Provavelmente, nenhuma discussão prolongou-se por tanto tempo no Brasil do que a questão sobre a identidade do país. Há mais de um século, intelectuais, artistas e sociólogos se debruçam sobre o assunto, sem nunca terem chegado perto de um consenso satisfatório. Ainda hoje o tema permanece em aberto, sem solução à vista e por uma razão simples, que pode ser explicada em uma frase, à luz da psicanálise: o Brasil é um país que não se aceita.
Tomando por base a tese de que um país é, basicamente, um conjunto de indivíduos e que são eles, no fim das contas, os agentes de expressão das idéias relativas ao meio que habitam, façamos uma breve reflexão: do mesmo modo que um indivíduo em paz consigo mesmo, ciente dos seus valores e defeitos, com um nível razoável de autoconfiança, sem ilusões e paranóias desmesuradas sobre si e a sua imagem perante a sociedade dificilmente sentiria necessidade de se engajar num processo desesperado de auto-análise existencial para encontrar um sentido para a própria vida, o mesmo podemos afirmar do seu coletivo - a sociedade - e, do país por ela formado. No Brasil, a falta de auto-estima está por toda parte, a começar pela irrefreável fixação nos modelos europeu e norte-americano e a preocupação excessiva que parte da sociedade alimenta em relação à visão negativa que as nações desenvolvidas do Norte supostamente teriam do calor africano e selvagem da nossa terra e do primitivismo e indolência do nosso povo, como se, no fim das contas, isso, ainda que configurasse uma verdade absoluta, tivesse grande importância.
A busca por uma identidade redentora que una os vários Brasis, reduzindo as distâncias que separam o país ideal do real, traduz um esforço para se criar um conceito de nação que se torne aceitável por uma elite eternamente fascinada pelos ares parisienses, pelo fausto londrino e pela opulência nova-iorquina e, ao mesmo tempo, seja fiel a todos os aspectos da sua realidade. Não basta estampar no rosto um sorriso amarelo de polidez forçada, como fazem muitos, na hora de enaltecer a simpatia do povo humilde, a fertilidade do solo, a exuberância das matas tropicais e a riqueza do folclore interiorano, se, no fundo da alma, tudo isso ainda é visto como um sinal indelével de primitivismo que, ao contrastar flagrantemente com o frescor civilizado dos bulevares europeus, expõe as cicatrizes e contradições de um país tropical e mestiço, com uma forte herança colonial e escravocrata e que nunca realizou o seu grande sonho de se equiparar, ao menos em aparência, ao admirado Primeiro Mundo. É uma questão que nunca conseguimos resolver e que ainda é fonte de grande ressentimento por aqui. Talvez, inclusive, essa seja uma das razões da implicância que sempre tivemos com a Argentina que, mal ou bem, atingiu esse objetivo e dotou sua capital de uma atmosfera totalmente européia, algo similar ao que o Rio de Janeiro e São Paulo tentaram fazer sem sucesso.
Quando eu afirmo que o Brasil não se aceita, não estou dizendo que ele se odeie ou que não acredite na sua viabilidade como nação. O que ocorre é uma espécie de condicionamento mental. Durante décadas fomos bombardeados por teses duvidosas e tendenciosas sobre o que constituía uma civilização. Apreendemos e incorporamos ao nosso imaginário a idéia de que o desenvolvimento tem a pele branca e as baixas temperaturas como elementos imprescindíveis. Na mesma proporção, a pele escura e o calor estiveram, desde sempre, vinculados à noção de primitivismo. As influências desse pensamento, principalmente no que diz respeito à questão da miscigenação, considerada uma anomalia racial até tempos recentes, tiveram conseqüências nefastas na relação da elite brasileira com o país, uma relação quase neurótica de amor e ódio, de atração e menosprezo, algo como: meu país é belo, cálido e acolhedor, eu o amo, amo a idéia de pertencer a essa terra rica e de vastidão continental, mas, ao mesmo tempo, me envergonho dela diante do mundo, por causa da sua feição quase selvagem, por causa dessa mistura indecorosa de raças e dos nossos costumes ridiculamente caipiras, tudo muito distante do modelo europeu de civilização que é, no fim das contas, o modelo adequado e respeitável.
Esse verdadeiro conflito existencial que torna o Brasil uma espécie de gigante complexado e inseguro, sempre à beira de um ataque de nervos ante o mínimo esboço de crítica vinda de fora, é, a meu ver, uma das causas da nossa atual desgraça econômica. No afã de querer exibir ao mundo a sua importância, o seu poderio, a sua incompreendida grandiosidade, o país enterrou montanhas de dinheiro em obras megalomaníacas, sobretudo no período compreendido entre as décadas de 1950 (Brasília) e 1980 (Itaipu); dinheiro este, do qual o país não dispunha e que, é sempre bom lembrar, se materializou na forma de dívidas monumentais, com as quais estamos arcando penosamente até hoje. A preocupação dos nossos mandatários ao levar a cabo tantos empreendimentos faraônicos, notem, sempre foi com a aparência, com a superfície, nunca com a promoção de reformas profundas e duradouras na base da sociedade, educando decentemente a população e fazendo-a desenvolver-se por si mesma o que, certamente, capitalizaria muito mais créditos a favor do Brasil, valorizando a sua imagem - e a sua auto-imagem - de forma consistente.
