COLUNAS
Quinta-feira,
27/5/2004
¡Qué mala es la gente!
Adriana Baggio
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O ser humano é o único animal capaz de rir. Por ser uma manifestação tipicamente humana, o riso está ligado à inteligência, à racionalidade. Onde há afeto não há espaço para o riso. Ambos são mutuamente excludentes. Esta pode ser uma explicação para o comportamento daquelas pessoas divertidíssimas, irônicas e sarcásticas, das quais se diz que se quer morrer amigo delas. São elas que verbalizam o que todo mundo pensa mas ninguém tem coragem de expor. A chatice do politicamente correto não existe para elas. Por isso, também são consideradas pessoas cruéis, insensíveis, maldosas. São como a Geni do Chico Buarque. Condenadas pela hipocrisia daqueles que se acham guardiães da moral, da boa educação e do bom comportamento, mas também exploradas por eles quando querem uma válvula de escape para a dureza e o ridículo da vida.
Deve ser por isso que o livro de história em quadrinhos de Quino, o famoso criador de Mafalda, chama-se Que gente má! (Martins Fontes, 2003). Mais conhecido pelas tirinhas da precoce e politizada garotinha argentina, Quino explora nessa obra o futil e medíocre dos humanos, principalmente dos latinos, com todos os seus tabus e valores deturpados. Por isso mesmo o livro é maravilhoso! Rimos de nós mesmos e isso faz com que a gente se sinta melhor com nossos defeitos. É como se ao vê-los desenhados, expostos em preto no branco do papel, nos sentíssemos menos culpados por constatar que o peso dos nossos pecadilhos pode ser dividido com toda a humanidade.
Através de desenhos e às vezes de palavras, Quino mostra diversos personagens que trazem consigo as fraquezas humanas. É lógico que, quando se fala em fraquezas humanas, a primeira coisa que vem à cabeça é sexo. Que gente má! é repleto de homens obsessivos por sexo e mulheres calipígias. Um dos quadrinhos mais engraçados mostra um garotinho na praia, tentando brincar calmamente com seu castelinho de areia, rodeado por uma profusão de peitos e bundas semi-descobertos. Perturbado, pergunta à sua mãe: "Mamãe, estou sentindo uma coisa, não sei muito bem onde, e não sei o que é. O que é?".
Sexo e poder são os temas mais presentes no livro. O sexo, através das temáticas que alimentam a luxúria humana, como a infidelidade de homens e mulheres, homens maduros com mulheres jovens, sonhos eróticos, a safadeza dos velhinhos. O poder, pelas situações de trabalho, a representação dos chefes, dos patrões, da polícia, dos governantes. Quino é produto de uma cultura onde sexo e poder são temáticas arraigadas. A Argentina é tão conhecida pela sensualidade do tango quanto pela violência do seu regime militar. Sem machismo nem revanchismo, Quino retrata com crueza, mas com muito bom humor, o reflexo da experiência com a sensualidade e com o poder no comportamento humano.
O livro de Quino deveria ser referência bibliográfica para as disciplinas de lingüística e semiótica. O cartunista usa e abusa das possibilidades de significação oferecidas pelos recursos de texto e dos traços. Quino brinca, por exemplo, com o sentido denotativo e conotativo das palavras e desenhos para construir suas idéias. Transforma expressões metafóricas em desenhos figurativos, como no quadrinho em que a mulher percebe que o ex ainda está em sua cabeça quando vai arrumar os cabelos e uma pequena figura masculina aparece presa nos dentes do pente. Já em outro quadrinho, a oposição entre traços grossos e finos é o principal recurso usado pelo autor para representar o deslocamento de poder do homem para a mulher após o casamento. O humor de Quino, além de acessível e familiar pelo seu conteúdo, também utiliza elementos iconográficos da cultura popular e, talvez por isso, provoque uma identificação tão forte com o leitor.
Quino não perdoa homens, nem mulheres, nem crianças, nem velhos. Faz pouco dos modismos como o culto ao corpo, a alimentação saudável, a vida junto à natureza. Tira sarro do computador e da nova cultura a ele relacionada. Mostra o ridículo de se valorizar demais a tecnologia e o jargão que a acompanha, e que acaba por separar o mundo entre aqueles alfabetizados tecnologicamente e os não-alfabetizados e, portanto, sem acesso às novas formas de convivência social ou profissional.
O paradoxo de Que gente má! é justamente a humanidade presente em traços e palavras tão cruéis. Por mais realisticamente ridícula que seja a situação retratada, parece que o afeto está prestes a aparecer por trás do riso maldoso que acompanha a leitura de cada quadrinho. Passamos a sentir pena dos outros, e por fim de nós mesmos. Ficamos surpresos de sermos aquilo que está retratado. E como somos condescendentes com nossos próprios defeitos, depois do riso talvez tenhamos uma pequena crise de consciência. É nesse ponto que o humor dá lugar ao afeto. Talvez passemos a nos consolar e nos acarinhar, tentando nos convencer de que se realmente somos aquilo, podemos melhorar. Ou seja, um processo hipócrita de auto-enganação.
Continuaremos podres, mesquinhos, infiéis e obcecados com os pecados e tabus que povoam nossa cabeça. E dessa matéria prima serão criadas obras como a de Quino, que funcionam melhor que qualquer terapia de autoconhecimento. Com a vantagem que você não precisa falar, só ler. E que terá rido em vez de chorar.
Para atender aos fãs de Mafalda, Quino encerra o livro com uma participação especial de sua estrela, com direito a ele próprio como personagem. Nesse quadro, ele volta a pena para si e para sua mais famosa criação, talvez para mostrar que não se acha acima das misérias retratadas por traços tão críticos e mordazes.
Para ir além
Adriana Baggio
Curitiba,
27/5/2004
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