COLUNAS
Terça-feira,
4/5/2004
Mino Carta e o romance de idéias
Fabio Silvestre Cardoso
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Mino Carta é um dos jornalistas mais talentosos de sua geração. Sua trajetória, que às vezes se confunde com a história do jornalismo brasileiro a partir dos anos 50, é marcada pelos veículos que criou, como as revistas Veja, Isto é, Quatro Rodas e mais recentemente Carta Capital, onde comanda uma das melhores Redações do País. Não obstante a isso, seu nome está sempre ligado à polêmica, seja porque tem fama de irascível, com direito a rompantes de ódio, seja porque busca uma postura independente para sua publicação, o que acaba destoando da versão oficial que boa parte dos jornais adota. Somados, esses dois elementos são capazes de causar estragos inimagináveis. Tanto é assim que, da ocasião do lançamento do seu primeiro livro - O Castelo de Âmbar -, não houve jornal da chamada grande imprensa que fizesse resenha ou crítica de seu livro. Ignoraram-no, simplesmente. O motivo, não poderia ser diferente, era o conjunto de revelações bombásticas travestidas de ironia que deixaram os publishers e os políticos em polvorosa, como o trecho que segue: "A presença de profissionais competentes, de grandes jornalistas respeitados pelas redações, atrapalha a sucessão no feudo e compromete os interesses de quem manda, na instância intermediária e suprema. Reparem: a nossa imprensa serve ao poder porque o integra compactamente, mesmo quando, no dia-a-dia, toma posições contra o governo ou contra um ou outro poderoso".
Agora, o jornalista, escritor e artista plástico (sim, ele também é pintor; já expôs no MASP e na Europa) lança A sombra do silêncio (W11 Editores), a continuação das memórias do jornalista Mercúcio Parla, o alter-ego de Mino Carta. Nessa "seqüência", no entanto, nota-se uma vital diferença em relação ao primeiro livro: as revelações que seguem pertencem mais à esfera sentimental, sendo pontuadas por passagens da vida política e social de Mercúcio Parla. Desse modo, ao mesmo tempo em que o leitor conhece as aventuras e desventuras amorosas do jovem jornalista os bastidores da política e da sociedade aparecem como pano de fundo.
Contudo, quem imagina que o livro se resume ao umbiguismo (hoje em moda, nos blogs) e ao denuncismo descarado (que também está em voga na "literatura") se engana. Isso porque A sombra do silêncio não é jornalismo, apesar de ter sido escrito pela Olivetti de um jornalista. É um romance. Nele, o autor embaralha alguns acontecimentos históricos, como a Ditadura, com as memórias afetivas de Mercúcio, dando ênfase à presença de Core Mio, que surge personagem essencial para o livro.
Assim, a hipótese de que o romance poderia ser contaminado pela linguagem jornalística (a saber, fatos e acontecimentos contados segundo a ótica do autor) é descartada logo no início da obra, quando o narrador descreve um sonho que nos leva até a mente de Mercúcio: "Quando soube que cariátides têm cócegas, era tarde, o prédio ruiu. Madrugada, caminhava de ouvido posto nos seus próprios passos e pensamentos, e as cariátides desfilavam ao longo das calçadas, músculos de pedra retesados no esforço de manter de pé os palácios senhoriais. Inquietava-o uma irritação ardida e difusa, aparentemente sem explicação, e lhe deu na veneta reagir com um gesto de escárnio. Sentia-o inócuo, porém necessário [...] Achou-se na última fileira de uma sala de aulas do tamanho de um auditório. Lá no fundo, do alto da cátedra, o mestre transmitia o seu saber, e ele percebeu o motivo de sua irritação. Quanto ao enredo vivido pouco antes, não sabia se fora cochilo ou vigília."
Com efeito, as referências aos sonhos de Mercúcio são os condutores da narrativa. Afora isso, o autor pontua o romance com notas sobre suas impressões que também ligam um capítulo ao outro. Em alguns comentários, surge a figura de seu interlocutor imaginário, ao qual ele chama de Honest Cassius:
"Honest Cassius, como evitá-lo? O golpe, inexorável, uma tragédia talvez muito maior do que sei e posso perceber. Primeiro vêm os oligarcas, os senhores feudais, vassalos da metrópole, o Império do Ocidente, Samueland que divide o mundo com o Império do Oriente, travam uma guerra de pequenas guerras, aqui e acolá. Aqui, e agora, a operação preventiva". No romance, Mino Carta não se refere aos fatos de forma objetiva - ou seja, o leitor não encontrará referências diretas ao Golpe de 64 tampouco sobre a Guerra Fria. Antes, faz uso de inúmeras alegorias e da estilística para dar contorno ficcional aos acontecimentos reais. É dessa forma, e com uma boa dose de ironia, que são narradas as inquietações do jovem Mercúcio Parla: "Que faço eu na Faculdade de Leis Inúteis? Por que caí nessa? Falta de rumo, de propósito. De vergonha... Um barco de pesca ao largo da Escócia, no inverno, de madrugada, em meio à névoa e sem apito, enxerga melhor que eu. [...] Jornalismo, por quê? É minha vocação? Reportagem não é bizarria, ou não deveria ser... Mas, será preciso ter uma vocação?".
Para o bem e para o mal, Mino Carta não sucumbe à onda de didatismo que parece ser a nova tônica das letras por estas plagas. Faz do estilo um exercício, mas não pára por aí. Isso porque, para além do domínio da técnica escrita, o autor faz um romance em que há idéias e não apenas estilo; questionamento e não somente digressão; forma e não só conteúdo. E é o que o leitor percebe quando entende que a raiz das indagações é mais explícita do que os sonhos de Mercúcio supõem: "Aonde me levam estes passos? Para dentro de mim mesmo, sem chegar jamais ao castelo de âmbar".
Os detalhes que compõem A sombra do silêncio são tão variados quanto bem articulados. Obedecendo a uma coerência notável, a obra caminha entre o fato e a ficção, extraindo do primeiro o tema e do segundo o contorno. Desse modo, mais que polêmicas sobre política ou revelações bombásticas sobre o jornalismo brasileiro, a obra busca respostas às inquietações perenes tanto das personagens como do autor.
Para ir além
Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo,
4/5/2004
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