COLUNAS
Segunda-feira,
12/2/2001
De Ratos, Memórias e Quadrinhos
Rafael Lima
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1968 realmente não foi um ano bom para Art Spiegelman. Além do suicídio de sua mãe, ele passou 2 meses internado em um hospital psiquiátrico por causa de um surto psicótico, efeito colateral do LSD que tomava, "mais amiúde que alguns amigos tomam anti-ácido hoje". A saída do repressivo ambiente caseiro da família classe média judia para a high school tinha sido um forte choque, afinal, pela primeira vez ele adentrava um ambiente "onde se dava valor às idéias". A contra-cultura emergente saíra à feição para o adolescente que curtia as piadas de Harvey Kurtzman na MAD, logo, logo se alistando nas fileiras do comix underground, em San Francisco. Só que quem procura por "Spiegelman" em um desses Yahoo fica com a séria impressão que todas essas experiências tinham sido apenas uma longa preparação para seu reencontro consigo mesmo.
Talvez nem Artie imaginasse quando começou sua tentativa de elaborar o "Grande Quadrinho Americano" (em oposição ao "Grande Romance Americano"), ao inciar uma série de entrevistas com seu pai, sobrevivente do Campo de Concentração de Auschwitz. Uma história curta, em 3 páginas, já havia tangenciado o assunto anos antes, mas dessa vez Spiegelman estava decidido a tocar acordes mais graves. Horas de conversa gravada foram transcritas, e a transcrição, decupada e convertida em páginas de quadrinhos num dos mais extensos trabalhos de adaptação de mídias que se tem notícia: 280 páginas, 13 anos.
MAUS - rato em alemão - é a narrativa em quadrinhos, em flash back, dos fatos ocorridos com Vladek desde antes do casamento com Mala até o reencontro de ambos pós-Auschwitz, entremeada por ocorridos, em tempo real, do processo de criação de MAUS, do ambiente em que as conversas se deram, do complicado relacionamento entre Artie e Vladek, das mudanças na vida pessoal do autor durante a produção de MAUS, tudo naquele tom confessional-neurótico típico de qualquer humorista judeu novaiorquino. Um momento: eu disse ratos?
Sim, ratos. A metáfora que Spigelman já havia usado naquelas antigas 3 páginas, registrar os judeus como ratos, e os alemães como gatos - uma metáfora tão simples quanto eficiente para opressão - seria resgatada, ampliada e executada à perfeição no seu romance gráfico: nem quando Artie visita seu psiquiatra, que mora com vários cachorros, nem quando Mala se mostra assustada em um porão habitado por ratos ela se perde. Assim, poloneses viram porcos, suíços viram linces e os americanos, obviamente, cães.
O que faz dos dois livros de MAUS (MAUS - A História de um Sobrevivente e MAUS II - E aí Começaram meus Problemas) um trabalho único em quadrinhos, que mereceu o Pulitzer, é a combinação de dois fatores, intimamente ligados entre si: a imensa quantidade de informação fidedigna e detalhada sobre o Holocausto, na inequívoca voz de quem esteve lá, apresentada na linguagem que transmite a maior taxa de informação por centímetro quadrado: a história em quadrinhos.
Em MAUS há mapas explicando como ficou a Europa invadida pela Nazismo, diagramas demonstrando o valor de troca de cigarros por pão em um campo de concentração, fotos de família, esquemas explicando como consertar uma bota rasgada, tudo sutilmente inserido em meio a um relato com a dureza e o estoicismo dos sobreviventes. Em nenhum momento o fluxo é truncado, nem mesmo quando o assunto é quebrado para questionar alguma coerência histórica. Páginas inteiras de diálogo, que costumam ser mortais em termos de dinamismo, viram brincadeira com metaliguagem; detalhes de fundo fazem uma ambientação sutil e natural, e o resultado global, a composição da página, tem a perfeição dos quadros famosos.
O ponto fundamental a se ressaltar aqui, mais do que a eterna grita de perseguição dos judeus, com todo ano um representante concorrendo ao Oscar de documentário para lhes bater o bumbo, é a respeitabilidade que MAUS conquistou para os quadrinhos como meio de comunicação, auto-expressão, e, ora bolas, Arte. Em meados da década de 80, quando o primeiro livro foi lançado, outras histórias de igual teor - Watchmen, HeartBreak Soup, O Cavaleiro das Trevas - foram publicadas, sacudindo a percepção média que se tem sobre quadrinhos, e iniciando uma lenta invasão das livrarias pelos chamados romances gráficos (graphic novels), nome que se convencionou para essas narrativas mais longas e sofisticadas. Art Spiegelman foi fundamental nesse processo de reduzir a distância entre alta cultura e baixa cultura, ao observar o esvaziamento das Artes Plásticas nas últimas décadas, em contraposição à crescente riqueza de possibilidades nos quadrinhos. Que alguém que já esteve internado em um hospital psiquiátrico seja um dos principais responsáveis por essa mudança soa particularmente significativo.
Nos últimos 15 anos esse sentimento arrefeceu, mas é fato que autores de quadrinhos como David Mazzuchelli ou Robert Crumb têm sido cada vez mais convidados por publicações culturalmente respeitáveis para ilustrar capas e artigos. O próprio Spiegelman vez por outra participa de algum ensaio na mais notória delas, a New Yorker - o último saiu quando Schulz parou de fazer Peanuts. Ao invés de cobrir suas 3 páginas com Times New Roman tamanho 9, Spiegelman não nega a raça, e faz um deslumbrante relato de memória - totalmente em quadrinhos.
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
12/2/2001
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