A minha geração - que atualmente toma de assalto as letras brasileiras, seja através da literatura, seja através do jornalismo, seja através da internet - cresceu sob a polarização, entre esquerda e direita, a partir dos anos 60. Somos todos, portanto, filhos de uma juventude (em parte no poder) que acreditava num mundo dividido entre bons e maus, entre santos e pecadores, entre progressistas e conservadores (não necessariamente nesta ordem). Ocorre que o muro de Berlim caiu (1989), a URSS se desintegrou (1985-1991) e boa parte das ideologias de esquerda ruiu, para muita gente se convencer, através dos resultados (desastrosos), de que não basta tentar encaixar o homem em algumas abstrações utópicas.
Ao mesmo tempo em que foi uma tomada de consciência, de que o socialismo (ou o comunismo) puro e simples não é a solução, esse movimento se mostrou como uma chance de se banir o idealismo (aquele, pai do totalitarismo) e de se lançar num pragmatismo não-ideológico que poderia inaugurar uma nova era, menos iludida com partidos e salvadores da pátria, e mais ocupada com problemas reais. Afinal, um buraco de rua não é de esquerda nem de direita, tampouco a ameaça do apagão (no planeta inteiro, não só no Brasil), o esgotamento de recursos e de fontes energéticas não-renováveis, a miséria do terceiro e quarto mundos, o terrorismo, as desigualdades sociais, etc. São questões de segurança (inter)nacional, são calamidades mais do que públicas, são ameaças ao status quo (se ainda existe um) - que deveriam despertar a humanidade de sonhos revolucionários e exigir uma ação imediata, técnica e científica, longe do blablablá político. Mas não é assim que tem acontecido.
E o que eu mais lamento não é a geração dos 60 voltar à carga com velhas cartilhas e com velhos slogans, de 40 ou mais anos atrás, mas a minha geração - a primeira que poderia propor um debate longe dos chavões de esquerda e de direita - mais uma vez embarcar, como tantas outras, nas ideologias de tempos passados.
O que me assusta, na verdade, não é o mesmo ramerrão de esquerda, sendo ecoado por bocas que me são próximas, afinal de contas, a ideologia de esquerda sempre esteve subjacente, desde as aulas de História e geografia no primário até o apelo irresistível da rebeldia universitária, contra o "sistema" e contra os "costumes" que nos foram impostos (sic). (Quando se é jovem esse discurso cai como uma luva, e você embarca...) E até porque muitas conquistas, dos discursos de esquerda, são efetivamente razoáveis, pois, por exemplo, não é civilizado bancar o wasp (macho branco adulto) para cima de mulheres, negros e homossexuais. Existem, sim, direitos inalienáveis a todo ser humano e, embora haja exageros acadêmicos e judiciais (principalmente nos EUA), não podemos retroceder hoje em questões tão óbvias.
O que me preocupa então é uma onda fundamentalista, naturalmente de cunho religioso, para quem estamos imersos no "caos" e precisamos urgentemente regressar à "ordem". Essa gente se diz, em princípio, neutra no debate, e chega heroicamente propondo o fim de uma hegemonia (de pensamento) de esquerda, mas também abusa de palavras-chave como "tradição". É um bem-disfarçado discurso, evidentemente ideológico, que remonta à mesma onda conservadora ou neoconservadora dos Estados Unidos da América atual. (Alguns gurus, daqui, acham que descobriram a pólvora, mas, por comparação, vê-se que as idéias já chegaram empacotadas - nem digo impostas - do Tio Sam.)
Assim, é triste assistir à migração de jovens mentes brilhantes para o coro medievalista, que se diz "liberal", mas que acredita em "cura" para homossexuais (via "padres"), que tira sarro das mulheres que trabalham ("lugar de mulher..."), que ataca ferozmente um certo "ceticismo científico" (provavelmente clamando por uma espiritualização forçada e por um dogmatismo pré-Galileu, pré-Copérnico, pré-Kepler, pré-Newton...). O mais absurdo é que, embora alimentem esses pontos de vista, essas pessoas usam a internet (tecnologia) para divulgar suas teorias, não abrem mão de "transar" com suas namoradas (antes do casamento, é claro; não abrindo mão, também, da pílula) e, por último, acreditando-se muito superiores aos que antes cantavam "É proibido proibir", ressuscitando por fim um moralismo antiquado (isso ainda existe?) e defendendo, em público, a ampla e irrestrita liberdade de expressão, mas, em privado, praticando a nefasta censura prévia. (Uma gente que exalta o indivíduo mas que, na hora do aperto, age mesmo é em grupo. E dá-lhe espírito de rebanho...)
