Meses atrás, após uma extenuante maratona de compromissos matinais que avançaram pela metade da tarde, fui almoçar num restaurante de comida a peso, próximo de onde eu me encontrava. O estabelecimento achava-se às moscas, salvo pelos poucos garçons e demais funcionários, afinal já passava bastante do meio-dia e do horário usual de almoço num dia normal de semana. Apesar disso, o televisor instalado no salão, que ficava preso à parede por um suporte, permanecia inexplicavelmente ligado em alto volume, gritando sua sofrível programação vespertina para uma audiência inexistente. Depois de me servir, indaguei casualmente a um dos garçons se não seria o caso de desligar o aparelho, já que ninguém o estava assistindo e não havia nenhum freguês no restaurante além de mim. Notei que ele hesitou, antes de fazer um aceno solícito de concordância e afastar-se à francesa. Desnecessário dizer que o televisor permaneceu a toda até o momento de eu ir embora e, provavelmente, só foi desligado quando o último funcionário encerrou seu expediente, a menos que um rádio tenha sido ligado no seu lugar.
Nesse dia, eu reforcei uma percepção que me acompanhava havia muito tempo: a do quanto é difícil para as pessoas hoje em dia, conviver com o silêncio ou, até mesmo, deixar-se afetar por ele, ainda que por alguns poucos instantes. É preciso haver sempre algum som por perto, não importa qual, desde que ele preencha o ambiente, aliviando-o da opressão que a ausência de ruídos impõe. O silêncio constrange e ameaça, na medida em que escancara as portas que unem as pessoas ao seu íntimo, muitas vezes pondo em relevo sensações, temores e anseios que elas prefeririam conservar ocultos e esquecidos. Isso explicaria, entre outras coisas, a razão de vivermos numa sociedade assaltada por toda sorte de barulhos, da sinfonia de motores nas ruas, a caixas de som berrando nas lojas, passando por televisores num restaurante vazio, sintonizados num canal qualquer. É uma maneira fácil de se distrair e, assim, não correr o risco de, subitamente, ter de pensar sobre si ou sobre o sentido da própria vida.
Foi embalado por essas reflexões que iniciei, curioso, a leitura de O Silêncio Primordial (tradução de Eric Nepomuceno e Luís Carlos Cabral; José Olympio; 192 páginas; 2003), belíssima reunião de ensaios de autoria do professor, tradutor e membro da Academia Argentina de Letras Santiago Kovadloff, que levou quatro anos para concluí-la. Os textos, escritos numa linguagem densa, porém fluente e repletos de referências a filósofos, escritores e pensadores, incluindo Hegel, Schopenhauer, Borges, Bertrand Russell e Ortega y Gasset promovem uma análise aprofundada, visceral e bastante poética do silêncio, no intuito de desnudar suas diversas facetas e sentir intimamente todo o seu poder, escondido sob uma falsa aparência de vazio inofensivo. A proposta de Kovadloff, devidamente expressa na introdução da obra é discorrer sobre o "silêncio que não cumpre a função de maquiagem e que, como tal, não encontra, nem pode encontrar equivalência na palavra". Do mesmo modo, ele afirma que sua análise decorre de uma visão muito pessoal e, portanto, discutível, passível de ser rebatida. É uma atitude correta, já que se trata de um tema muito subjetivo e, por isso mesmo, sujeito às mais diferentes interpretações. Não sei se Kovadloff fez essa declaração, como uma forma de se antecipar a eventuais críticas. Tenho certeza, porém, de que sua ótica particular sobre o silêncio, após a leitura atenta do livro, passou a ser partilhada por muitas pessoas.
O Silêncio Primordial é composto por sete ensaios que se debruçam sobre a presença do silêncio em diversas áreas como a poesia, a psicanálise, a pintura e a matemática. Dentre todos, dois me marcaram particularmente: os que abordam a religião e o amor. Quando Kovadloff, já nas últimas páginas do livro, afirma, por exemplo, que "o amor é o fracasso de toda ilusão possessiva" e que "é em virtude da sua constituição que o silêncio amoroso encontra na carícia o meio adequado para a manifestação de sua melhor eloqüência", senti-me definitivamente recompensado pelas prazerosas horas gastas - ou seriam investidas? - em seus textos. A abordagem que ele faz da relação íntima entre amor e silêncio é a que melhor traduz, a meu ver, a idéia de "silêncio primordial", que seria tudo aquilo fortemente presente na existência humana e, ao mesmo tempo, impossível de ser definido, ou ao menos totalmente explicado, através da palavra.
Se há algo que lamento, é só ter sido apresentado a O Silêncio Primordial recentemente, transcorridos mais de dez anos desde o seu lançamento, na Argentina. Graças ao livro, pude valorizar ainda mais o silêncio, compreendê-lo melhor e até aprender em que circunstâncias empregá-lo. Afinal, o silêncio é, muitas vezes, a melhor arma para, por exemplo, reagir aos infortúnios e traições, para preservar-se da dor inútil e fazer frente a situações infames e indecorosas que a índole vil de pessoas abjetas e sem caráter, volta e meia tenta nos impingir. É uma pena, no entanto, que uma das maiores qualidades do livro seja, também, um dos seus principais empecilhos: a linguagem, muito rebuscada e pesada para o leitor médio. Digo isso porque se trata de uma leitura realmente valiosa, numa época em que o silêncio é tão raro e desvalorizado, quando não temido. Ainda mais se considerarmos que vivemos numa sociedade carente de reflexões, onde os referenciais tornaram-se turvos e temporários e onde as pessoas sentem-se perdidas, sem uma noção do seu papel num mundo incerto, angustiante e em permanente mutação.
