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Terça-feira, 19/4/2005
Hamlet... e considerações sobre mercado editorial
Paulo Polzonoff Jr
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Meu amigo Sérgio "Pareja" foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Lembro-me com imensas saudades de nossos papos de boteco, os melhores que jamais tive na minha vida. Foi numa destas reuniões à base de muita cerveja que, há quase dez anos, ele anunciou que abandonaria a faculdade para voltar para a sua terra natal. Nunca mais nos vimos desde então. As notícias que me chegam é de que Pareja está no Japão trabalhando como operário. Um desperdício.

Foi graças a ele que conheci Shakespeare. Eu já tinha ouvido falar do bardo, claro, mas nunca tinha me embrenhado na obra dele. Naquele tempo, minha estante dispunha de uma edição de Romeu e Julieta e outra do Hamlet. Já havia tentado ler a primeira, sem sucesso. Eu era um adolescente obcecado pelo realismo dos bandidos dos romances que analisam sociologicamente a sociedade. Shakespeare, portanto, não me dizia respeito.

Meu convívio com Pareja se intensificou depois que, juntos, montamos o jornal-mural O Hiperbóreo - um marco na faculdade de comunicação da UFPR. Ali expúnhamos nossas certezas (e éramos tão cheios delas!) e nossa revolta tipicamente juvenil. Nunca vou me esquecer da leitora que corou ao ler um poema obsceno de Sérgio.

Pois foi nesta época que li, pela primeira vez, Hamlet. Por insistência dele, Sérgio. Peguei o livrinho na minha estante e comecei. Depois parei. Retomei novamente. Não estava entendo nada. Hoje eu sei que a tradução era muito ruim, cheia de rococós dispensáveis, mas na época eu não sabia nada disso. Deixei o livro de lado logo depois de passar pelo primeiro solilóquio de Hamlet. Eu estava cheio daquele negócio de ser ou não ser.

Alguns dias depois, me encontrei com Pareja, que me perguntou sobre o livro. Fui atacando Shakespeare, dizendo que ele não era tão bom assim. Lembro-me exatamente do meu argumento fatídico, dito entre as árvores num dia de sol e frio: "Shakespeare só é considerado genial porque disse o óbvio antes dos outros".

Pareja só riu. Não me desprezou, não me xingou, não me atacou. Só riu. E aquele sorriso era cheio de compreensão. Pena mesmo que Pareja esteja no Japão apertando parafusos.

Muito tempo depois, motivado sabe-se lá por quê, reli o Hamlet. Desta vez numa tradução do Millôr Fernandes. Pareja já havia voltado para a sua terra natal, Cruzeiro do Oeste. E eu já não era a mesma pessoa. Dois ou três anos bastam para que as certezas caiam por terra uma a uma. Entre a primeira e a segunda leitura de Shakespeare, perdi a conta das vezes em que corei diante da minha própria ignorância. Parece que é para se curar desta doença que a gente vive.

Millôr me deu o que eu queria e precisava na época: Hamlet sem complicação. A tradução privilegia certa coloquialidade. Não há inversões demasiadas nem tampouco estruturas gramaticais arcaicas. Tudo é muito popular sem ser vulgar.

Aquela leitura me lembrou Pareja, é claro. Tanto que me esforcei para conseguir localizá-lo. Eu queria agradecê-lo e, ao mesmo tempo, pedir desculpas pelo comentário feito há alguns anos, sobre a obviedade de Shakespeare. O que eu não sabia e hoje sei é que a descoberta do óbvio é a busca de todo grande artista. Poucos conseguiram e menos ainda conseguirão. É claro que o gesto de pedir desculpas por um comentário feito na serena ignorância de outrora, que não feriu ninguém, é um exagero. Assim sou eu.

Minha história com Hamlet não se extinguiria com a leitura da peça na tradução de Millôr. O tempo passou. Em mim despertou a cobiça de uma leitura no original. Por duas ou três vezes peguei o livro na Biblioteca Pública do Paraná, mas não fui além dos primeiros versos. Depois, com o lançamento de Shakespeare - A Invenção do Humano, de Harold Bloom, cogitei mais uma vez fazer uma visita à corte dinamarquesa, mas por algum motivo desisti.

Passei os últimos dois anos procurando coisas boas para ler. Na dúvida, recorri a vários clássicos, mas não sei por que deixei Shakespeare de lado. Nunca me ocorreu, nestes dois últimos anos de busca desesperada por uma centelha, que ela pudesse estar em Shakespeare. Li um livro atrás de outro, atrás do óbvio, quando bem poderia ter me deleitado na fonte.

A oportunidade surgiu com Harold Bloom, mais uma vez. Minha opinião sobre o velhinho é conhecida de todos: admiro Bloom por seu apego à idiossincrasia. Ele é o tipo de homem com quem eu gostaria de jantar e conversar sobre livros. Ao que parece, Bloom segue um pouco a idéia do Millôr: "Eu só gosto do que eu gosto". E eu acho isso louvável, sobretudo numa época em que se prega tanto a identificação coletiva. Bloom não precisa se auto-afirmar recorrendo, para tanto, a frases-feitas; ele as compõem sem medo de errar e sem medo de ser atacado por suas escolhas individuais. Talvez por isso cause tanta polêmica no Brasilsinho.

