COLUNAS
Terça-feira,
22/2/2005
Estudo das Teclas Pretas, de Luiz Faccioli
Fabio Silvestre Cardoso
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"A vida é um conto cheio de som e fúria", escreveu Shakespeare na célebre peça Macbeth. Esta frase, citada por inúmeros escritores e que foi a gênese do título do romance de William Faulkner, Som e Fúria, também poderia ser a epígrafe do romance Estudo das Teclas Pretas (Ed. Record, 171 págs, 2004), do escritor gaúcho e músico Luiz Paulo Faccioli. Muito simbólico, o nome da obra esconde uma trama repleta de tensões, conflitos, dramas, paixões, sempre pontuada pela música de concerto que não é só trilha sonora, mas também coadjuvante e, em alguns trechos, a personagem principal dessa história. É correto afirmar, ainda, que o autor não se propõe a fazer um livro de iniciação musical utilizando a narrativa para este fim. Trata-se de um detalhe que ocorre naturalmente, assim como o fato de o leitor sentir-se absorvido pelos acontecimentos do livro sem saber a razão, afinal, um livro que tenha a música clássica sugerida logo no título, nos nossos dias, tem tudo para ser professoral ou pedante, como alguns gostam de reclamar.
Desde o princípio, o leitor vai notar que o romance é narrado ora em terceira pessoa, por alguém, portanto, distante dos acontecimentos, ora em primeira pessoa, justamente pela personagem principal da obra, o pianista Paulo Amaro. É a respeito da infância dele que versa a história no início. Nesse período, o autor apresenta os acontecimentos que em boa parte explicam a personalidade taciturna e sombria de Paulo Amaro, bem como o início da paixão dele pela música. No primeiro caso, algumas ocorrências familiares, como a morte da mãe e a ausência do pai, fazem de Paulo uma figura distinta e cujos desejos se mostram assustadores e desprezíveis. É o que ocorre quando ele decide se separar de Vida, uma garota que se aproximara dele e que, com o tempo, se transformara num estorvo. A solução? "Tudo aconteceu muito rápido, e rápido também chegou o remorso. Ele sentiu uma dor aguda ao ver a menina lá embaixo, desmaiada, a cabeça ostentando o tenebroso corte, o sangue saindo farto, empapando-lhe os cabelos". Trata-se de uma lembrança que o acompanhará até o fim do livro. Assim como a Quinta Sinfonia de Gustav Mahler, quando pela primeira vez teve contato com a música erudita, que passaria a ser razão de viver de Paulo. E não foi só isso: "Era a coisa mais triste que eu já tinha ouvido na minha curta existência. Também a mais bela. (...) Tão longe eu estava, lançado pelo forte impulso da recente aventura [de ouvir Mahler], que não senti quando Carlos descansou a mão em minha perna não sei por quanto tempo. Tampouco eu estava preparado para adivinhar qualquer malícia". Dessa experiência, Paulo Amaral tirou a certeza: "foi no inverno de 1971 que decidi tornar-me músico, por obra e graça do Adagietto de Mahler".
Intercalado com a história da infância de Paulo Amaral, surgem outros personagens cruciais no livro: a violinista Lara, recém chegada da Europa, e o maestro Leo Kaufman, um dos mais respeitados músicos da região. Ambos possuem uma ligação fortíssima com a música, não obstante algumas frustrações. Lara, por exemplo, só voltou ao Brasil em virtude de problemas de saúde de seus pais. Seu intuito era permanecer pouco, mas logo se estabeleceu por tempo indeterminado. Já o maestro veio ao Brasil deixando para trás o horror da Alemanha nazista, não sem a angústia e a amargura de ter saído no auge da carreira na Europa. O laço que os une é a música. Com efeito, é a graças a ela que Lara desenvolve um afeto diferenciado para com Kaufman: "Lara encantava-se com a postura a um tempo refinada e viril daquele homem (...) Ela nunca tivera tempo ou paciência para namoros, tampouco deixara qualquer compromisso na Europa, e sentia agora uma certa estranheza ao fazer tais comparações". Na verdade, Lara possui uma paixão latente pelo maestro Kaufman. Em nenhum momento, isso fica explícito, a não ser quando, para fechar o triângulo, Paulo Amaral descobre que pulsa algo mais entre os dois do que a atração pela música. Nesse trecho, é curioso notar que Paulo não toma conhecimento desse sentimento por uma declaração ou atitude de Lara. Antes, é a forma que a violinista interpreta a peça regida pelo maestro: "Paulo Amaro pôs-se a matutar sobre qual seria a paixão que Lara expunha ali sem pudores. E lhe foi tão rápido e fácil descobri-la em Leo Kaufman, que chegou a pensar se não seria loucura de sua mente a perspicácia com que decifrara a trama"
A partir daí, o livro conta o ciclo deste triângulo amoroso. No centro está Paulo Amaral, um pianista virtuose e não menos taciturno que tem sua vida arrebatada pela paixão da violinista Lara e pelo rigor do professor e maestro Leopold Kaufmann. Se fosse aquele poema de Drummond, a história se poderia ser assim: "Paulo ama a violinista Lara, que admira o maestro Leo Kaufmann, que, apesar de casado, não ama ninguém, exceto a música". Contudo, nada é tão simples assim. A começar pelo protagonista, Paulo, que passa a travar um duelo com o maestro pela paixão de Lara. Esse embate se dá no campo da composição, quando o pianista decide ser o aluno especial de Kaufman nesta área. A um só momento, é a oportunidade de alcançar a violinista e também de conhecer melhor aquele por quem Lara nutre uma paixão recôndita. Mas, à medida que a atração de Paulo pela violinista cresce, aumentam os conflitos entre Kaufman e o pupilo. Aqui, graças à narração, ora em primeira, ora em terceira pessoa, o leitor descobre os detalhes da história de maneira mais abrangente. Assim, nos momentos em que Paulo tem a palavra, há uma exaltação das impressões e dos traumas pelos quais ele passa na paixão dolorosa por Lara. Já quando a narração é feita em terceira pessoa, nota-se o foco nas circunstâncias ao redor de Paulo: seus parentes, sua relação com a música e com as apresentações, a percepção do maestro e de Lara em relação a ele. Nesse jogo de espelhos e de vozes, a música parece ser a única a saber por completo a densidade dos conflitos. A maneira como os músicos executam suas peças é um detalhe recorrente no livro.
E são as peças executadas ao longo do romance que expressam a verdadeira força dos acontecimentos. A atração ocasionada pela Quinta Sinfonia de Mahler; a delicadeza da obra de Debussy; o mistério das peças de Béla Bartok; a dedicação obsessiva no toque dos arpejos por Lara. Em Estudo das Teclas Pretas, uma exemplar mostra de um estilo fluente e pungente, Luiz Paulo Faccioli escreve com requinte uma história que poderia ser um emaranhado de clichês. Tal como a música de concerto, o autor dosa força e sutileza, sem deixar que um sobreponha o outro. Por fim, fica a certeza de que a vida, apesar de tudo, é encantadora na sua imperfeição, assim como a Sinfonia Inacabada de Schubert. Uma constatação tão precisa quanto à de Macbeth: "a vida é um conto cheio de som e fúria e vazio de significado".
Para ir além
Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo,
22/2/2005
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