COLUNAS
Terça-feira,
23/11/2004
Dino Buzzati e as Noites Difíceis
Fabio Silvestre Cardoso
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Numa livraria no centro de São Paulo, este colunista e mais dois amigos conversavam sobre livros e autores. "Qual foi o livro que mais marcou sua juventude?". Eu ainda ensaiva uma resposta quando um senhor que não participava do bate-papo disse, categórico: "O meu foi O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Algo naquele livro, que eu ainda não descobri o que é, mexeu muito comigo, me incomodava. Nunca mais esqueci o autor."
O ocorrido foi há mais de dois meses. Na verdade, só fui me lembrar deste comentário quando comecei a ler a coletânea de contos As Noites Difíceis, do mesmo autor, que foi lançada em edição caprichada pela editora Nova Fronteira. Trata-se do último livro lançado em vida pelo autor, morto em 1973. Nele, o leitor há de encontrar, de fato, um certo incômodo com as histórias um tanto irônicas, mas, sobretudo, amargas, de acordo com a visão de mundo proposta por Buzzati. Com efeito, é correto afirmar que no livro estão presentes as temáticas mais representativas do escritor italiano, a saber: uma observação arguta da realidade, discussão moral e um ceticismo infalível em relação à condição humana.
Tais elementos aparecem ora em conjunto, ora em singular nos contos de Buzzati. E o mais curioso é que o escritor não faz de seus textos panfletos autoritários, com objetivo de ditar o que é certo e o que é errado. Antes, o leitor é conduzido, por meio de uma narrativa sedutora, às inúmeras constatações de uma cruel e corrosiva realidade cotidiana. Um exemplo claro disso está no conto "Solidões", em que o personagem principal é surpreendido ao ver um homem levar de sua suntuosa mansão uma caixa nos ombros. Sua surpresa se transforma em consternação quando ele descobre que aquela caixa é um de seus dias. "Os seus dias perdidos. Os dias que você perdeu. Você esperava por eles, não esperava? Eles vieram. E o que você fez com eles? Olhe, estão intactos, ainda cheios. E agora..." Por se tratar de uma constatação, e não de uma lição, Buzzati não traz alívio e conforto ao final de seus contos. Desse modo, ao homem que perdeu seus dias só resta o lamento e a inquietante sensação de que não há mais volta no tempo perdido.
Em "Contestação Global", o autor prossegue com esse ceticismo, mas, desta vez, aproveita para fazer uma alusão, não menos irônica, aos jovens, como bem sugere o título. Aqui, um velho funcionário de uma companhia de seguros discursa na reunião de aposentados.
"E o que querem esses moços? [...] O que representam? Sua bandeira é até clara demais: contestação global. Mas são jovens. Com todas suas boas intenções não podem conhecer a vida. E nós [os velhos], ao contrário, infelizmente, a conhecemos." A seguir, o personagem acerta em cheio em sua observação: "Eles lutam por um ideal, talvez até louco e confuso, porém pergunto: é realmente total a contestação deles?" Para o velho funcionário, a verdadeira causa que deveria mobilizar toda a sociedade era o pior de todos os males, a morte. Cabe aqui reconhecer que Buzzati expõe seu drama pessoal de maneira indireta nesse conto, uma vez que, conforme analisa seu biógrafo, à época da publicação deste livro, em 1971, o autor já sabia que sua morte não apenas era inevitável como estava próxima.
Tal condição, aliás, é tema de outro conto, "Equivalências". Nele, Buzzati narra a tristeza de uma esposa ao descobrir que o estado de saúde de seu marido é grave e que a morte, conseqüentemente, é certa. Todo o conto é construído com diálogos em suspensão, isto é, o médico quase nunca consegue completar a sentença temerária. Só no final, ela recebe a inesperada resposta: o marido morrerá em exatos 50 anos. Após ouvir atenta, a mulher reage, com certa animação: "O senhor me deu uma notícia horrível. Mas, veja, dentro de cinqüenta anos eu também [...] No fundo, então, é uma condenação para todos." Ao que o professor replica: "Em cinqüenta anos, nós todos estaremos embaixo da terra, pelo menos é provável. Mas há uma diferença, a diferença que nos salva a nós dois e condena seu marido... Para nós dois, ao menos pelo que sabemos, ainda não está estabelecido. [...] A morte, em si mesma, talvez não seja uma coisa tão terrível. Todos a teremos. Porém, ai de nós se soubermos, seja daqui um século, dois séculos, o momento exato em que virá." No momento em que se espera um alento na ficção, a realidade a subverte e torna sua face mais áspera.
