Foi, para variar, o Diogo Mainardi que escreveu uma vez, na Veja, uma crônica divertidíssima sobre a criatividade do brasileiro para inventar nomes. Eram coisas do arco-da-velha, tão difíceis que eu nem consegui guardar. E ele tinha razão: somos praticamente insuperáveis na capacidade de flexionar nomes próprios, na apropriação de nomes fora do contexto e na invenção pura e simples — quase sempre desrespeitando as normas da língua pátria (por exemplo, nos acentos) e, volta e meia, as das fontes em que o nome se baseia (quantos "Michael" não viraram "Maicom" no Brasil — ou coisa pior?).
E eu não poderia escapar dessa tradição secular. Como são cada vez maiores (ao menos no meu ponto de vista) as confusões em torno de mim a esse respeito, resolvi escrever esta crônica autobiográfica e fornecer alguns esclarecimentos básicos.
Começando do começo (parece óbvio, mas a maioria dos articulistas não "começa do começo" — já reparou?). Fui batizado Julio Dário. Era o nome, próprio, de um primo do meu pai, de quem ele naturalmente gostava muito, e que faleceu precocemente (aos 22 anos; era aviador). O meu pai me conta que "Julio Dário", que remonta ao tio do meu pai (o pai do seu primo falecido), se refere a um imperador da antigüidade. Não duvido do meu pai, claro. E nem do tio dele, meu tio também. Apenas imagino, pois já procurei outros "Julio Dário" em livros de História, que, na verdade, o nome se compõe não de um, mas, de dois imperadores: "Júlio" (com acento), de Júlio César, o romano; e "Dario" (sem acento), de Dario da Pérsia, aquele derrotado por Alexandre, o Grande (seu maior adversário, diz Plutarco).
Assim, você veja: sou um típico brasileiro. O que facilita algumas coisas: na escola, na universidade, no trabalho, eu era sempre o único Julio Dário. E vou continuar. A não ser que me candidate a algum cargo público e realize, sei lá, um plano econômico tão mirabolante que bebês sejam batizados em minha homenagem nas regiões mais inóspitas. Mas estou divagando.
Existe outro traço tipicamente brasileiro no meu nome próprio, se é que você reparou lá no terceiro parágrafo: os acentos estão trocados. Pois é. E isso tem, também, uma explicação, que nos leva ao título desta crônica. Minha mãe é boliviana (sem gozações aqui, por favor) e "Julio", em castelhano/espanhol, é sem acento mesmo. Eu acho até mais legal. Não queria ser "Júlio", embora muita gente me chame — obedecendo, aliás, corretamente às normas da nossa língua. E o "Dário" se realmente devia ser uma homenagem àquele imperador derrotado por Alexandre, não deveria ter acento, pois se pronuncia "Da-rí-o" e não "Dá-rio".
Então eu sou essa salada que você está vendo. Mas não pára por aí. Antes de entrar no "Daio", uma nova confusão inventada, desta vez, por mim mesmo, vou contar outras histórias engraçadas.
Tenho nome de imperador brasileiro. Você sabia? Provavelmente não sabia. Nos documentos, assino Julio Dário Revollo Porfírio Borges. (Bem, agora você já pode me processar.) Digo imperador brasileiro porque é longo e quase impossível de memorizar, ou acertar de primeira — pelas outras pessoas. Imagine ditar isso para outrem (com os acentos todos). Agora imagine o meu nervoso na hora de tirar a carteira de trabalho (meu pai tinha certeza de que o escrevente iria errar, mas felizmente ele estava bem humorado e não errou). Para completar, imagine transmitir isso por telefone. Para aquelas atendentes de telemarketing; as tais. Revollo já virou "Rebolo"; Porfírio já virou "Corfírio"; "Borges", elas costumam acertar. Bom, citei apenas as variações mais óbvias (pra você não se chocar).
De onde vem essa história de imperador nacional? Revollo vem da minha mãe. Pronuncia-se "Rebolho", e eu também acho legal ter um estrangeirismo no sobrenome. Já Porfírio e Borges vêm da família do meu pai, em Minas Gerais. Porfírio da minha avó e Borges do meu avô (ah, Revollo vem do meu avô materno). Resulta que meu pai quis transferir seus dois sobrenomes pra gente — e ficamos imperiais, eu e meus irmãos (eu até mais do que eles, por causa do precedente Julio Dário). Ainda do lado do meu pai, alguns tios me cobram que eu assine, artisticamente, Porfírio, porque a linhagem do lado da minha avó era muito mais ligada às artes do que a do lado do meu avô (um tio-avô meu, do ramo dela, por exemplo, fundou o mais importante jornal local). Mas eu gosto mesmo é de Borges; mais até do que de Revollo (como, por exemplo, assina meu irmão).