Sempre comprei os livros de Bloom na época do lançamento. Por algum motivo, porém, este Hamlet - Poema Ilimitado, não me atraiu. Eu o vi uma ou duas vezes na estante da livraria, mas nem dei bola. Acho que eu não estava muito afim de ler mais uma ensaio de Bloom sobre Shakespeare. A leitura de mais de mil páginas de Shakespeare - a Invenção do Humano é de cansar qualquer um.

Tampouco me lembro por que comprei o livro. Foi numa arrumação de rotina da minha estante que o descobri lá, virgem e ansioso. Sem nada para fazer e sem vontade nenhuma de ler depois de uma tragédia pessoal, peguei o livro e me deixei levar pelas palavras de Bloom. Aos poucos fui me envolvendo em sua conversa absolutamente doce. Estranho usar este adjetivo - doce - para um livro sobre literatura. Mas é o que ele é: doce. Bloom não lembra em nada a prosa ininteligível da nossa suposta inteligência. Ainda que a tradução tente tornar as frases mais pomposas e cheias de vírgulas que cortam qualquer fluência em português.

Não convém comentar aqui os comentários de Harold Bloom. Seria ridículo. Já disse que a grande qualidade de Bloom é ser idiossincrático e nada dogmático. Portanto, lê-lo é um exercício também de tolerância. O aprendizado da literatura, sugere Bloom, passa necessariamente pela aplicação de um senso estético pessoal - quando ele existe.

Foi, pois, por causa de Bloom que acabei por reler Hamlet, há apenas alguns dias. A editora Objetiva, talvez sabendo que leitor brasileiro não gosta de comprar livro fino, resolveu agregar ao ensaio de Bloom a tragédia na íntegra, numa tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça.

É uma tradução mais cheia de pompa que a de Millôr Fernandes, lógico. Tem mesóclise e inversões que dão um nó na cabeça da gente. Nada disso chega a comprometer a compreensão do espetáculo shakespeariano. O que irrita é mesmo a necessidade da tradutora de mexer nas frases mais famosas da peça, ornando-as com uma originalidade que simplesmente não funciona. Por exemplo, a famosa "ser ou não, eis a questão" vira, pela pena da tradutora, "ser ou não ser, esta é que é a questão".

Desta vez eu me detive menos nos detalhes e parti para uma compreensão mais abrangente da peça. Com a ajuda de Bloom, ficou mais fácil. E, de algum modo, eu me tornei muito próximo de Hamlet. Talvez por ele ser bastante exagerado, assim como eu; e talvez por ter um senso de justiça muito pouco comedido. Dizem que a graça de Hamlet é que todos nós somos capazes de nos vermos no personagem, mas a verdade é que só desta vez é que me senti identificado.

A verdade é que tragédia de Hamlet bagunçou a minha vida. Correu de lá para cá na minha alma, levantando poeiras que eu julgava já assentadas todas. Arrancou de mim confissões inimagináveis de culpa. Me libertou de pecados que eu tomava por meus. Dizer que sou outro homem depois da primeira leitura de Hamlet pode soar mais uma hipérbole, das tantas que fazem parte do meu dia. Mas, desta vez, estou sendo é econômico.

Tudo aquilo que eu julgava óbvio eu reaprendi. Foi como me descobrir um ser humano novamente. Foi como se eu tomasse um porre do tal do sopro de vida. Sem aquele óbvio de que fala Shakespeare parece ser impossível viver. Eu não entendo, sinceramente, como pode tanta gente viver na ignorância do óbvio. Fico pensando, às vezes, em quantos males não nos seriam poupados se o óbvio fosse assim tão óbvio quanto parece. Se tivéssemos assimilado mesmo o óbvio.

Ao Leitor Perdido (algumas poucas considerações sobre o mercado editorial no Brasil)
Fiquei sabendo que há um Leitor Perdido em algum lugar do Brasil querendo um livro lançado pela editora Candide. Ao menos é este o pretexto para uma grande rede de livrarias de São Paulo nos ligar numa tarde de segunda. A moça, com a voz esbaforida, deixou um recado na secretária-eletrônica pedindo que entrássemos em contato urgentemente. Foi o que fizemos, acalentados por uma esperança débil de que a livraria gostaria de ter nossos alquebrados livros em suas prateleiras.

Era mais ou menos isso. A moça nos informou que queria, sim, adquirir nossos livros. Como havíamos deixado já alguns exemplares por lá, deduzimos que eles já foram vendidos e que ela queria repor o estoque. Se bem que jamais veremos a cor do dinheiro dos livros adquiridos pelos leitores raríssimos nesta conceituada livraria, porque a distribuidora que cuidava dos interesses da editora Candide em São Paulo faliu. Ela também cuidava dos interesses do Instituto Moreira Salles, que edita os cobiçados Cadernos de Literatura Brasileira. Mas, convenhamos, que falta vai fazer o dinheiro para o Instituto Moreira Salles, não é mesmo?

