Em 2004, foram os sessenta anos do Dia D, celebrados com pompa na costa francesa. Este ano, serão os sessenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, e, na semana passada, os sessenta anos da liberação de Auschwitz, memorializados com cerimônia oficial no ex-campo de concentração e extermínio. Há muitas outras datas relativas ao término da Segunda Guerra, mas estas três têm ressonância excepcional no imaginário ocidental: o Dia D marcando a virada, o início do fim; o 8 de maio, dia do armistício; e 27 de janeiro, a liberação do mais emblemático campo de morte construído pelos nazistas. A cerimônia dos sessenta anos da liberação de Auschwitz ganhou relevo recente não só por seu significado histórico, mas pelo deslize do príncipe inglês Harry há três semanas, quando apareceu vestido de oficial nazista numa festa à fantasia. A fantasia infeliz do príncipe renova a importância dessas comemorações citadas acima. Confesso às vezes ter me perguntado se tantas cerimônias, eventos, filmes, memoriais e livros, repetidos a cada década, não são redundantes. Mas, diante de “Harry the Nazi” (como foi chamado por tablóides ingleses), não posso evitar pensar que essas encenações de eventos históricos são ainda necessárias. O desafio é não apenas transmitir o conhecimento dos fatos – até mesmo para evitar revisionismo histórico –, mas também comunicar o significado dos fatos. Em outras palavras, não só aprender o que se passou em Auschwitz, mas entender por que suas lições são importantes – o que nos dizem sobre a História, sobre os homens, e sobre o nosso próprio tempo.
Em primeiro lugar, por que, dentre tantos outros lugares de destruição, comemora-se a liberação de Auschwitz com tanto destaque? A cerimônia foi noticiada na imprensa e teve participação de dignitários internacionais; os sessenta anos estão sendo marcados também por artigos, conferências e documentários. Por que tanto interesse? Auschwitz tornou-se símbolo do Holocausto; acabou por representar as centenas de guetos, aldeias queimadas, valas-comuns, locais de massacre, campos de internamento, de trabalho escravo, concentração e extermínio espalhados pela Europa ocupada por Hitler. A “redução” a Auschwitz não é ignorância histórica, mas operação simbólica. Escritores e estudiosos usam intencionalmente Auschwitz para conotar o Holocausto; não é de admirar que, para boa parte das pessoas não familiarizadas com o tema, o nome “Auschwitz” seja não apenas o mais famoso, mas muitas vezes o único a evocar o horror nazista.
Mais de um milhão de mortos
Auschwitz encabeça a lista de mortes: entre 1,1 e 1,5 milhão de pessoas, a maioria judeus. A proeminência do campo vem, em parte, de sua dimensão e do triste recorde. Boa parte das vítimas do nazismo (incluindo sobreviventes) passou por lá – muitas vezes, na rota entre outros campos. Além disso, Auschwitz apareceu em algumas das obras mais marcantes ou populares sobre o Holocausto: os filmes A Escolha de Sofia, A Lista de Schindler, e o livro É Isto um Homem?, entre outros. Os filmes de Alan Pakula e Steven Spielberg contribuíram para disseminar não só o nome, mas imagens vividamente reconstruídas do campo. Já o livro de Primo Levi – inexplicavelmente esgotado no Brasil – é um dos textos mais honestos, sensíveis e impressionantes da sobrevida no campo. O relato de Levi sobre sua experiência influenciou não apenas outros autores de memórias do Holocausto, como também críticos, teóricos e historiadores.
Daí a notoriedade de Auschwitz. Além disso, o campo condensou aspectos e funções que outros campos nazistas dividiam. Auschwitz tinha o status excepcional de campo de concentração e extermínio ao mesmo tempo. Campos de concentração, como Dachau, Buchenwald e Theresienstadt, eram locais primariamente dedicados ao aprisionamento e trabalho forçado. Já campos de extermínio eram fábricas de morte, cuja função básica era enfiar pessoas na linha de produção – ou melhor, destruição – das câmaras de gás. Obviamente, milhares também morreram em campos de concentração: de fome, de doenças, de maus-tratos, executados por oficiais nazistas. Alguns campos de concentração chegaram a ter pequenas câmaras de gás. Mas nada se compara ao massacre industrial em lugares como Sobibor e Treblinka. Esses campos, no leste polonês, eram relativamente pequenos em relação ao número de pessoas que passariam por lá. Havia poucos barracões, onde residiam oficiais e os prisioneiros selecionados para ajudar no “trabalho”. A maior parte das pessoas era imediatamente desovada no banho de gás cianídrico, e depois nos crematórios. Em Treblinka, morreram cerca de 870.000 pessoas; em Sobibor, 250.000.