No fundo, esse retorno a uma filosofia de sistema revela a incapacidade, que muitos ainda têm, de aceitar o mundo e, em menor escala, a vida em toda sua complexidade. É mais barato comprar algumas crenças bem-justificadas logo ali na esquina e depois se esconder, atrás de escudos retóricos (testados e aprovados para a maior parte dos casos), do que pensar com a própria cabeça e encarar, sozinho, os vazios da alma e da existência humana, em maior escala. A religião, por exemplo, como disse um escritor contemporâneo, é uma providencial muleta coletiva, feita para quem quer se salvar da espiritualidade pessoal, muito mais profunda e complicada do que meia dúzia de conceitos prontos (deus, diabo, céu, inferno, pecado, expiação...), absorvíveis instantaneamente pelas massas. Do mesmo modo, as ideologias: um pacote completo, rotulando a sociedade de cima a baixo, definindo quem é amigo, quem é inimigo, e fornecendo explicações imediatas para dúvidas que, em toda eternidade, talvez não tenham mesmo solução. E esse banzo por uma visão de mundo em que era "fácil" detectar os bons e os maus, adotar comportamentos de torcida e dormir à noite tranqüilo... só pode ser nostalgia do simplismo. Até as crianças sabem que viver é um pouco mais complicado...
Em resumo, eu espero sinceramente estar errado ao supor que o número de compradores dessas "receitas de bolo" intelectuais esteja crescendo a uma taxa alarmante. Claro que sei que vamos ter de sair de alguns "becos sem saída", como o artístico, refém por mais de um século do modernismo e do pós-modernismo, - mas não acredito que a salvação esteja na ideologia e, muito menos, na religião. Não acredito também em Hegel (outro filósofo de sistema), mas quero crer que a História segue andando para frente, irmanada com a ciência, que fez muito mais pela felicidade (objetiva) do homem, em pouco mais de 500 anos, do que muitos milênios de religião. E de ideologia. Precisamos aprender a resistir a essas tentações fora de moda.
Caro Julio, li seu artigo sobre ideologia e quero lhe dizer que assino embaixo. Tenho 55 anos, fui ativista de esquerda e continuo comprometido com os ideais de justiça social e liberdade. Porém não aceito mais a patrulha ideológica que os dinossauros frustrados ainda insistem em praticar. A vida é muito mais complexa e sutil do que pode possa dar conta uma simples ideologia reducionista. Parabéns pela lucidez e coragem de dizer o que precisa ser dito. Abraço. José Diney.
Olá, Julio! Grata surpresa reler o Digestivo Cultural! Não o lia desde os tempos que saimos da Poli. Parabéns pela abordagem do texto, muito bem conduzida! Como ressalva, acrescentaria que o debate Religião x Ciência é problemático pois ambas carregam preconceitos e dogmas que impedem a troca de informações. Torço para que a Religião, a Ciência e a Arte dialogarem francamente para melhor compreendermos as grandes questões da vida.
Prezado Julio, apesar de não possuir tamanha erudição antropológica, histórica etc. asseguro-lhe (modestamente é claro) que muito do que vivemos nos dias de hoje é mero reflexo do que ainda pode vir! Nossa geração, como você mesmo disse, agarrou-se aos velhos dogmas que se arrastaram (e sobreviveram, miraculosamente) por séculos. Vivemos a nostalgia do que não fomos. Não tivemos a coragem de capitular e cuspir no prato da História. É mais seguro caminhar pela sombra. E como isso tudo me aborrece, continuo me esmerando na fina arte de chutar tampinhas! Grande abraço, Gui.
Meu prezado, sobre sua oferta de ideologia (?) nesta sexta 15, estou digitando uma matéria - na verdade, uma carta solidária, dirigida a você mesmo... - refletindo, como um sobrevivente dos anos 60..., sobre bestidades inventadas por alguns colegas nossos (refiro-me ao bicho dito humano...) Por ora, meu abraço, assinando (sem sua autorização...) quase tudo que você refletiu escrevendo.
Caro Julio, parabéns novamente. O vale tudo pós-modernista, segundo o qual não há verdade absoluta, mas discursos culturalmente construídos, provoca estragos. Também considero essa visão relativista crescente nos dias atuais – se alguém duvida, que busque a bibliografia dos nossos cursos acadêmicos nas ciências sociais, repleta de "desconstrutivismo", ausente de qualquer referência às ciências naturais. Há, ali, o elogio do misticismo ideológico (precisamos de um Alan Sokal brasleiro, quem sabe você, Julio?) e o combate ao "discurso" científico. A ciência, de fato, cometeu equívocos, mas quase sempre quando deixou de lado os instrumentos que devem marcar seu trabalho – caso contrário, não é ciência. O principal deles é a PROVA, tão negligenciada, infelizmente, nos estudos atuais de História, Filosofia, Comunicação etc.