Eu sei, você já está perdido a esta altura do campeonato. Mas aviso que nós ainda nem entramos na principal confusão. Perceba como cada um de nós pode ter uma história rica só de carregar alguns prenomes e sobrenomes, digamos, mais glamorosos...
Continuando, existem os complicômetros dos sobrenomes (antes de explicar por que eu prefiro o Borges). Porfírio, que eu saiba, deve ter acento no primeiro "i". Mas como ninguém acentua, eu adotei quase a regra de ouro da minha irmã: também não acentuo mais. Ela desistiu no ginásio; eu ainda insisto quando estou num dia bom. Os dois "l" de Revollo são um enigma indecifrável para grande parte das pessoas que encontro; mas são muito comuns em espanhol. Como destaquei, pronuncia-se como o nosso dígrafo "lh". E o "v" como "b", como vocês sabem. Mas eu eternamente vou enfatizar ao telefone: "Re-vo-llo, com 'vô', com 'vê-ó', tá?". E muito pouca gente vai acertar. O "ll" ainda vai; como ninguém quase pensa digitando, acaba que nem questiona muito durante o diálogo...
Depois dessas explicações intrincadas, fica simples entender porque adotei o Borges e só. No trabalho era sempre "Julio Borges", desde o primeiro estágio. No começo, achava simples demais; mas, com o tempo, percebi que era tão mais fácil apenas corrigir o "Julio" (sem acento, tá?) e não mais o "Dário", o "Revollo", o "Porfírio"... que eu resolvi abraçar a causa do "Julio Borges". Um amigo meu da Argentina, da época do banco, pronuncia efusivamente "RRRúlio Bóóór-rês!", mas eu gosto, não me importo. Essas questões de pronúncia estrangeira não costumam me incomodar.
Mas o texto está ficando desinteressante, então eu vou entrar no principal balaio-de-gatos: minha estréia e minha carreira como escrevinhador profissional.
Tudo começou na Poli. Eles tinham um jornalzinho lá e, para variar, como eu metia o pau em algumas coisas e/ou pessoas, enviava minhas colaborações sob a alcunha de "JD". Para não cansar vocês com minhas genealogias familiares, apenas vou dizer que JD foi um jeito que um primo encontrou de me chamar (em vez de Julio Dário, como os demais). O engraçado é que, uma vez, desci a lenha num outro artigo politécnico, sobre mulheres (machista, comme — na engenharia — il faut) sem saber direito quem era o autor. O ridículo está no fato de que eu usava pseudônimo e o autor do texto criticado, também. Estava eu todo airoso por haver demolido suas palavras quando me avisaram que o cara era um amigão meu, na verdade... (Depois os blogueiros acham que essa história de pseudônimos, e suas conseqüentes trapalhadas, foi inaugurada na WWW.) Mas estou divagando de novo.
Virei JD na Poli. Mas, na minha investida mais ambiciosa, virei J.D. Borges. Ou virei antes, no Balela, um jornal por mim fundado, com outros dois comparsas, que não saiu do número inicial. J.D. Borges pegou. Foi até parar na Folha. E como, depois da formatura, mesmo engenheiro, eu não quis abandonar a pena, passei a assinar "J.D. Borges", até segunda ordem.
As piadas não pararam, claro. A Rita Lee, a internet era pequena naquela época (quando comecei a disparar meus comentários), perguntou se eu era "James Dean". Era um elogio. E o Michel Laub, hoje diretor de redação da Bravo!, que uma vez me encontrou numa cabine (na fase pós-Digestivo), me indagou depois por e-mail: "Você é o J.D. Borges da internet? Então eu já li você também..." O Sérgio Augusto, na nossa primeira topada, em 2000 e pouco, me falou uma coisa similar.
Usei "J.D. Borges" de 1997 a 2000, apesar dos percalços. Aí cansou. Eu era muito associado a J.D. Salinger, o escritor americano, e principalmente a J.L. Borges, Jorge Luis Borges, o contista argentino. Não que a associação fosse ruim; mas eu queria ter meu próprio nome, ora bolas. Logo, expandi "J.D. Borges" e readmiti o "Julio" — mas em lugar de "Dário", usei "Daio"...