Auschwitz combinava as duas funções. Composto por um campo de concentração original, conhecido como Auschwitz I, onde pequenas câmaras de gás foram testadas no início, o complexo foi se espalhando e acabou por incluir dezenas de instalações-satélite, entre as quais a maior era Birkenau. Lá estavam centenas de barracões de prisioneiros, e imponentes construções combinando câmaras de gás subterrâneas e torres para crematórios. Em muitos períodos, funcionavam incessantemente: dia e noite a fumaça negra subia das chaminés dos crematórios, os fornos não dando conta dos corpos. Se não fosse o cheiro de carne queimada, seria a imagem de uma usina eficiente.
Auschwitz: síntese, exemplo e caso especial
Auschwitz, assim, sintetiza quase tudo o que se associa a campos nazistas: câmara de gás, barracões a perder de vista, trabalho forçado, morte em massa. É importante, claro, que se entendam as diferenças entre campos, e as nuances do genocídio nazista. Mas o estudo de Auschwitz é um bom começo, e ilumina a compreensão de muitos aspectos mais gerais da vida (e morte) durante o Terceiro Reich.
Por exemplo, a produção industrial de morte é em si suficiente para garantir ao Nazismo o qualificativo de “encarnação do mal absoluto”. Mas – infelizmente – as câmaras de gás são apenas uma parte do horror. Alguns sobreviventes, aliás, chegaram a afirmar que a morte imediata teria sido melhor do que ter de enfrentar o dia-a-dia do campo. Os prisioneiros de Auschwitz eram entulhados em barracões precários, onde se apertavam em “prateleiras” de dormir. A dieta era uma tigelinha de sopa rala, feita de água e cascas de nabo ou batata, e um pedaço de pão duro, muitas vezes mofado. Os prisioneiros eram esqueletos ambulantes. Dormiam três ou quatro horas por noite, eram forçados a trabalho duro no resto do tempo. Em toda parte havia vigilância de oficiais nazistas. A intenção não era manter a ordem, mas reforçar o terror, intimidar, humilhar. Abusos verbais eram acompanhados de violência física. As regras de comportamento, rígidas e impossíveis, mudavam sem previsão, de modo que sempre um prisioneiro estava fazendo algo proibido e poderia ser punido. Em suas memórias, sobreviventes contam que a humilhação e a opressão eram tão extremas que, após um tempo, os prisioneiros passavam a acreditar em sua inferioridade. Todos tinham o cabelo raspado, seus pertences confiscados, vestiam o mesmo uniforme surrado de listas, um número tatuado no braço. Imundos, esquálidos, vivendo em meio à sujeira de latrinas abertas e da lama grudenta da estepe polonesa, não era apenas a auto-estima que se destruía: era o próprio sentido de identidade. Para suportar, muitos relatam um certo estupor, um parar-de-sentir. Aqueles que sucumbiam ao desespero, ao choro, acabavam por quebrar, cair mortos.
Na maioria, os prisioneiros de Auschwitz eram judeus, mas não só. Havia também prisioneiros políticos, ciganos, soviéticos, criminosos comuns, homossexuais e soldados aliados (prisioneiros de guerra). Nem todos eram destinados às câmaras de gás – havia uma hierarquia. Prisioneiros de guerra, ainda que em condições lamentáveis, eram consideravelmente mais bem tratados que o resto. Criminosos comuns tinham privilégios, viravam guardas. No fim da lista, no estágio mais baixo, os judeus. Boa parte nem chegava a ver o campo; desembarcava do trem e ia direto para as câmaras. Outros iam trabalhar no campo, ou nas indústrias vizinhas, ou nos “esquadrões especiais” – responsáveis por transferir os corpos das câmaras para os fornos, e limpar as cinzas depois. Quando um prisioneiro adoecia, enfraquecia demais, ou cometia falta grave, era mandado para o gás.
