Pro Walter Daguerre,
autor, teórico e diretor que gosta de desconstruir quimeras
Escrever, ler, roçar, apalpar, comer, cozer, trepar, fazer poesia, pesquisar, amar, odiar, se atirar, se retirar, pensar, se pensar, jogar, se jogar... Fazer experiências, jogar no caldeirão e mexer com uma colher de pau e esquentar com ferro quente. Errar e acertar ao mesmo tempo, indo ao âmago, indo à lama, ao fundo d'água. Isso é arte experimental, isso é a essência do teatro experimental ou contemporâneo ou de pesquisa (a nomeclatura que o senhor ou senhora desejar).
O foco neste teatro é a cena. A cena como resultado ou como processo das pesquisas que foram feitas na tentativa de compreensão do texto, da vida, dos valores, da própria cena e das relações feitas entre esses pontos. A cena é o lugar independente e a pedra fundamental da construção e da pesquisa de perguntas e respostas. É nela que se encontra a gênese das discussões colocadas.
Obviamente, isso a torna um caldeirão de imagens pensadas esteticamente, em que os valores de construção estética são propostos pelo próprio artista criador.
A cena preenche, lota, mas não encerra a discussão. Ela brinca, ensaia e desvia de certos pontos que estão presentes dentro dela mesma, tentando alcançar as várias possibilidades de pensamento e de realização.
Isto é teatro de pesquisa, é a cena, é a pesquisa cênica. É a arte que é criada de forma a alterar o texto, o projeto e o espectador em seus sensores e em sua consciência.
Pra tanto mudam-se os valores, não é de certo e errado, mesmo dentro do próprio espetáculo, que uma análise sobre ele deve tratar, mas sim da quantidade e da qualidade de jogo. Do grau de chafurdamento, de desvios, de erros pela busca incessante e insaciável de algo na cena. O erro é parte importante, é parte da experiência.
"Ensaio.Hamlet é uma aproximação. É mais uma série de perguntas e experiências do que uma montagem da peça-quimera, da peça desafio" (Enrique Diaz no texto do programa de Ensaio.Hamlet).
A Cia. dos Atores, dirigida por Enrique Diaz, comemorou este ano 15 anos de chafurdamento em teatro, com o grande acontecimento da temporada teatral (pelo menos carioca, um a priori que me deixa mais à vontade): o espetáculo Ensaio.Hamlet.
Na arena do espaço Sesc-Copacabana o que se viu foi a mais pura tentativa de, a partir de um texto considerado um dos maiores escritos na história da humanidade - uma "peça-quimera" - realizar a experiência da qual estamos tratando. Pensar e discutir vida, morte, religião... e principalmente teatro e as relações teatro-vida, teatro-emoção, teatro-cotidiano eram os objetivos da montagem.
Tendo estreado no dia 7 de abril de 2004, tinha no elenco Bel Garcia, César Augusto, Felipe Rocha, Fernando Eiras, Malu Galli e Marcelo Olinto. O espetáculo também cumpriu temporada em São Paulo.
Em cena víamos experimentações imagéticas de certas questões apontadas por Shakespeare e, a partir dele, apontadas pela própria companhia.
A encenação era composta por uma série de construções estéticas que permitiam a inclusão de discussões em cena: televisões e câmeras se misturavam a um turbilhão de objetos, como ventiladores, que eram levados de lugar pro outro quase o tempo todo, criando assim pequenos jogos, pequenos enredos; cenas projetadas em televisões criavam vários planos; um bife era "passado à ferro quente" etc.
Uma das questões centrais colocadas pela Cia. é o que seria a idéia de herói pra Shakespeare e pra eles mesmos. Assim, a interpretação de Hamlet era alternada por um ou mais atores em diferentes momentos, o que geraria e poria em cena as várias possibilidades do que isso significa. E o mesmo era feito com a idéia de personagem.