Apesar de a consolidação de uma civilização puramente européia no Brasil como um todo ter fracassado - ou até talvez por causa disso - a Europa e a América do Norte continuam sendo os grandes referenciais no que diz respeito a tudo por aqui, de tendências da moda a produtos industrializados. Experimente exibir uma bugiganga qualquer para um amigo, dizendo que é importada; pode ser a pior porcaria do mundo, um artefato ordinário, vagabundo, rudimentar que nem sequer funcione direito, mas a primeira reação do seu interlocutor provavelmente será favorável. Experimente anunciar à sua família que um conhecido seu que mora em Londres ou em Paris, está chegando ao Brasil; todos ficarão curiosos em conhecê-lo e se esforçarão para passar a ele a melhor impressão possível do país. É a velha mania de achar que o que (ou quem) vem de fora sempre é bom ou, ao menos, superior. Também a relação das pessoas com o clima é bastante sugestiva. Por aqui, o frio é visto como um agente civilizatório. É como se, o fato de haver inverno em boa parte do Brasil, significasse que o país não está totalmente perdido no intuito de parecer desenvolvido. O frio dá uma aparência cinzenta e sóbria às cidades, força as pessoas a se vestir com uma indumentária que bem poderia ser usada no Primeiro Mundo, imprime à vida um estilo improvável na canícula tropical.
Sem querer chover no molhado, a verdade é que o Brasil é um país majoritariamente pobre, apesar do seu PIB elevado e da industrialização crescente e significativa e isso é, indiscutivelmente, um grande obstáculo para a formação da sua tão almejada identidade. Inclusive porque a classe média urbana, formadora de opinião, se identifica mais com os personagens de seriados americanos do que com o povão tupiniquim. Numa tentativa de minorar os efeitos da percepção desanimadora de pertencer a uma nação alquebrada de desvalidos, ruas sujas e atmosfera pouco sofisticada, essa elite pouco a pouco foi se encastelando em shopping centers, condomínios fechados e clubes exclusivos, nos quais o Brasil ideal pôde ser criado, sem a influência perniciosa e indesejada do Brasil real, cuja existência, muitos ainda preferem ignorar.
Haverá uma luz no fim do túnel? O Brasil um dia se sentirá seguro o suficiente para se impor no cenário mundial sem o temor de ser julgado ou ridicularizado? Teremos condições de valorizar o que se faz aqui dentro sem necessariamente estabelecer comparações com o que existe no exterior? Acredito que sim. Talvez porque ainda sejamos uma civilização recente, em formação, um grande e complexo laboratório antropológico e sociológico, ainda carente de referenciais próprios. A civilização brasileira pode ser uma promessa, mas não devemos nos acomodar a esta percepção ou acabaremos como no velho slogan do "país do futuro", que até hoje não saiu do papel e cujas letras, a cada ano, ficam mais desbotadas.
No próximo artigo, daqui a duas semanas, voltarei ao tema analisando, desta vez, os efeitos do nosso complexo de inferioridade na produção cultural nacional. Aguardem.
Como filho de imigrantes sempre achei curioso que no Brasil tentamos desesperadamente atar lacos com a cultura do exterior... Somos muito criativos, e se soubermos encontrar em nossas proprias circunstancias as solucoes para as deficiencias do pais, iremos finalmente entender a identidade do brasileiro.
O Rio nao precisa ser Paris, e nenhum autor brasileiro precisa ser Dostoievski. Assim como Paris ou Nova Iorque jamais serao o Rio de Janeiro... Mas em se tratando de cultura, a coisa e complicada, para escapar do "tropicalismo barato" (a visao externa do Brasil levada a serio), e do provincialismo (fingir que somos outra coisa)...
Aguardo ansiosamente a continuacao do seu texto !
Fiquei impressionado com a lucidez e a objetividade desse artigo. Foi como um soco no estômago. O colunista falou de uma realidade nossa tão óbvia que a gente não enxerga. Vou levar alguns dias para processar esses parágrafos na minha cabeça, mas posso dizer que alguma coisa mudou na minha vida depois de hoje... Aproveito a chance para parabenizar o Sr. Luis Eduardo Matta e todo o Digestivo Cultural por dar a nós a oportunidade de entrar em contato com o must do novo pensamento intelectual brasileiro. O nível do site nunca esteve tão bom.