Voltando. Graças ao Leitor Perdido a moça da livraria nos ligou ansiosa pedindo livros do nosso catálogo. Se trabalhamos com consignação. Claro. Exceto as grandes editoras, as demais todas trabalham com consignação. Traduzindo em miúdos, isto significa que o escritor tem o trabalho de escrever o livro - e por isso ganha 10% do preço final; o editor tem o trabalho de editar o livro, o que pressupõe uma série de tarefas, como arranjar capista, revisor e diagramador, além de cuidar da parte gráfica propriamente dita (e Deus sabe o empenho que é lidar com gente de gráfica) - para ganhar menos de 10% sobre o preço final. Já disse que o editor também tem que investir no autor? Pois tem. Trabalhando em consignação, o livro que é vendido ao Leitor Perdido por, digamos, R$ 20, sai para a livraria por R$ 12. Isto mesmo: ela tem 40% de lucro. Isto se o livro vender, claro, mas se o livro não vender ela também não tem prejuízo algum. É um negócio de risco mínimo.

Nem todas as editoras trabalham assim. As grandes editoras vendem seus livros para as livrarias. Vendem. Isso significa que não precisam se preocupar tanto com a venda dos livros. Passam a responsabilidade para o comerciante, isto é, a livraria, por um percentual maior, que gira entre 50% e 60%. Em números, aquele mesmo livro que custará ao Leitor Perdido R$ 20 sai para a livraria por R$ 10 ou R$ 8. Nestes casos, é evidente, a livraria tem todo o interesse do mundo em vender o livro (caso contrário levará prejuízo). Sabe aqueles livros que aparecem nas vitrines da livraria, por piores que sejam? Aposto a minha alma como não foram consignados.

Ah, sim, vale um dado nesta história toda: os pagamentos são efetuados com um prazo de 60 dias.

Esta é só uma das práticas do mercado editorial que o público não conhece. E que em parte inviabiliza o trabalho das pequenas editoras. Quer mais? Posso ir além. As grandes editoras, que já não trabalham com consignação, e sim com vendas diretas, também praticam um jogo de empurra muito interessante. Para explicar é melhor dar exemplos. Se abrirmos o catálogo de lançamentos de uma grande editora, veremos lá o livro de um grande compositor que vende horrores. É claro que toda livraria quererá ter o livro em sua loja porque é lucro na certa. Mas para poder comprar um best-seller ela tem também de comprar uma quantidade determinada de livros de pouca saída. Como o lucro certo do best-seller está atrelado ao risco do worst-seller (sic), a livraria expõe este último para diminuir as chances de encalhe.

No meio desta história toda está ele, o Leitor Perdido, que procura um livro publicado por uma editora pequena, a Candide. Ele não sabe de tudo isso e talvez até reclame do preço final do livro. Reclama também porque o livro não está disponível na loja de sua conveniência. É possível que o vendedor da livraria, em sua infinita ignorância, informe que a editora é ruim e não distribui eficientemente seus livros. Reclamação que é comum também aos escritores, em sua infinita ignorância.

Por falar em livrarias, o Leitor Perdido não sabe da missa a metade. Sem querer parecer vítima, a verdade é que editora pequena é tratada como mendigo. A livraria age como se estivesse fazendo o favor de vender o livro, como se ela não tivesse retorno algum com aquilo. Profissionalismo não existe. Eu perdi a conta das noites em que rezei para que uma editora qualquer, no mínimo pequena e no máximo minúscula, lançasse um livro que viesse a ser um arrasa-quarteirão. Gostaria, sim, de ver os funcionários responsáveis pela compra lambendo as botas do editor pequeno, porque uma horda de leitores está pedindo um livro tal. Tanto melhor se o editor, neste caso, fosse eu. Que, no entanto, nem editor sou mais.

Mas eu não terminei de contar a saga do telefonema de hoje. A moça queria livros. E, surpreendentemente, não os queria consignados, e sim comprados com um desconto de 40% do valor de capa. Haveria, ainda, despesas como o envio dos livros, bem como impostos e alguma burocracia (isto é, nota fiscal). Mas compensava. Ou parecia compensar. Porque a moça teve a pachorra de pedir 1 (um) exemplar de determinado livro. Porque, segundo ela, havia um Leitor Perdido querendo, insistindo muito. É ou não é um desaforo? Em que outro lugar do mundo existe um comércio assim tão primário? Pior que isso só mesmo escambo. E olha lá.

Sinto muito, mas a moça da grande livraria vai ficar sem o livro que quer vender para o Leitor Perdido. E o Leitor Perdido, bem, vamos tentar obter o contato dele para dar o livro de graça. Porque, acreditem ou não, sai mais barato e é mais gratificante para a editora.

Nota do Editor
Paulo Polzonoff Jr. dirige hoje o site Polzonoff Comunicação, onde estes textos foram originalmente publicados. (Reprodução gentilmente autorizada pelo autor.)

Para ir além






Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 19/4/2005

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