COLUNAS
Quarta-feira,
26/5/2004
Berlim, o passado arrancado à força
Daniela Sandler
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Avisto a placa de repente, quando já estou na praça ensolarada. Um desenho apenas, colorido e simples como de livro para criança: um banco de praça. Contorno o poste onde a placa está afixada, e do lado reverso do desenho o texto curto e claro, em letras pretas cortantes: “Judeus só podem sentar nos bancos marcados em amarelo.” Olho para a praça, seus banquinhos brancos. Não há bancos amarelos. O texto é de 1939. No meio de Berlim, em pleno ano de 2004. Nestes dois tempos justapostos, o espírito desta cidade: o passado arrancado à força das esquinas, dos cantos mais banais.
Quando os artistas plásticos Renata Stih e Friedrich Schnock começaram a pregar as primeiras das oitenta placas de sua instalação urbana, em 1993, os habitantes do bairro de Schöneberg decidiram chamar as autoridades, alarmados com os dois desconhecidos que estavam pregando placas anti-semíticas pelas ruas. No dia seguinte, a cerimônia de inauguração revelou serem as placas parte de um memorial dedicado à história dos judeus e de sua perseguição nesta área tradicional de Berlim ocidental, obra que eles chamaram de Lugares de Memória (Places of Remembrance). Cada placa contém um desenho diferente – um pão, um maiô, um jogo da amarelinha. Do outro lado, uma lei ou relato da era nazista: judeus só podem comprar comida entre as 4 e 5 da tarde; judeus não podem banhar-se na praia; crianças judias não podem se misturar às alemãs no playground. No centro da praça, um mapa mostra todas as placas e sua localização nas ruas dos arredores.
Stih e Schnock não são anti-semitas. Quando propuseram sua instalação na competição pública para o memorial, em 1992, a história dos judeus do “Quarteirão Bávaro” (Bayerisches Viertel, como a área é conhecida) tinha sido recém-descoberta. Nos quarenta anos anteriores, tanto a presença judaica quanto a sua perseguição ubíqua e cotidiana haviam caído no esquecimento. Foi com surpresa que, no fim dos anos 80, um grupo de moradores interessados em história descobriu que o apelido da área tinha sido “Suíça Judaica”, porque ali uma comunidade estabelecida e afluente de judeus levava uma vida burguesa confortável. Médicos, profissionais liberais, intelectuais (Hannah Arendt, por exemplo). Consideravam-se alemães em primeiro lugar, integrados à sociedade e à nação.
A função original do memorial era trazer à tona essa história dupla: de presença e integração, e de extermínio e esquecimento. O gênio de Stih e Schnock esteve em conjugar essa intenção primeira a uma terceira história: a cumplicidade pervasiva da população alemã com a perseguição nazista, a dimensão cotidiana e prosaica da violência. O horror dos campos de concentração, e a barbaridade dos oficiais da Gestapo (polícia secreta) e SS (esquadrão de guarda), foram é claro parte do regime nazista. Mas o que ninguém tinha muita vontade de reconhecer é que a opressão não consistia apenas nessas instâncias extremas de brutalidade. Do contrário – impregnava quase todos os aspectos da vida pública e privada, e envolvia a maior parte da população.
Não era preciso saber detalhes do que se passava em Auschwitz para perceber que gradualmente os cidadãos judeus foram perdendo direitos e liberdades, desde ter suas casas e riquezas confiscadas até não poder usar transporte público ou exercer suas profissões. Se as proibições funcionavam, era porque a vigilância civil e diária funcionava também – o cartaz afixado pelo dono da padaria proibindo o serviço a judeus, o vizinho que delatou a posse ilegal de um animal de estimação. As placas de Stih e Schnock remetem exatamente a este caráter cotidiano, e por isso mesmo gritante, do Holocausto. O povo alemão não foi apenas testemunha, mas também cúmplice.
Servidores públicos judeus
devem ser desligados do emprego
Memória e discussão
Tão intrigante quanto a instalação e a história que ela evoca é a sua aceitação por parte dos berlinenses de hoje. Mas as placas do “Quarteirão Bávaro” não são caso único. Por toda Berlim há pequenos e grandes memoriais que resgatam tanto a presença quanto o extermínio dos judeus e de outros grupos perseguidos – homossexuais, ciganos Sinti e Roma, deficientes mentais, comunistas. Não só as vítimas são lembradas. Também a presença nazista é sinalizada com placas e instalações que marcam os vestígios do governo de Hitler em seus centros de comando e seus porões de tortura.
Alguns memoriais são simples: pequenas placas afixadas à parede de casas ou sob sinais de ruas, indicando um morador desaparecido, ou as datas de nascimento e morte da pessoa que dá nome à rua. Há formas mais tradicionais, como esculturas sobre pedestais acompanhadas por explicação escrita. Outras obras são mais líricas, como o memorial da Koppenplatz, em Berlim oriental: no meio da praça, uma mesa e duas cadeiras de talhe elegante sobre uma plataforma quadrada, com textura imitando piso de taco, tudo forjado em bronze. Uma das cadeiras está caída, como derrubada por alguém em fuga, ou alguém levado à força. Ao redor da plataforma, em relevo, um poema sobre fuga, ausência e morte no Holocausto, escrito por uma autora judia que escapou em 1940.
