelo simples fato de morar em outro país e a tradução brasileira de seus livros ser apenas mais uma entre tantas outras espalhadas mundo afora. Aí, eu pergunto: não seria mais simples e viável investir num autor nacional?

A Literatura brasileira contemporânea é uma sombra do que foi um dia e seu esvaziamento se tornará cada vez mais acentuado à medida que escritores em atividade, consagrados em gerações passadas, forem desaparecendo e não surgirem outros que os substituam à altura. E há muita gente boa escrevendo por aí, que não consegue aparecer e acaba engavetando seus escritos, na esperança de dias melhores. Sempre que entro numa livraria e vejo, na seção de lançamentos, o livro de um autor brasileiro estreante exposto em destaque, a primeira imagem que me vem à mente é a de um cometa. Isso porque, assim como são raras as ocasiões em que um cometa dá o ar de sua presença por aqui, muito mais rara parece ser a disposição das nossas casas editoriais de abrir espaço para os novos talentos da Literatura nacional. Eu, inclusive, caso tivesse cara-de-pau e influência para isso, sempre que fosse informado do lançamento do livro de um autor novo, trataria de, por meio da imprensa e da internet, conclamar a população a correr às livrarias para testemunhar o raro fenômeno, que, assim como a passagem de um cometa ou a ocorrência de um eclipse, só acontece entre grandes intervalos de tempo. Seria uma espécie de flash mob cultural, que, com certeza, traria ao livro uma boa visibilidade. De todo modo, está lançada a idéia.

Nota do Editor
Leia também "Uma questão de ética editorial", do mesmo autor.


Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 23/3/2004

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