Filosofia de botequim
Um dos melhores blogs em língua portuguesa no ar hoje, na minha modestíssima opinião, é o Filosofia de Botequim, do meu velho amigo Daniel Malaguti, advogado e escritor que, andava afastado da Web, desde que resolveu tirar do ar o seu blog anterior, o ótimo Notas da Jornada. Sempre se valendo de um considerável embasamento teórico e de uma ironia fina e lancinante, somente encontrada nos grandes pensadores e articulistas, Malaguti observa e discute os rumos da sociedade, do Brasil, do mundo e do ser-humano na sua incontrolável e acelerada rota de decadência.
Uma das suas últimas pérolas foi ao ar na semana passada. Intitulada "Uma Aplicação da Psicologia Evolucionista", Malaguti levanta a polêmica tese, que fará a alegria dos sedentários, de que pessoas que praticam esportes são seres não-evoluídos. Também merece atenção o post "O Perigo do Genérico (não é sobre remédios)", de 17 de agosto, no qual ele analisa de forma magistral amparado, inclusive, nos seus conhecimentos jurídicos, a iniciativa do governo de criar um Conselho Federal de Jornalismo.
Filosofia de Botequim tornou-se uma leitura obrigatória e já devidamente incorporada ao meu itinerário semanal de navegação pela Web. Quem fizer como eu, certamente, não se arrependerá.
Uma rua conta sua história
Tomei conhecimento essa semana de um interessante projeto da prefeitura do Rio de Janeiro, desenvolvido pelas técnicas da Associação Cultural de Estudos Contemporâneos (ACEC) Marta Klagsbrunn e Susane Worcman. Batizada de Uma Rua Conta Sua História, a iniciativa tem por objetivo resgatar a memória de alguns bairros do Rio de Janeiro, através de monumentos instalados em vias públicas. No dia 14 de setembro, foi a vez de Santa Cruz, região que, no passado, abrigou padres jesuítas, artistas e, onde também o imperador D. Pedro I comemorou a independência do Brasil, receber o projeto.
Infelizmente não pude ir a Santa Cruz para ver de perto, mas fiquei sinceramente satisfeito em saber que iniciativas como essa - que se propõem a estreitar a relação do espaço público com seus moradores, fazendo com que estes passem a valorizar mais o lugar onde vivem -, estão se tornando freqüentes. Agradeço desde já a Marta Klagsbrunn por ter entrado em contato para me contar do trabalho e torço para que ele se espraie por muitos outros bairros cariocas.
Seus textos sempre abordam temas muito importantes e hoje especialmente você fala do silêncio. O exemplo que você cita é muito bom porque, nos dias de hoje, a maioria dos restaurantes e lanchonetes estão equipados com TVs ou telões que funcionam o tempo todo e com o som numa altura que perturba. Até para se conversar é preciso ser aos gritos. O mundo de hoje se transformou num grande shopping e as pessoas são induzidas a viver em ritmo de Disneylândia. Parece que é preciso estar sempre fazendo coisas e em meio a muito ruído. E o máximo da alegria é ir a uma danceteria e ficar zonzo com o barulho e os aditivos. Com certeza isso evita a reflexão, o que é uma marca dos nossos dias. Viver o que as novelas apregoam é ser feliz e pronto! O resto é correr o tempo todo atrás de dinheiro! Sem parar. Quem não tem o que fazer não é importante! O silêncio incomoda justamente porque nos leva a reflexões. E as reflexões são supérfluas e até incompatíveis num mundo onde é preciso vender, criando mercado para todas as porcarias e o ser humano não passa de um número no mercado de consumo.
Adorei seu texto!
Sempre me questionei sobre o silêncio e tudo que vc escreveu foi como se saísse de dentro de mim !
Seguirei seus passos, em silêncio.
Caro Luis Eduardo Matta, O artigo sobre o livro "Ensaios sobre o Silêncio" é acima de tudo didático, pois a maioria das pessoas não tem a menor consciência da importância da prática do silêncio para uma vida saudável e próspera. Sou praticante da meditação há muitos anos e sei o tesouro que habita o interior silencioso de cada um de nós. Um dos astronautas que foi à lua comentou certa vez que ficara impressionado com o silêncio do espaço sideral, em comparação com o ruído da vida na Terra. O ruído quem faz é o homem, pois a vida é essencialmente silêncio. Parabéns pelo ensaio. Abraço.
Você sabe que, ontem, eu e um grupo de amigos estavamos falando exatamente disso? E nos questionavamos se o silencio existia, e como seria a sensação de total ausencia de sons? Por exemplo, no meu quarto agora, se eu parasse de teclar estaria em silencio, mas logo ouço o barulhinho do relógio. E depois do relógio, tem uns outros sons constantes, como os da energia elétrica, etc. Ficamos tentando imaginar um lugar realmente silencioso... pensamos no vacuo (começamos a pegar pesado, hahaha). Mas será que o silencio do vacuo era realmente silencioso? Caramba! O silencio existe?