Excepcionalidade histórica
Mas, repetindo a pergunta do início desta coluna: por que falar disso tudo hoje? Para muitos estudiosos, a resposta está na excepcionalidade do Holocausto. O Holocausto seria um evento único na História, ao qual nada se compara em termos do absurdo, da violência generalizada, contínua e socialmente aceita. Essa excepcionalidade “removeria” o Holocausto da História, pairando sobre o curso dos demais eventos, para sempre um marco a ser estudado e lembrado. Isso evitaria que o Holocausto fosse banalizado, neutralizado, ou igualado a outras tragédias. Por exemplo, poucas pessoas hoje em dia estremecem quando se fala na Inquisição, nas Cruzadas, ou nas sangrentas guerras européias que duravam dezenas de anos. Já o Holocausto ainda acirra os ânimos, emociona, suscita identificação (nem sempre apenas com as vítimas...). Talvez seja apenas por conta da proximidade temporal. O Holocausto ainda é, de certa forma, um problema nosso. Os defensores de sua excepcionalidade argumentam que essa visão do Holocausto como “problema nosso”, como responsabilidade coletiva e histórica mesmo entre as gerações futuras, é essencial e precisa ser mantida. Por isso, o evento único merece status especial nas narrativas históricas.
Outros historiadores argumentam que, apesar da dimensão épica do Holocausto, ele não merece essa condição de excepcionalidade. Os defensores dessa linha enumeram um rol de acontecimentos igualmente catastróficos: o tráfico de escravos da África para as Américas, os milhões de vítimas do stalinismo, o genocídio de Ruanda em 1994, o extermínio das populações nativas americanas com a colonização, os sucessivos domínios sobre a China (Japão, colonizadores europeus, indução do vício ao ópio, expurgos comunistas)... O Holocausto seria mais um na lista – importante, sim, mas não exclusivo. Uma das principais críticas à excepcionalidade do Holocausto sugere que a visão dos judeus como vítimas eternas obscurece o sofrimento e a injustiça enfrentados por outras populações, como os negros. Alguns chegam a dizer que, afinal, o Holocausto acabou há mais de meio século, e a maior parte dos judeus de hoje em dia goza de condições confortáveis de vida e integração social, enquanto os negros ainda enfrentam racismo e desigualdade econômica.
Um dos problemas deste último argumento é a visão do Holocausto como um evento que pode ser delimitado no tempo, auto-contido. No entanto, para sobreviventes, suas famílias, filhos e netos, a experiência continua de outras formas. Lembranças, distúrbios afetivos, pesadelos, raiva, medo – são muitas as maneiras em que o trauma persiste. O outro problema é um juízo de valor que determina que algumas pessoas são mais “vítimas” que outras. “Vitimização” é um conceito um pouco difícil de medir, e de pouca utilidade a não ser para criar cizânia e hostilidades desnecessárias – que competição triste, aliás, entre os candidatos ao posto de maior vítima! Nesse sentido, a polêmica sobre a singularidade do Holocausto também se esvazia. É inútil discutir se o Holocausto paira mesmo fora da História ou se é apenas mais uma manifestação da agressividade humana. Quem opta por um dos dois lados do debate perde necessariamente a chance de um entendimento acurado e relevante. É preciso examinar o Holocausto em suas peculiaridades, que são inegáveis. Ao mesmo tempo, se perdermos de vista o que o Holocausto tem em comum com outros eventos, perdemos também a chance de fazer de nosso estudo histórico algo construtivo e útil ao presente e ao futuro.
Irracionalidade científica
As duas facetas, aliás, são inseparáveis. Tomemos um exemplo: mesmo com o horror dos campos de trabalho forçado soviéticos e dos genocídios na África, até hoje o Holocausto é exemplo único de uma estrutura baseada na mais avançada tecnologia industrial (ferrovias, bancos de dados, produtos químicos, sistemas de administração de trabalho e espaço, a idéia da linha de produção) e devotada inteiramente ao assassinato em massa. Ao contrário da repressão política ou dos ódios viscerais entre tribos diversas, cuja irracionalidade, dogmatismo e cunho “religioso” são evidentes, tanto o genocídio nazista quanto o anti-semitismo que o motivou são ligados a conquistas aparentemente racionais.
