Sob maciça campanha de marketing da TV Globo estreou Cazuza - O Tempo Não Pára, dirigido por Sandra Werneck (de Amores Possíveis) e Walter Carvalho (mais conhecido como diretor de fotografia, mas já experiente em direção como co-diretor do documentário Janela da Alma). O filme é baseado no livro de Lucinha Araújo, mãe do músico, Só as Mães São Felizes, e em depoimentos recolhidos pela produção com pessoas do convívio do cantor e compositor morto em 1990 de Aids. Ao corte final de Cazuza, tem-se uma obra que exibe um artista rebelde, em certo ponto mimado, nascido para a transgressão, apesar de não-nociva à sociedade, em que seu lema parece ser o carpe diem, aproveite o dia. Cazuza foi até morrer um bon vivant, amante das drogas, do sexo casual e homossexual, mas, acima de tudo, da música. Sua música era seu alvo maior, todo o resto parece ser apenas parte integrante desse todo que foram suas composições, desde o tempo do Barão Vermelho até as letras solo.
Se um filme sobre um artista é quase sempre feito para mitificá-lo ou, pelo menos, manter sua aura de artista, Cazuza consegue algo paradoxal: ele introduz a figura de Cazuza como um porra-louca (lembremos que a ordem está dentro da desordem), mesmo quando doente e às vésperas da morte, sem se apegar a artifícios próprios da mitificação fácil. Cazuza era maconheiro, homossexual, desobediente e indisciplinado - isso tudo está nas telas -, mas, ao mesmo tempo, era um cara sensível, romântico, desamparado - e isso está apenas em suas canções.
Dentro de Cazuza - O Tempo Não Pára, temos esses dois Cazuzas unidos pela linguagem visual e pela linguagem sonora. Da interpretação do personagem e sua personalidade sedutora e rebelde acompanhamos o som de suas músicas, no início mais agitadas devido ao diálogo com o rock'n'roll, mas depois mais líricas, carregadas de melodias e sentimentos. Nesse retrato dúbio do personagem está a grandiosidade desse filme, saber costurar tão bem vida e obra, fechando um ciclo que no fundo é o que se pode absorver do artista.
O filme começa com uma seqüência muito representativa. Temos Cazuza caminhando em direção a uma casa com andar descolado, cabelo desarrumado e óculos de sol redondinho. Dirige-se à casa que seria de um dos membros de uma banda. Ele entra, logo pega um baseado, o microfone e se põe a cantar. Estava formado o Barão Vermelho. Eis o mote de Cazuza no filme: tudo com ele seria assim, feito e realizado com intensidade, na intempestividade do momento. A gravação com o Barão, o primeiro romance homossexual, as brigas com os pais, a rápida passagem pela prisão por excessos da juventude etc..
O que mais impressiona em Cazuza - e disso dependia a qualidade final do filme - é a atuação de Daniel de Oliveira. O ator canta, dubla, se relaciona, se entrega por inteiro ao retrato do artista que propõem fazer os diretores. Ele, Cazuza, domina amplamente a tela e essa obsessão pelo cantor reflete, talvez, o seu lado mais egocêntrico. Claro que são conjecturas dizer que ele era egocêntrico ou qualquer outra coisa, mas, pelo que se vê no filme, Cazuza era ele e nada mais. Cazuza, para Cazuza, se bastava. Era um auto-suficiente ou, no jargão da biologia, um ser autótrofo. É a impressão que fica quando temos sua saída do Barão Vermelho, mesmo sob pedidos ostensivos de Frejat, a relação de independência perante os pais permissivos, principalmente a mãe, e seus romances homossexuais sem apego emocional.
Certamente que dentro da porra-louquice do cantor e compositor houve espaço para o drama da sua luta contra a Aids. E é aqui que o filme perde em ritmo, mas ganha em emoção, pois entra em cena a participação não apenas ilustrativa dos pais, interpretados por Marieta Severo e Reginaldo Faria. Cazuza emagrece, perde forças, mas continua a compor e a viver. Não deixa de fumar, mantém certa rotina de encontrar amigos para a farra, pois sabe que o fim está próximo e que não terá muito o que fazer na eternidade. Nessa toada, um amadurecimento do artista se processa, e sentimos isso mesmo no filme, com as músicas mais harmoniosas, reflexivas e, em certa medida, desesperadas. Da paranóia e vivacidade das canções com o Barão Vermelho, Cazuza parte para a melodia mais carregada de emoção e letras mais apaixonantes que questionam certas convenções.