Na montagem havia também uma busca pela verdade muito comum à arte contemporânea. Ela não passa pela tentativa de iludir a platéia através da "imitação da vida" naturalista, mas por buscar a vida, assumindo a própria verdade e buscando uma verdade estética. A partir daí, encher a cena de vida, ou seja, de presença cênica.
O maior exemplo disso acontecia em uma das cenas mais importantes do espetáculo e do texto: o suicídio de Ofélia, que, louca e apaixonada por Hamlet, se joga no mar. A moça que faz Ofélia, naquele momento, é banhada de água por um balde de vidro, e a saída da água gerava um ruído que lembrava o som da respiração (ou da falta dela) pela boca cheia de uma pessoa que se afoga. O tradicional "glump, glump, glump" potencializando e poetizando a cena. Chegando a uma verdade cênica, a uma verdade estética.
As pesquisas cênicas o tempo todo tangenciavam uma investigação sobre o ser humano, o seu cotidiano, o seu emocional e a sua alma, trazendo de volta um pilar fundamental presente no teatro grego, a utilização do teatro pra transformação humana. Pros gregos, a tragédia provocava a catarse retirando o excesso de terror e piedade do homem presente e a comédia o excesso de ridículo e de escroto que há no homem.
Isto, em Ensaio.Hamlet, se dava de forma atualizada e muito mais complexa, como é comum e necessário à nossa era. Não sabemos mais quais são os pontos que queremos modificar diretamente e o espetáculo se torna também o momento da busca destes pontos que nos incomodam como humanos, ou dos pontos que inquietam nossa alma.
A montagem, assim, se tornava um ensaio no sentido literário e no sentido teatral, a experimentação anterior à forma final.
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No caso do Rio de Janeiro, cidade em que moro, há outro detalhe em jogo, a quase total carência de espetáculos experimentais nos últimos cinco anos. Assim, a encenação tornou-se uma das poucas possibilidades deste tipo de trabalho ser visto aqui.
Uma exceção citável e bastante importante também é a direção artística de Bia Lessa no Teatro Dulcina. Bia apresentou, neste teatro, dois grandes espetáculos dirigidos por ela, que tinham o mesmo intuito investigativo e talvez a mesma importância de Ensaio.Hamlet: Medéia, de Eurípides, onde a pesquisa cênica da diretora recai sobre uma visão ou uma geração de importância à bruxa Medeia, à Medeia que é senhora dos quatro elementos, à Média que é mulher; e, em uma reestréia em grande estilo após 15 anos, Orlando, de Sergio Sant'Anna, uma adaptação do original de Vírginia Wolf.
Além disso, ela abriu o espaço pra outros espetáculos e criou o evento multimídia Inventário do Tempo, onde, nos últimos meses, se apresentaram experiências contemporâneas de outras áreas da arte, ou, pelo menos, não reconhecidas e não resumidas em experiências teatrais por excelência.
Outro caso que pode ser citado como fundamental para este tipo de trabalho de pesquisa, no ano de 2004, é o espetáculo Deve haver algum sentido em mim que basta, da Cia. Teatro Autônomo, também em comemoração aos 15 anos de sua existência. Na montagem dirigida por Jefferson Miranda, a Cia. partiu de improvisações sobre o ser humano e a vida e suas possibilidades para a construção de uma cena que acabava por implodir com a narrativa linear, explorando a intertextualidade e o simbolismo.
Essa maneira de trabalhar em arte, dita contemporânea ou experimental ou de pesquisa, é necessária pela própria renovação da arte e pra retomada do papel transformador da vida e do homem inerente a ela.
Precisamos em 2005 de muito mais experiências deste tipo, que pensem em fazer um teatro ou uma arte (como quiserem) que realmente diga, sinta e reflita. Roubando um termo de Denise Stoklos: que nos próximos 15 anos o teatro, pelo menos o carioca, deixe de ter uma série de passatempos e tenha uma outra série de "ganha-tempos" desse tipo.