Em 2004, poucos foram os livros que li e não escrevi uma linha a respeito. De um lado, como estudante de um curso de pós-graduação, tinha a tarefa de fazer "fichamentos" das obras escolhidas para realização de uma monografia; de outro, como jornalista, para este Digestivo, lia (Literatura, Crítica Literária, História) os livros e produzia as resenhas. Por isso mesmo, é curioso que a obra que tenha chamado mais minha atenção entre todas tenha sido um livro para o qual não produzi qualquer resenha - apenas comentário e indicações para outros amigos. Desonra (Companhia das Letras, 2003), do escritor sul-africano John Maxwell Coetzee, foi uma surpresa tanto pela forma, um estilo seco e conciso, como pelo conteúdo, um enredo interessante com contornos fortes e com temática bem atual.
De início, a história narra a desastrosa trajetória de David Lurie, um professor universitário que leciona poesia numa Universidade da África do Sul. Logo nas primeiras páginas do romance, o leitor conhece a maneira burocrática com que Lurie "administra" sua vida. Desde o relacionamento freqüente com uma prostituta até a sua conduta como professor, tudo é tratado com um discurso para lá do método. Trocadilhos à parte, o professor Lurie mantém-se sempre à distância; o máximo de envolvimento que ele se permite é a ironia que beira o sarcasmo: "Nunca foi um grande professor (...) Ele continua ensinando porque é assim que ganha a vida; e também porque aprende a ser humilde. A ironia não lhe escapa: aquele que vai aprender acaba aprendendo a melhor lição, enquanto os que vão aprender não aprendem nada".
Este cenário começa a desmoronar na vida do professor quando, um dia, a prostituta com quem ele se relaciona se recusa a vê-lo depois que se encontram casualmente num supermercado. Para um homem metódico como Lurie, aquela quebra de rotina abalaria as demais estruturas "em cadeia". É a partir daí que ele se envolve com uma aluna e, em tempos politicamente corretos como os nossos, vê não somente seu cargo ameaçado, mas sua reputação, diante da família e de amigos, em verdadeira condição de desonra. Sim, esse é um estado por demais vexatório para ele, um professor universitário, um intelectual; contudo, Lurie não parece tão incomodado por esse acontecimento. É verdade que todo o envolvimento com a aluna lhe traz algum constrangimento; no entanto, isso fica em segundo plano, principalmente porque Lurie procura minimizar o ocorrido e seus desdobramentos com uma franqueza que assusta: "Se vou sentir falta [da Universidade]? Não sei. Não era grande coisa como professor. Estava cada vez me relacionando menos, acho, com os alunos. O que eu tinha para dizer eles não estavam interessados em escutar. Então talvez eu não sinta falta. Talvez eu venha a gostar da exoneração".
O professor então deixa a Cidade do Cabo e segue para o interior do país, a fim de passar uns tempos com sua filha, Lucy, que cuida de uma fazenda por lá. Nesse local, Lurie decide escrever uma espécie de peça com letra e música, algo diferente do que ele fizera até o momento. Nesse trecho do livro, é interessante observar o tratamento dispensado pela filha ao pai. E o primeiro detalhe que denuncia isso é o fato de Lucy nunca chamar Lurie por pai. Antes, a filha prefere o primeiro nome do professor, David. Afora isso, não há muito mais o que dizer quando lemos a seguinte sentença de uma filha para o pai, quando perguntada por este sobre sua presença: "Fique o tempo que quiser. Pela razão que for".
Até aqui, em que pese a exoneração da Universidade, a vida de David Lurie seguia de maneira normal. Seus hábitos foram adequados à condição em que ele vivia, mas, de todo modo, ele sobreviveu a todas essas mudanças. Outro acontecimento, contudo, transformaria de uma vez por todas a vida do professor. Isso se dá quando ele e sua filha são atacados por três homens. Coetzee constrói aqui uma breve, porém, contundente peça descritiva; não há excessos no que está escrito, mas sobram detalhes no que o autor sugere, na brutalidade e no barbarismo que preenche o contexto daquelas cenas: ao mesmo tempo em que é um ataque bárbaro, Lurie e sua filha são vítimas de um processo de sobrevivência que permeia a África pós-apartheid. O que mais atormenta o professor Lurie nesse momento de terror é saber que, por mais que ele queira, não há nada que possa fazer; ou, pior: não há nada a ser feito. "Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil (...)". Quando os bárbaros vão embora, Lurie finalmente descobre o que, tragicamente, aconteceu com sua filha. Novamente, a prosa de Coetzee marca presença principalmente pela falta. Em outras palavras, o autor evidencia a brutalidade dos fatos omitindo o nome da atrocidade. As personagens, como conseqüência, também entram nesse jogo de máscaras, a começar pela vítima principal: "David, quando as pessoas perguntarem, você se importaria de contar só a sua parte, só o que aconteceu com você?" Confuso a princípio, o pai, revoltado, logo entende o que a filha quer dizer. Esta, sim, é a sua desonra.
Desonra que, ao contrário do que ele imaginava, não se apaga com o tempo. É uma marca que ele terá de carregar para sempre, uma punição severa para quem até então não se abalava por nada, nem quando via sua reputação jogada na lama em função de um escândalo sexual. A partir do ocorrido com sua filha, o professor tenta, sem sucesso, prosseguir com sua vida, mas todas as vezes o fantasma do ataque o assusta; e a desonra o persegue como se fosse uma sina. Para ele, a situação fica mais insustentável quando ele descobre os autores do ataque e, infelizmente, não pode fazer nada. Aqui, o professor aprende, não sem ironia, mais uma dura lição: sua filha prefere se resignar a ter de enfrentar a publicidade de sua tragédia.
Em Desonra, John M. Coetzee traça, com o "subterfúgio" da ficção, um fiel retrato da condição humana. São questões pertinentes ao cotidiano e ao clima de um local muito específico (a África do Sul atual). No entanto, o autor impõe a esse contexto um ponto de vista mais abrangente, que envolve o leitor na história do começo ao fim. Não se trata de um thriller de ação, mas, mesmo assim, há uma força nas palavras, que remete a uma elaboração perspicaz de cada descrição e de cada diálogo. Nesse sentido, forma e conteúdo se completam, a fim de que um não fique abaixo do outro em termos de qualidade técnica. A propósito, não há de ser à toa que Coetzee escolhe, de forma recorrente, professores de literatura como personagens principais (além de David Lurie, há a já famosa Elizabeth Costello, presente em A vida dos Animais e em Elizabeth Costello). É a partir da literatura que ele expõe as sutilezas do real.
Curioso: não é um livro que eu vá colocar na minha lista dos "para ler" - mas a resenha é boa; pela qualidade da mesma, pode ser um estímulo à leitura para outros leitores...