COLUNAS
Quinta-feira,
2/9/2004
O jeans e o chador
Adriana Baggio
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O ser humano tem um medo profundo de tudo que é novo e diferente. As reações que surgem quando se depara com essas diferenças pode ser a do riso, na melhor das hipóteses, ou a da intolerância. Essa última é a que tem causado grandes prejuízos para a humanidade.
A intolerância pode ser observada sob diversos aspectos. Normalmente, o que se vê é a intolerância externa, quando se agride alguém que pertence a uma cultura diferente. O outro lado é o da intolerância que parte de quem pertence àquela cultura.
No livro da Prêmio Nobel de Literatura Nadine Gordimer, O engate (Companhia das Letras, 2004), as diferenças e a tolerância são aspectos que permeiam uma história fascinante, focada não em grandes conflitos mundiais, mas nos pequenos embates internos de duas pessoas, um homem e uma mulher.
A mulher é branca, uma sul-africana rica do pós-apartheid. O homem é um muçulmano pobre, imigrante ilegal de pele escura, que busca fugir da pobreza e do atraso do seu país. Mesmo com tantas diferenças, eles acabam se apaixonando.
Julie, a mulher, é filha de um banqueiro. Apesar do dinheiro da família e dela própria, a moça evita ostentar os ícones que caracterizam sua origem. Não porque ela ache um crime ter tanto dinheiro com tanta gente miserável em volta, mas porque, junto aos seus amigos "alternativos", Julie quer parecer diferente. Em tempo: ela é uma espécie de relações públicas que trabalha como promotora de shows de música pop que arrecadam recursos para causas humanitárias.
Quando seu carro estraga, ela conhece Abdu, o homem imigrante ilegal que trabalha em uma oficina. A narrativa nos leva a pensar que Abdu é mais um símbolo que contribui para formar a personalidade singular de Julie. No entanto, não ouvimos isso dela, mas do próprio Abdu, que não vê como uma moça como ela poderia se apaixonar por ele.
Julie renega o que Abdu admira: o pertencer, o ter e o ser em um mundo de privilegiados. Como ele espera ser dispensado por ela a qualquer momento, não se deixa levar pelos sentimentos. Para ele, Julie o aceita como mais uma de suas aventuras exóticas.
Quando ele recebe a ameaça de deportação e precisa partir, Julie decide largar tudo e voltar com Abdu ao "buraco de terceiro mundo" de onde ele veio. Mesmo tendo a amada a reboque, Abdu ainda não consegue ver uma Julie apaixonada, que encontra nessa viagem ao incógnito uma oportunidade de se conhecer. Para ele, essa é mais uma das aventuras inconseqüentes de Julie, da qual ela pode desistir no momento em que quiser. Julie tem dinheiro e aceitação, enquanto ele não tem nenhum, nem outro.
Quando Julie chega ao país muçulmano e atrasado que é a origem da família de Abdu, o leitor fica esperando a qualquer momento o inevitável choque de cultura entre a profissional liberal e sofisticada e a submissão feminina característica de um país desses. As páginas passam e o que se vê é uma Julie fascinada pelas diferenças, interessada em se enturmar na família de Abdu e ser aceita como mais uma das mulheres do clã.
Falando assim, até parece um daqueles enredos de folhetim sem muita preocupação com a verosimilhança, mas não é. O leitor verá. E se esse leitor for alguém que já precisou se adaptar a uma nova cultura, e que aproveitou essa mudança para se descobrir como pessoa, vai entender as motivações de Julie. Em um determinando momento do livro, a moça se questiona sobre a serventia do jargão profissional, da educação cara e das habilidades necessárias para exercer sua antiga função, para essa sua nova realidade.
A questão da intolerância aparece na situação angustiante de Abdu, que tenta a todo custo obter visto de entrada em qualquer país que ofereça oportunidades de trabalho e de ascensão ao mundo dos que tem, são e pertencem. Apesar de buscar o progresso, Abdu não se interessa pelo desenvolvimento da sua própria terra. Nesse ponto, Nadine parece criticar as pessoas que, em detrimento da sua dignidade, dos seus valores e das suas raízes, buscam a todo custo fugir de seus países. Pessoas que buscam a ilusão de uma vida melhor em lugares onde, dificilmente, deixarão de ser sub-cidadãos.
Quando Julie vislumbra uma possibilidade de melhorar a situação da família de Abdu, a idéia é imediatamente rechaçada pelo rapaz. Ou seja, as pessoas não querem melhorar o lugar onde vivem, valorizar a sua cultura. Preferem partir e tentar pegar carona no desenvolvimento de outros locais. Abdu finalmente consegue o visto. Irônico é o país que aceita receber o documento muçulmano. É mais ou menos como aquele ditado que diz: "cuidado com os seus desejos que eles podem se realizar..."
Além do precioso conteúdo, O engate tem uma forma riquíssima. Nadine Gordimer utiliza com imensa habilidade os recursos da poética na prosa. O texto é repleto de metáforas, simbolismos, referências. Primoroso, também, é o trabalho da tradutora Beth Vieira, que manteve a mensagem transmitida pelo uso inusitado da pontuação e das palavras.
O romance que conta a história da moça que adota os costumes do povoado muçulmano e do rapaz que não abre mão dos seus desejos de vida ocidental, tem um final surpreendente. Ao contrário da polarização cultural mais comum nos dias de hoje, que tem no jeans o positivo e no chador o negativo, o livro mostra um outro lado desta relação. Termina-se o livro pensando que seria ótimo se todos pudessem ter a paz e a certeza da personagem Julie. Sem buscar nada, ela acabou encontrando a si mesma.
Para ir além
Adriana Baggio
Curitiba,
2/9/2004
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