COLUNAS
Segunda-feira,
21/2/2005
Observações sobre o Fórum Social Mundial
Lucas Rodrigues Pires
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Estive no Fórum Social Mundial em Porto Alegre no final de janeiro. Era uma coisa que já vinha programando há dois anos e que agora se concretizou. É difícil imaginar o que é o Fórum se você não está lá. Pela televisão, aqueles que acompanharam devem ter a impressão de uma reunião de doidos, saudosos do comunismo e o local ideal para cruzar com figuras excêntricas e pitorescas que chamam a atenção, típicas presenças em reportagens de televisão. Isso quando não se resumem a falar apenas das vaias que o presidente recebeu, ou então calar-se mesmo.
Fato é que fui para lá com o receio dos céticos e com a boa vontade dos sonhadores. Duas questões me cutucavam e era como a pergunta que não quer calar dentro de mim: para que serve o Fórum? Sairá algo de concreto dali ou vamos ter apenas uma semana de discussões inócuas, discursos recheados de chavões e muito protesto contra o imperialismo e o capitalismo? Considero-me minimamente de esquerda e meu desejo era que aqueles reunidos na capital gaúcha pudessem mostrar aos poderosos que de fato um outro mundo é possível. Aliás, esse talvez seja o questionamento que deveria ser o cerne de qualquer debate no Fórum: ainda é possível visualizar um outro mundo??? Concordo que na década de 1960 esse outro mundo estava muito perto de se tornar realidade, mas todos sabem o que aconteceu com aqueles que lutaram por ele - alguns foram mortos, outros exilados e há aqueles que se resignaram e hoje vivem de criticar o Lula afirmando ser ele um ignorante. Felizmente, houve aqueles que fugiram disso e continuam na luta. Muitos destes estiveram no Fórum.
O espaço do Fórum é imenso e percorrer todas suas 11 tendas atrás de debates e palestras não é tarefa fácil, ainda mais se contarmos que era ao ar livre (à beira do rio Guaíba), sobre asfalto, terra e grama, e um sol de 35 graus batendo incessantemente em nossas cabeças. Não à toa que o maior sucesso do Fórum foram a água mineral e o boné. Filtro solar e protetor labial também fizeram a festa. Sem contar o Shopping Praia de Belas com seu ar condicionado convidativo... O cansaço e a preguiça foram meus maiores obstáculos, mas pelo que pude ver não foram os de muitos jovens que ali estavam para tentar construir algo melhor. Ou mesmo se divertir.
A utopia do mundo sempre foi a paz, tratada como algo possível e aconselhável. Mas não podemos esquecer que ela nunca esteve presente entre os homens, desde os brutamontes das cavernas até os homens evoluídos que hoje habitam arranha-céus e constroem aviões cada vez mais rápidos. Mesmo a mão que faz arte é capaz de terríveis violências (vide Hitler, um caso extremo de amor pelas artes que foi capaz de gerar o Holocausto). E se refletirmos um pouco, perceberemos que talvez essa tal de paz não passe mesmo de uma pomba branca no céu à mercê de qualquer águia que dela queira se alimentar... Prova disso é que os grandes personagens da história da humanidade foram grandes guerreiros e nunca pacifistas elegantes que se opunham à violência (não me venham citando Gandhi, por favor).
O caderno da programação do FSM era assustador. Maior que o Estadão de domingo, e isso para três dias de evento. Sessões às 8h30, 12h30, 15h30 e às vezes 19 hrs. Eram onze tendas e em cada uma acontecia pelo menos uns dez eventos simultaneamente. Calculando podemos chegar facilmente a mais de 100 encontros/palestras/debates por horário, ou seja, mais de 300 sessões por dia. A única alternativa viável era rastrear o que de mais importante ou interessante aconteceria e tentar chegar a tempo. Os medalhões foram o alvo preferido de todos. Por isso que nem ousei ir ao Gigantinho ver o pronunciamento do presidente Lula. Imagina como estaria aquilo de gente querendo ver a nossa estrela política, gente querendo arrancar o couro dele, gente querendo fazer um auto-de-fé ali mesmo e pôr fim ao mandato do herege do PT. Além disso, as câmeras de TV estrategicamente instaladas para registrar qualquer coisa que pudesse ser notícia no dia seguinte. Tido como um espaço democrático, Lula no Fórum era notícia quente em potencial, pois a possibilidade de algum danado expressar sua opinião aprontando para cima dele era bastante grande. Mas, pelo que vi posteriormente, os arautos do comunismo, novos comedores de criancinhas, souberam se comportar e só atacá-lo verbalmente.