A direção musical é sem dúvida o que dá ao filme sua forma exuberante, pois Cazuza - O Tempo Não Pára é um álbum de fotos musicado do cantor. As músicas inseridas em cada contexto, como a narrar o que se passa com seu autor, ajudam a compreender o mundo que vivia Cazuza. O mundo dos anos 80, da volta da democracia ao país e os jovens a sair de suas tocas. A liberdade reconquistada e por sua geração pela primeira vez experimentada. Prenda um homem por 20 anos desde seu nascimento e depois o solte à sociedade. A forma de extravasar de Cazuza foi a que vemos no filme - sexo, drogas e rock'n'roll. Alguém haveria de condenar?
É bastante confortável ver da poltrona do cinema um anti-herói politicamente incorreto se transformar em herói, de certa maneira nos indicando o que vale a pena na vida. Todavia, em seu texto gostei da percepção dessa inversão, que marca o filme e o determina.
Engraçado como um mesmo episódio é capaz de produzir sensações diferentes nos seres humanos! Assisti ao filme e confesso que não gostei: pareceu mais um depoimento de uma mãe sobre um filho amado, ofuscando toda a representatividade de Cazuza para a geração que o acompanhou, principalmente em razão da AIDS. O filme mostra um Cazuza em seu mundo, totalmente "desplugado" da sociedade - e não foi assim que eu o vi. O texto, contudo, revela uma opinião diversa da minha com uma excelência invejável. Não concordo com o texto mas, devo admitir, ele é muito bom!
Cazuza, um bom cantor e compositor? Acho que sim. O sofrimento de sua mãe, que possibilitou a ela um papel bonito na novela da vida, que se corporifica na instituição que criou, é comovente, como o são os das demais mães que viveram a gradual extinção do filho. A transformação de Cazuza em ícone de uma geração é natural, dado o fato de o mesmo ser filho da alta classe média carioca, contestador de uma série de costumes que são sustentados por essa mesma casta e, por fim, pelo fato de ter tido a coragem de expor publicamente sua doença, o que rendeu, à época, inúmeras matérias que, indubitavelmente, divulgaram a figura do artista. Me pergunto se um outro artista dessa geração, que fosse oriundo das faixas mais pobres da população brasileira e igualmente talentoso e contestador dos valores cultuados pela nossa sociedade, teria seu nome perpetuado, sua vida passada a "filme" e objeto de matérias de todo o tipo. Sobre o filme nada comento. Não assisti. Não sei se o farei. Está agora passando na minha pequena cidade e, sinceramente, não tenho dúvidas que já o teria assistido se estivéssemos nos anos 60, e não fosse o adolescente que era à época, e sim o "muito quarentão, semi cinquentão" que sou. Hodiernamente, as horas são poucas para dar conta dos meus interesses. Não sei se o programador mudará o filme antes de eu resolver se vale ou não a pena ter esse encontro com a tela grande (não tão grande quanto as dos anos 60) e correr o risco de me aborrecer ou me divertir. Mas tenho certeza que, independentemente disso, Cazuza existiu, cantou, compôs, agitou, contou e "contou". Se justificou a condição de símbolo daquela geração, não estou certo, ou melhor, acho que não, pois, pensando bem, sua atitude se coaduna mais com a de um artista de outras gerações. A sua, a dos anos 80, seria muita melhor representada por algum artista sarado, saudável, vitaminado, meio-careta, não-politizado, auto-centrado e bem individualista que, a meu juízo, são características mais condizentes com a época.
Quem acompanhou a carreira de Cazuza desde o início (meados dos anos 80) tem a impressão de que o filme, apesar de muito bom, representa apenas um pequeno retrato de como foi e é esse artista ímpar na história da música popular brasileira. Tudo em Cazuza era exagerado; a vida, os poemas fantásticos e loucos, o amor, o ódio e a força de viver. O filme mostra 10% de cada um.