Luis, gostei muito do artigo... realmente esse complexo de inferioridade do brasileiro existe. So discordo quando vc fala do frio como caracteristica civilizadora. Não acho que seja esta a questão. Não acho nada civilizado ter que retirar montanhas de neve da porta para poder sair de casa. Como sabes, sou um dos fervorosos admiradores de temperaturas mais amenas aqui no Rio de Janeiro, por simplesmente achar ser mais agradável. Como não vivo na praia, ao contrário do que parece acontecer com todos os demais cariocas, prefiro um clima em que possa usar algo além do que chinelo, short e camiseta de leiteiro (como diz minha mãe). Fico satisfeito quando faz uns 18 C :)
Acho que o problema brasileiro não é valorizar o que vem de fora mas sim que essa valorização se resume a uma idolatria sem nexo ou consequência. Os norte-americanos, desde a fundação dos EUA, perceberam que não poderiam construir uma civilização sem uma estrutura cultural adequada. E então investiram pesado em bibliotecas e Universidades mesmo quando o país ainda era pobre. Nesses lugares se estudava ciência, filosofia e cultura do mundo todo e com base nesse alicerce eles foram construindo suas próprias idéias e "identidade cultural". O contraste com o que aconteceu no Brasil desde a independência é gritante. Resultado: um pais sem identidade contorcendo-se em agonia eternamente em berço esplêndido. Haja praia para esquecer!
Vou tentar resumir meu pensamento dizendo que o grande mal que causa a busca de uma identidade, até hoje infrutífera, tem seu núcleo ou raiz no fato da comparação. Quando um indivíduo ou no caso um país se aceita do jeito que é, sem máscaras ou disfarces, tentando ser o que não é, aí, então, se dá o grande encontro com seu Eu ou sua identidade. Isso não significa que não se busque um aperfeiçoamento, mas que seja sempre no âmbito daquilo que se é e não no que é o nosso vizinho ou amigo. Viajei por esse Brasil e por esse mundo afora e jamais comparei duas praias, duas cidades, dois povos. Cada qual tem sua "personalidade", suas características diversas e não comparáveis. São diferentes. Podemos até gostar mais de uma ou de outra, mas valores são subjetivos. O que tenho observado é que tudo o que você descreve em seu texto acontece nas classes média e alta. É uma elite que não permite que o Brasil possua essa tão almejada identidade. Uma elite que tem a possiblidade de em viagens ou leituras tomar conhecimento do que existe fora do país e, uma vez de posse desse conhecimento, comparar e desvalorizar o que temos aqui. Acredito que isso seja uma herança dos tempos do império quando tudo o que era "melhor" vinha do Velho Mundo e era usado apenas por uma elite nobre. Atualmente, trocamos apenas da origem, que é norte americana. As classes menos favorecidas não se envergonham de nossas festas populares de São João ou Bumba Meu Boi ou outras quaisquer que sobrevivem na Bahia, no Maranhão e em outros Estados. Nossa música "country" das duplas caipiras são tidas como cafonas pela elite, no entanto, os americanos do norte têm as suas próprias músicas "country" e ninguém as considera cafonas. Todos sabemos que um processo psicanalítico é longo, portanto, não esperemos que o Brasil levante desse divã rapidamente.
Quando analiso o meu pais, vejo uma mistura de cores, raças, de cheiros, de música...O nosso clima quente nos torna mais alegres, cheios de vida e criatividade. Acho tudo isso fantástico. Nao somos europeus e nem devemos querer ser, somos brasileiros e quando tivermos orgulho disto, seremos uma grande cultura, preservaremos e perpetuaremos o que temos de melhor. Teremos nossa propria historia.
Olá, Luis Eduardo, seus três artigos sobre nosso gigante adormecido traduzem muito bem a nossa realidade. Parabéns! Depois de ler os três, eu me pergunto se nossa identidade não é justamente essa falta de identidade que você fala? O nome do nosso país, Brasil, vem da grande quantidade do pau-brasil encontrado aqui. Essa árvore foi literalmente exterminada de nossas florestas e ninguém se preocupou em replantá-las! Talvez essa identidade tenha se perdido nas tinturarias européias do século XVI. Desde então, uma população de diferentes vai se fazendo. Se algum dia tivermos um governo que seja realmente honesto no sentido de dar ao povo o que ele precisa, vai se empenhar em dar educação. Cada novo governo, inclusive o atual, preocupa-se em aumentar a máquina estatal para que seus comparsas possam usufruir das benesses do Estado e simplesmente vão criando mais impostos. Acredito que a única coisa que pode “firmar” a nossa identidade é uma educação de primeira linha, com professores competentes nos cursos primários. Com isso feito, o resto fica mais fácil!