Neste início de milênio, o que se vê é um retrocesso a um “medievalismo” aliado à preguiça das pessoas em criar uma consciência crítica sobre tudo o que as rodeia. E então, como citado em seu artigo, se apegam nesses “pacotes” ou “receitas de bolo” que lhes sacia a fome de “andar no caminho certo” (já que são incapazes de fazê-lo por si mesmos) ou trazem dicas, sugestões, injeções de ânimo e afins que lhes fazem pensar que o “sucesso” é possível desde que se sujeite a sacrifícios de toda ordem. A religião (ou espiritualidade, como dizem os que não fazem parte das religiões ditas oficiais ou coisa parecida) se encarrega de arrebanhar grande parte dos iludidos e desamparados. São os que não acreditam nos estudos científicos e se prestam a ler somente o que suas igrejas lhes ordenam, tapando-lhes a mente e tornando seu coração presa fácil para o apelo insaciável dos sacerdotes “que falam pela boca do todo-poderoso”. Vez ou outra surge nova corrente naturalista que prega substituição radical de carne bovina por toneladas de vegetais, na esperança de se prolongar o tempo de vida útil das pessoas. Qualidade de vida não vem em pacotes “milagrosos”, nem está na busca esquizofrênica por um corpo de atleta ou de “top model” da hora. Mais vale ser o que se é, com todas as imperfeições e virtudes, desejos e frustrações, sabendo aproveitar o que a vida tem de melhor. E, para essa juventude que aí está, basta botar a cuca para funcionar, ler mais (ou simplesmente ler), exigir mais qualidade no ensino, deixar os modismos de lado, enfim, fazer acontecer, porque senão a máquina rosa dos “shopping centers” ilusórios podem seduzi-los tal qual sereias com seus cantos enfeitiçadores.
Eu acho que está cada vez mais difícil as pessoas conseguirem chegar a denominadores comuns, justamente por que ainda temos esse habito de adotar sistemas e padroes para tudo. E sao tantas ideologias distribuidas na vitrine da vida que todos tentam convencer-se de que aquela que escolheu é a melhor, é a verdadeira. E assim até falar de música pode se tornar um grande problema... E eu que um tempo atrás achava que a gente só discutia por religião e política. Adorei seu texto, Julio, gostei tanto que eu queria tê-lo escrito. Um grande abraço.
os jovens vem p/ a coletividade do homo "sapiens sapiens" com direcionamentos pré moldados a interesses que certamente nao se procupam realmente com eles como seres humanos, senao como mao de obra, mercado consumidor e estatísticas. é extremamente mais difícil conseguir emergir nessa realidade, constituir prismas próprios. E está tudo já tão organizado para a manutençao desse cenário que, infelizmente, os jovens estao presos em círculo vicioso. Talvez até se utilizem da expressao "nao de pérolas aos porcos" para se justificarem, e quem define quem serão os porcos? Gostei muito do texto, mesmo discordando parcialmente dele. Já que acredito que construçao de uma ideologia individual possua grande importancia. Somos seres Políticos, lembrando Platão. podemos deixar nosso natural egoísmo e fazer parte de algo maior. Toda a história é marcada por uma série de revoluçoes, de correntes que se formam, pela urgencia de mudanças na sociedade. Gandhi ousou falar pessoalmente aos chefes políticos britanicos que mais cedo ou mais tarde sariam da India (nao que a trajetoria da descolonizao tenha sido feito de discursos e flores). Mas há a necessidade de mudanças, quais serao as revoluçoes desse novo século. Quem ditará seu ideais? Que escola estamos construindo para nossos filhos? Ainda quero lembrar de Emmanuel Kant "ninguem poderá obrigar-me a ser feliz à sua maneira" estao longe das minhas inteções querer fazer algo assim, porém não podemos cruzar os braços e resguardarmos a solucionarmos nosso caos interno, nao estamos sós...
Uma das consequências da liberdade de expressão é justamente a polarização das idéias. Afinal, para ser notado, para ter um perfil, um ideal, não se tem receita pronta, devemos escolher um polo. É melhor deixar cada um escrever como quer, pois a ideologia é somente uma faceta da realidade. A menos significante. Quantos destes "conversores de homossexuais" estarão dispostos a levar um padre a um homossexual? O que falta mesmo na sociedade brasileira são pessoas que transformem palavras em ações. Ou que ao menos usem as palavras não para ditar ordens sociais, mas como forma de entretenimento, ou, mais importante, de inspiração. Quantos romances e histórias bonitas não me inspiraram ou me levaram a horas mágicas? PS: Acho que mais um fator que influi é que a sociedade brasileira é dominada em todos níveis por um pensamento reciclado da geração pós-ditadura... Naturalmente, daí os jovens irem para a direção contrária. Sucesso com sua jornada das palavras para a ação!
Que maravilha! Tocou no cerne do problema. Temos uma classe de intelectuais presos no século passado, usando o velhíssimo jargão, jumentícios, apaixonados, agarrados no atraso - não dá para entender. Quando vejo isso perco a esperança.