Eu sou um descerebrado; pode me acusar. (Eu, eu, eu — não está chato esse negócio?)
Nós éramos crianças, eu e meu irmão. Era "Julio Dário", "Julio Dário", "Julio Dário"... mas ele — talvez pressentindo os lapsos futuros pelos quais eu iria passar — não conseguia de jeito nenhum pronunciar. Simplificou e, com aquela habilidade típica das crianças, tascou "Daio" e ponto final. Também pegou. Só que na minha casa. E entre meus familiares.
Sei que fui um irresponsável quando adotei esse apelido de infância na minha assinatura profissional, em 2000. Mas agora já foi. Hoje todo mundo me conhece por Julio Daio Borges (sem acento nenhum, tá?). E também por — eu mereço... — J.D. Borges, Julio Borges, Daio, Borges, Julio... (adote a forma que mais lhe agradar).
Eu dou risada. Não posso reclamar. Já me perguntaram se "Daio" era alguma influência romana (pelo som semelhante a "Caio"). "Não, não é; mas o Julio é; já o Dário..." E já me cobraram, do tempo da escola e do tempo do estágio: "Mas cadê os outros nomes? Cadê o Dário? O que você fez? Você tirou?". Bem, é uma longa história; leia lá, no Digestivo Cultural, "É Julio mesmo, sem acento"... Fora as correções em público, aquelas que quando acontecem você não sabe onde se enfiar (como se, aliás, as pessoas pudessem errar o próprio nome). Outro dia, eu me apresentei "Julio Borges", para evitar as perguntas, e alguém que já me conhecia (como escrevinhador) disparou: "E o Dário? Você não falou Dário, por quê? Não é Julio Dário?". E nem era Dário, era Daio...
Quando vão me pagar, por colaborar em revistas ou jornais, é a mesma confusão. Só que aumentada. Assim, eu já aviso logo: assino Julio Daio Borges, mas é meu nome artístico; meu nome por extenso é, na verdade, Julio Dário Revollo Porfírio Borges... "Jú-lh-o quê?"
E quando vou comentar, nas caixas de comentários de sites e blogs, para não preencher tudo, ponho "JDB". Pronto — outro rolo...
Minha empresa, que abriga o Digestivo, chamei de JDB Editora. Por essas questões jurídicas, de contrato social, de "objeto" e do ramo de atividade, virou "JDB Editora e Participações LTDA". Por conseqüência, quando vão pagar um serviço do Digestivo Cultural, dou a razão social que não tem nada a ver com o nome do site...
E assim vai.
Ultimamente, aperto a mão das pessoas e digo "Julio Borges". (Ah, como é mais fácil...) Mas não abandono o Julio Daio Borges, pode deixar. Nem o Daio; nem o Borges; nem o J.D.; nem o que mais você puder imaginar.
(A propósito: aposto que você deve ter histórias tão boas, ou melhores, envolvendo o seu nome... Você mora no Brasil, não mora?)
Legal seu texto, Dário, parabéns! Meus problemas (e queixas) se devem pelo Silvestre. Sabe como é, as crianças são cruéis. Então, tive de arcar com meus coleguinhas me chamando de Fabio Silvester Stallone (eis minha primeira rusga com esses trocadilhos infâmes). Antes do Digestivo, eu assinava Fabio Cardoso. E só. No máximo Fabio S. Cardoso. Ah, e a opção de não colocar acento é minha, apesar de muita gente reclamar. Mas divago...
Julio, deixe eu conter o riso depois de sua ótima coluna para contar a minha história também! Meu sobrenome “estrangeiro” (se é que existe isso num país de imigração como o Brasil) é sempre causa de dificuldades. O som “dl”, em Sandler, não existe em português. Mais comumente, eu viro “Daniela Sandra”. Como se eu não tivesse sobrenome. Mas o interessante foi quando vim morar nos Estados Unidos. Em inglês, não só existe o som “dl”, como o conjunto “ndler” é muito comum. Todo mundo entende e escreve “Sandler” quando eu falo, com sotaque americano: “séén-ler”. Mas Daniela é impronunciável. “Daniéul-llll-a”, enrolam a língua, e acabo virando o mais familiar “Danielle”, que eles pronunciam “daniééulll”. Daí morei em Berlim. Adaptei a pronúncia de “Sandler”, cuja grafia já parece bem germânica: “zánndlaah.” E aí a mágica aconteceu: eles entendem tanto o Sandler quanto o Daniela. Sempre acertam meu primeiro nome, que é bastante usado por lá. Só adaptei a pronúncia: “dani-ê-la”, é como eles dizem. E aí está a suprema ironia: tive de ir para a Alemanha para que entendessem meu nome por inteiro!