Berlim condensa não apenas os momentos mais intensos da história alemã, como concentra os esforços mais intensos de memória e discussão sobre essa história. Isso é parte do fascínio da cidade, e do mito que se criou em torno dela: um lugar em que não se escapa da história. Essa história não é exclusividade de Berlim nem da Alemanha. Mas a obsessão em resgatá-la, e destacar seu lado sombrio, é particularmente forte na capital alemã.
Uma geologia da história
O historiador norte-americano Brian Ladd cristalizou o espírito no título de seu livro Os Fantasmas de Berlim (no original, The Ghosts of Berlin). Ladd descreve a justaposição histórica que torna Berlim tão cativante e atraente. Justiça seja feita, uma história composta não só de destruição, mas também de momentos de avanço, arte, liberdade. Cada período deixou marcas mais ou menos visíveis na fisionomia urbana – vincos de rachaduras nos muros de pedra anciã, jóias e volutas de palácios decorados, rajadas de buracos de bala nas fachadas, a linha do Muro cortando a cidade.
Mas a história não salta sempre aos olhos. Por muito tempo esquecida, ainda esquecida em muitos lugares, precisa ser decifrada, extraída, recriada. Os “fantasmas” de que Ladd escreve repousam em pedras e paredes silentes, em espaços desfigurados por demolição ou reconstrução. A obsessão por memória, que em Berlim e na Alemanha se intensificou nos anos 80, é reação ao esquecimento dominante no pós-guerra. Das ruínas das bombas aliadas não se reconstituiu o tecido original, como em outras cidades européias. Até mesmo construções pouco atingidas foram demolidas, dando lugar a prédios secos, desolados, avenidas vastas: retângulos soltos sobre praças largas de cimento. Formas genéricas e simplificadas, a conveniente abstração da arquitetura modernista, como fundo pretensamente neutro para começar do zero (Stunde Null, ou “Hora Zero”, é como os alemães designam esse período e o desejo de recomeço).
Nos anos 80, o interesse no passado motivou a revalorização de construções antigas restantes, antes desprezadas por decrépitas ou inadequadas. E nos lugares onde os traços físicos desapareceram, memoriais e instalações representam eventos passados ou provocam sua lembrança. Um passeio na cidade, hoje, revela a multiplicidade de narrativas e acontecimentos que se sobrepõem nas diversas encarnações de Berlim. Visitas guiadas, livros e mapas ajudam a reconhecer na paisagem a passagem do tempo.
Berlim é mais, é claro, que a era de Hitler, do Holocausto e da guerra. Pequena vila medieval nas estepes ermas do Brandenburgo, fundada no século 13, foi desde então cidade-quartel, posto do exército prussiano; cidade elegante, de construções neoclássicas e filósofos iluministas; cidade autoritária, sede do império da Prússia. Foi também cidade industrial, cosmopolita, metropolitana, de imigrantes e bairros operários, de boêmios, artistas, intelectuais. Palco de contestação, brigas e mortes políticas. Cidade festiva e perigosa, em que a desordem diária contrastava com a repressão do governo – exercida até mesmo pela república de Weimar. Berlim foi capital nazista, e queimou sob as bombas aliadas. No pós-guerra, Berlim virou a capital da Guerra Fria, o muro separando os estados rivais, encarnando a Cortina de Ferro. E, nos anos 90, depois de simbolizar a emoção da unificação alemã, Berlim-capital virou pólo de investimento, de reconstrução, e de pessoas. Imigrantes do leste europeu em busca de trabalho, artistas ocidentais fascinados pelo hype, e turistas de todo o mundo, que vêm para cá atraídos justamente por essa riqueza de histórias.
Para saber mais
Christopher Isherwood, The Berlin Stories: The Last of Mr. Norris and Goodbye to Berlin (W.W. Norton and Company, 1988). O escritor norte-americano viveu em Berlim nos anos 20 e início dos anos 30, época em que se passam os contos dessas duas coleções reunidas em Berlin Stories. Retrato vivo e envolvente da vida em Berlim, quando os princípios de terror nazista se anunciavam em meio à euforia boêmia da república de Weimar.
Brian Ladd, The Ghosts of Berlin: Confronting German History in the Urban Landscape (Chicago and London: The University of Chicago Press, 1997). O livro passeia pelas diversas camadas de história da cidade, relacionando arquitetura, sociedade e cultura. O capítulo sobre o Muro de Berlim é especialmente instigante.
Alexandra Richie, Faust’s Metropolis: A History of Berlin (New York: Carroll & Graf Publishers, Inc., 1998). Extenso volume em que a história cultural e política da cidade ganha foco literário e simbólico. Obra de referência valiosa.
The Original Berlin Walks. Para quem tiver Berlim nos planos de viagem: visitas a pé, guiadas por historiadores, em inglês, revelam as estórias por trás dos prédios e pontos famosos.
Web site oficial de Berlim. Recheado de informações práticas sobre estadia, cultura, política, etc.
“Remembrance in Schöneberg”, excelente artigo da crítica Caroline Wiedmer sobre a instalação “Lugares de Memória”, de Renata Stih e Friedrich Schnock, no Quarteirão Bávaro.
Daniela Sandler
Berlim,
26/5/2004
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