A diversidade humana que desfilou por Porto Alegre com certeza foi gritante. Tinha gente de todo lugar - cruzei com ingleses, muitos latinos e até japoneses. Vi um grupo de indianos cantando e tocando em favor de seu povo (que não recordo o nome) e chamando as pessoas a participarem de sua tenda. A manifestação em favor da Palestina foi das melhores. Um caminhão de som em que lideranças de trabalhadores rurais discursavam contra a guerra, contra Israel e se diziam no mesmo barco dos palestinos. Bandeira da Palestina esteve pau a pau com camisetas do Che. Terminavam sempre com gritos de guerra em prol da Palestina, entoados com um tambor e muitos jovens cobriam a cabeça com o pano similar ao que Iasser Arafat usava. "O palestino/ é meu amigo/ mexeu com ele/ mexeu comigo!". O ritmo era bom, o batuque também. A carreata, não muito numerosa, se dirigiu à Casa da Palestina, onde na sua frente foi improvisado um muro para ser derrubado pelos manifestantes (foto abaixo). Pelo menos em Porto Alegre, o muro de Sharon não existe mais.
Os medalhões do Fórum não ficavam nas tendas normais. Os eventos com eles eram em locais maiores em que multidões pudessem se acomodar. Assim foi a com José Saramago, Eduardo Galeano, Ignácio Ramonet e outros. Entre esses outros estava Luiz Dulci, do governo Lula. Como foi muito cedo o início da sessão, só cheguei no final, quando anônimos faziam comentários, perguntas e até protestos diante da mesa. Pois não é que cheguei num momento quente do dia não apenas em relação ao clima? Um rapaz carioca peitou Luiz Dulci e afirmou que era falta de respeito com a platéia "esse senhor" vir aqui e falar aquele monte de coisa (pelo que entendi, ele defendia as ações do governo e, com números, citava o desenvolvimento do Brasil). A platéia, claro, foi ao delírio, como é típico dos jovens. A exaltação não é privilégio dos jovens, mas não erroneamente podemos dizer que nessa idade ela está instalada nos poros, e para desabrochar pouca coisa basta. Lá, bastou um Luiz Dulci se pronunciar.
Em termos de política, creio que o FSM de nada ajudou para a luta por um mundo melhor. Sim, pois a diferença entre Fórum Social Mundial e Fórum Econômico Mundial é que neste último se encontra quem manda, naquele, quem não quer mais ser mandado. Ou seja, se pensarmos bem, Marx teria tal fato perfeitamente dentro de sua teoria de classes. Meu receio era (é ainda) que quem manda - os donos do poder, do capital, de tudo - continue a mandar e quem obedece continue a sofrer. Nesse sentido, parece-me que o(s) Fórum(ns) é(são) um fiasco, pois no último dia de Fórum, 31 de janeiro, um cenário de abandono pairava no ar. Cadê as pessoas? Cadê os protestantes que apoiavam os palestinos, o MST, o PSTU e aquele bando de jovem sorridente que caminhava com fervor por meio da multidão e embaixo do sol? Nada, quase ninguém... Cansaram-se os corpos ou os ânimos?
O Fórum é, sem dúvida, mais um local de protesto, palanque para diversas idéias se proliferarem, do que um espaço de construção efetiva de alternativas. Muitas possibilidades foram levantadas, poucas com potencial para concretização. Li recentemente que o Fórum rendeu 352 propostas para um outro mundo possível. Vejo também o Manifesto de Porto Alegre, uma carta com 12 ações formuladas por intelectuais. As intenções e idéias contidas nelas são as melhores e mais sinceras por um mundo melhor. Tenho certeza que se fossem adotadas, o mundo seria outro, e muito melhor. Assim, o foco deveria ser não mais o conteúdo das utopias, mas suas formas de implantação. Se é para sonhar, utopia por utopia, nada melhor que a de Thomas More. Mas o pragmatismo humano hoje exige mais que o sonho, quer transformações, e diante disso eu pergunto: Quem vai pôr em prática tais propostas? Como fazê-las sair do papel e se instaurar na política mundial? Talvez esta seja mais uma utopia, a utopia da qual dependem todas as outras, a utopia pela qual devemos de fato lutar. Afinal, utopias teóricas há de monte, precisamos de uma utopia que realize algo, que nos dê a oportunidade de sonhar com outras utopias e sentir que o mundo está mudando para melhor.
Lucas Rodrigues Pires
Porto Alegre,
21/2/2005
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