Julio, na identidade sou "Emilio de Moura". Ninguém nunca pronunciou nem escreveu o "de". Cansei de explicar e abreviei meu já curto nome para "Emilio Moura". Sem acento. Homônimo de poeta famoso. Estou feliz. Até a numerologia me confortou pela falta do "de". Abraço dos Ara-chás. P.S. Li hoje o nome da Ministra do Meio Ambiente: Maria Osmarina Marina da Silva Vaz de Lima, ou, Marina Silva.
Bela crônica, Julio, mais uma vez. Meu nome também já foi motivo de chacota, por conta do Miranda - quantos engraçadinhos já ficaram me zombando e chamando de Marcelo MERENDA. "Tem merenda hoje? Vc é merenda de quem?". Grrrr... Mas engraçado é minha mãe contando que não gosta do meu nome completo. Sou Marcelo Miranda da Silva (sim, igual ao presidente e tantos milhões de anônimos), mas limei o "Silva" do trabalho e da vida - exceto em documentos. A mãe fala que ODEIA não o Silva, mas a preposição "da". Ela diz que não entende por que raios foi colocar "Da Silva", como se eu fosse propriedade de algum Silva perdido por aí. Apenas respondo: "Mãe, se vc não entende porque me deu esse nome, não sou eu que vou entender". Coisas da vida.
Abraço!
Tendo lido seu artigo, vou encurtar meu nome de guerra para "Pait." Só Pait. Para evitar uma improvável mas não impossível confusão, escrevo o nome "F Pait" como acima, mas a partir de agora, em cartas e email, assino simplesmente, yours truly, Pait
Olá, Sr. Revollo! Bom, como o Marcelo Miranda, eu também sou um Silva. Creio que todos os Silvas de muitos sobrenomes deveriam se unir contra a discriminação, mas não falo muito disso, porque eu mesmo seria um alvo. Eu escolhi abolir o pobre Silva em quase todas as ocasiões por achar "Alessandro de Paula" mais sonoro do que "Alessandro de Paula e Silva". E esta é a história do meu nome... eh eh eh!!! Um abraço, Sr. Borges!
Julio, legal a breve história do teu nome. O meu, gaúcha com mãe filha de barão alemão com índia guarani (só no Brasil, mesmo) e pai bem brasileiro, era muito mais complicado. Irene von Groskopft Schlottfeldt Fagundes. Estes dois "t" eram um beta, som de dois esses em alemão, só para complicar. Eu mesmo tinha que soletrar lentamente a cada assinatura. Imagina em ficha de cadastro, portarias, chamadas, etc. Aí casei com um Silva (um atrativo a mais do meu marido) e, imediatamente, tirei os alemães. Agora, depois da morte da minha mãe e convivendo com as reclamações dos filhos, até me arrependo um pouquinho. Tenho um filho guitarrista que adotou o nome artístico de Lucas Schlotts e a minha filha recebe muita gozação por ser loira de olhos azuis e Silva. Agora que o Código Civil mudou, brinco que vou pedir o divórcio e casar de novo - com o mesmo Silva, só para recuperar o meu nome e mudar o dele. Mas dá uma preguiça de soletrar ... Abraços.
Olá Júlio, ops... Julio, eu também passei por alguns percalços por causa do meu sobre nome. Ainda no colégio, a professora dividiu a sala em grupos para a realização de um trabalho. E todos deveriam citar nome e sobrenome em voz alta para que os grupos fossem formados. Na minha vez gritei "Marco Garcia", e a professora não titubeou, tascou em letras garrafais no quadro negro: Marco "Galia". Que mais tarde virou Marco "Galinha"...
Amigo Julio. Ser ou não ser, parece que esta continua sendo a grande questão. Com acento ou sem acento, seu cabelo continua o mesmo. A Júlio o que é de Julio: Daio Borges. Não se preocupe você não é o unico que sofre com essas histórias de nomes trocados, não. Conheço cada uma que daria para escrever um livro. Mas Julio em Agosto e Setembro estaremos esperando novas histórias. Abraços. Clovis Ribeiro