O anti-semitismo nazista floresceu em meios científicos, no positivismo que media crânios para prever comportamento criminoso. É isso, aliás, o que causa perplexidade: aparentemente, o nazismo é a “conclusão lógica” do desenvolvimento da racionalidade, da ciência, da revolução industrial, da lógica cartesiana, do século das luzes. A “excepcionalidade” da estrutura industrial de morte revela raízes em valores muito mais gerais, relevantes para outros tempos e sociedades. Um alerta sobre a fé na racionalidade extrema? Ou talvez a indicação de que, mesmo quando julgamos ter subjugado nossos instintos destrutivos e nossa agressão irracional sob a capa da civilidade, acabamos apenas por reprimir essas pulsões, que retornam com muito mais virulência do que se tivessem sido reconhecidas e enfrentadas?
Talvez a lição mais importante do Holocausto não seja simplesmente perguntar como o horror extremo pôde ser permitido, mas reconhecer que o horror se desenvolve gradualmente, insidiosamente – quando atinge o estado extremo, já não horroriza mais. Qual é o ponto em que toleramos a opressão de um grupo, e a partir de onde devemos reagir? O horror de Auschwitz não brotou do dia para a noite. Em 1933, quase dez anos antes de o campo começar a funcionar, Hitler foi eleito pela população alemã com uma plataforma política racista e autoritária. Desde os anos vinte, os partidários do nacional-socialismo, em uniforme e emblemas, aterrorizavam as ruas das cidades com violência gratuita e crueldade notória. E, anos antes, teorias anti-semíticas ganhavam aceitação em círculos acadêmicos – tornando oficial o racismo vigente há milênios.
Depois que Hitler subiu ao poder, os judeus foram gradualmente excluídos: proibidos de exercer certas profissões, de usar transporte público, de ir à praia; tiveram suas casas tomadas, seu dinheiro confiscado; foram demitidos, obrigados a morar em guetos e a usar estrelas amarelas. Esses atos, ainda que iniciados pelo regime de Hitler, só puderam continuar com o apoio ativo da população alemã, que não apenas colaborava com as proibições e fazia delações, como também participava – quebrando janelas, queimando sinagogas, espancando e humilhando judeus. Que quase ninguém tenha achado a discriminação aviltante é sinal do anti-semitismo antigo e pervasivo, da violência embrenhada e disseminada na sociedade, nas pessoas “normais”, para além das leis e das fardas. Auschwitz foi apenas a conseqüência lógica.
A lição, para nós, talvez seja indagar que espécie de violências e opressões toleramos, ou nas quais até participamos ativamente. Coisas que nos parecem razoáveis, ou inevitáveis? Em uma coluna antiga, escrevi sobre a violência embutida da injustiça social brasileira. Poderia citar também os ódios racistas ainda vigentes pelo mundo todo, a intolerância às diferenças; as condições nos cárceres, o uso da tortura; o escândalo de Abu Ghraib e os rumores sobre Guantanamo Bay; a indiferença, a vingança. O desafio não consiste apenas em evitar que pós-adolescentes se vistam, candidamente, de oficial nazista, mas em encarar as questões fora da festa à fantasia.
Fontes de informação
· O site do documentário Auschwitz, série em três partes produzida pela PBS, a tevê pública norte-americana, contém não apenas informações sobre a produção, como dados históricos, mapas, imagens e outros recursos
· O museu de Auschwitz, localizado na cidade polonesa de Oswiecim (Auschwitz é a versão alemã do nome), está aberto à visitação pública. A entrada é gratuita; o museu cobra apenas pelas visitas guiadas, opcionais. O web site nem sempre funciona
· O Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington, oferece exposições muito bem organizadas, além de biblioteca e banco de dados invejáveis. Muitos recursos, inclusive a excelente livraria, estão acessíveis on-line
O episódio do Príncipe Harry, que a princípio pode parecer mexerico de tablóide inglês, realmente revela uma preocupante situação: será que a exploração midiática, especialmente no cinema, não estaria transformando o Holocausto numa historinha de ficção? Especialmente para nós brasileiros, um pouco distantes dos fatos. Aliás, recentemente comentando com amigos "caso Harry", lembramo-nos que o Holocausto foi muito pouco/mal abordado em nossas aulas de História do segundo grau...
Parabens, Daniela Sandler. Enquanto o inexplicavel, o absurdo, o horror que não horroriza permear os "homens animais" da nossa civilizacao, a humanidade necessita de vigiliantes eternos. Precisamos rever continuamente nossos valores e a historia pode muito nos ensinar..