Em alguns contos de Dino Buzzati, nota-se um apelo mais próximo ao fantástico, como ocorre em "A influência dos Astros". Neste texto, um homem que não acredita nos boletins esotéricos de uma cidade na Itália se vê envolvido numa história sem lógica, a não ser pelas coincidências que lhe causam prejuízos e distúrbios. Quando, ao final, tudo se ajeita ele então nota como tudo poderia ter sido evitado se sua sensibilidade fosse um pouco mais aguçada. Já no conto que dá título ao livro, "Uma Noite Difícil", o autor traz o que seria, a princípio, uma história familiar. O próprio Buzzati é personagem coadjuvante deste conto, que narra a aflição de dois pais à espera da morte pelas mãos de seus filhos. O fantástico, nesse caso, é a forma pela qual todos tomaram conhecimento do que estava por acontecer: a velha tia Gorgona teve um sonho e ali tudo lhe fora dito. O ceticismo de Buzzati permanece até o fim, quando, ao sair da casa de seus amigos, ele ouve a tia Gorgona saudar os sobrinhos.
Grosso modo, os contos de As Noites Difíceis reiteram os principais elementos da obra de Dino Buzzati, seja no que se refere ao estilo, que remonta à descrição jornalística e também escorre pelo fantástico, seja no que se refere aos temas, que não raro são os mesmos que lhe acossam e o incomodam. A partir desses contos, é possível compreender o motivo da inquietação de alguns leitores da obra de Dino Buzzati.
Brasília é uma festa
Quando eu disse que passaria o feriado da Proclamação da República em Brasília, minha amiga Eliana Guedes, a Lili, falou, em tom irônico, que a Capital Federal não tinha tantas coisas interessantes assim para se fazer. No momento em que ela disse isso, fiquei sem resposta e, resignado, concordei. Realmente, à primeira vista, a cidade, comparada com a agitada São Paulo, talvez não seja tão atraente. Entretanto, Brasília é uma cidade além dos clichês de agito-balada, que servem de salvo-conduto à caótica São Paulo. A cidade que abriga o poder político nacional tem prazeres escondidos. Falar a respeito da Arquitetura e Urbanismo do lugar pode parecer mais do mesmo, mas é um detalhe que ainda representa, para mim, um exemplo de organização e planejamento. Assim como é diferente trafegar (lá só se anda de carro) pelas "tesouras", como são conhecidos os enlaces viários que "amarram" a cidade. Afora isso, há a beleza dos Palácios do Planalto, da Alvorada e do Itamaraty.
No Palácio do Itamaraty, aliás, está a recém inaugurada exposição O Olhar Modernista de JK. A mostra faz uma homenagem à exposição de arte moderna ocorrida em Belo Horizonte há exatos 40 anos. Naquela época, a capital mineira era o principal projeto arquitetônico e urbanístico existente por aqui, posto que foi uma das poucas cidades planejadas do Brasil. Esse é apenas um dos pontos levantados. Quem for à mostra, que ainda passará pelo Rio de Janeiro e por São Paulo, terá a chance de ver obras de Pancetti, Alfredo Volpi, Guignard, entre outros. Merece destaque o segmento que homenageia Martha Loutsch, artista plástica alemã radicada no Brasil.
Sob a curadoria de Denise Mattar, a exposição possui uma coerência que não faz com que ela não se torne cansativa. Em geral, as mostras sobre o modernismo geralmente fazem menção aos mesmos nomes e às mesmas obras. Já O olhar modernista de JK traz muito mais, como as diferentes linhagens ou escolas que se desenvolveram a partir do marcos iniciais de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Ao fim e ao cabo, trata-se de um bom motivo para conhecer Brasília e seus interiores.
Para ir além
Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo,
23/11/2004
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