"Por mais que se afirme o contrário, o brasileiro não leva jeito para música (...) A propalada musicalidade brasileira é um engodo (...) A música popular brasileira se resume a meia dúzia de sexagenários que continua a se arrastar pelos palcos, repetindo uma batida de quarenta anos atrás". As polêmicas afirmações acima são de Diogo Mainardi, o articulista da Veja a quem todos adoram odiar. Curiosamente, na mesma semana em que li o artigo citado, terminava a leitura de O século da canção (Ateliê Editorial, 251 págs.), escrito pelo professor do Departamento de Linguística da USP, Luiz Tatit. São dois pontos de vista muito opostos, mas que possuem um elo: a música. E é interessante notar como o tema pode gerar opiniões tão distintas, uma prova de como música está presente no imaginário nacional. No livro, Tatit traça um amplo panorama da canção, gênero que, independentemente do intérprete, sempre criou vínculos fortíssimos junto ao público.
O estudo possui oito capítulos, sendo estes divididos em duas partes. Na primeira, "Leitura Geral", Tatit produz uma análise histórica da canção no Brasil, partindo dos primeiros vestígios da sonoridade brasileira. E, com efeito, os leitores descobrem como foram instituídas algumas as bases da música por aqui. Um exemplo é a mistura de estilos já acontecia nos momentos seguintes ao descobrimento do Brasil. Segundo o autor, a reconstrução, ainda que indireta, dessa sonoridade remonta a uma fusão entre os "ritmos" nativos com os hinos católicos dos jesuítas, que se assemelhavam a uma espécie de canto gregoriano. Em seguida, com a chegada dos escravos, mais um elemento seria adicionado a esse caldeirão cultural, uma vez que, aos poucos, não só os negros integrariam essas sessões de música: "A idolatria contida nesses rituais, suas manifestações pagãs, foram se tornando insuportáveis no momento em que setores da sociedade branca começaram a integrar as rodas de batuque e a participar das cerimônias". É desse "sincretismo" (ou síntese?) musical que aparecem os indícios daquilo que, mais tarde, seria considerado como canção. Vale a pena ressaltar, ainda, que nessa primeira parte o nome mais citado não é de nenhum músico, mas do crítico José Ramos Tinhorão. A rigor, Luiz Tatit condensa com cuidado os trabalhos de Tinhorão, dando-lhes coerência e sentido para os leitores que desconhecem os meandros da história da música.
Dessa forma, o autor entrelaça bem os períodos e chega rapidamente ao que ele considera o século da canção, o século XX. Passa, então, a outro tipo de análise, (o "Detalhamento"), mais conteudística, avaliando a relação entre melodia e letra, que, para muitos, é um eterno enigma. Em suas palavras, muito mais graças à intuição do que à técnica, os sambistas construíam verdadeiros veículos de comunicação, por meio dos quais mandavam recados, faziam provocações, cantavam amores e choravam amarguras. De outra parte, a propósito, nota-se como o perfil dessas canções mudou. Se na época dos sambistas, tratava-se de um culto à malandragem, como mostra o duelo entre Wilson Batista e Noel Rosa, não muito tempo depois, o ideal cantado seria o do progresso, conforme provaria o surgimento da bossa nova no fim da década de 50. Conforme análise do autor, isso ocorreu após uma absorção dos ideais de progresso oriundos da industrialização e desenvolvimento nacionais que empurraram a classe média para outro patamar no que se refere ao consumo e ao padrão de vida, fatos que conseqüentemente afetaram, para o bem e para o mal, os interesses culturais das pessoas.
Entretanto, ao contrário do já citado José Ramos Tinhorão, Luiz Tatit não faz uma análise sociológica da canção. É claro que não deixa completamente de lado essa abordagem, mas fica claro que seu campo é outro. E isso fica evidente quando vemos ele se debruçar, mais uma vez, no que ele chama de "casamento entre melodia e letra". Aqui, o autor utiliza um amplo repertório de referências, falando tanto dos compositores, como Lamartine Babo e Ary Barroso, quanto dos intérpretes Vicente Celestino e Francisco Alves. Se hoje em dia eles podem soar desconhecidos, são nomes fundamentais para o entendimento de como a canção forjou uma unidade nacional. Na análise em si, Tatit faz paralelos entre a letra e a melodia, desconstruindo alguns trechos escolhidos. É bom que se diga que, nessa parte, o esmero do autor é digno de um estudioso, uma vez que ele não permanece na superfície, indo na raiz para elucidar suas teorias.
Um bom exemplo é sua apreciação de "Garota de Ipanema", na parte em que dedica à Bossa Nova e ao Tropicalismo. Nela, o autor disseca a canção em seqüências, fragmentos, aproveitando cada aspecto, seja do ponto melódico, seja do ponto de vista da letra. E, ao final, postula uma síntese de modo a explicar a gênese de seu estilo. Para Tatit, Tom Jobim conseguiu elaborar o máximo de sentido com o mínimo de variação, utilizando, de outra parte, forças de criação de ordem temática (no que se refere à melodia), passional (a letra) e figurativa (a personagem da garota, que parece tomar vida própria para além da canção). A cada fragmento, surge um novo ponto a ser observado, de maneira que o leitor consegue apreender, e entender, a canção com outros ouvidos, desta vez mais atentos às variações e aos detalhes que, eventualmente, poderiam passar despercebidos.
De uma maneira geral, os livros que tratam de música ou história da música tendem a se destinar somente aos iniciados, tanto pelo tema, que muitas vezes é específico demais, como pela abordagem, que pode ser pedante e prolixa. Felizmente, não é o caso deste O século da canção. Talvez pelo fato de Luiz Tatit também ser músico, além de professor. Sua observação sobre a canção, ao mesmo tempo apaixonada e dedicada, mostra porque o gênero merece o louvor e orgulho dos músicos, intérpretes e ouvintes no Brasil. Aliás, a respeito das afirmações polêmicas de Diogo Mainardi, a resposta (indireta, que fique claro) está na apresentação do livro: "Se o século XX tivesse proporcionado ao Brasil apenas a configuração de sua canção popular poderia talvez ser criticado por sovinice, mas nunca por mediocridade".
Ontem à noite assistindo ao ótimo "Roda Viva" da Cultura, fiquei "embasbacado" com as declarações do cantor, de Irará, Tom Zé. Com uma auto-crítica fora do comum, Tom se diz um enganador que não sabe fazer música. Disse ainda que o estilo musical que produz é o de música-reportagem. Quisera eu que no Brasil existissem muitos Toms Zés com essa sabedoria para produzir um som que mexe com a alma. Só assim sairíamos dessa mesmice que apodreceu a música brasileira que tem como "campeão" de canções executadas nas rádios o "excepcional" Latino com a sua "Festa no Apê". Que Deus tenha piedade de Nós.
Considero que a música brasileira se encontrou com o universo sonoro mundial, em especial, com o refinamento da negritude musical americana, através da bossa nova. Depois disso, nada mais se acrescentou, inclusive no mundo, em música popular, no século XX...