COLUNAS
Sexta-feira,
10/8/2001
Minhas Férias
Rafael Azevedo
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O vôo desceu de maneira um tanto abrupta no aeroporto Pudahuel, e prosseguiu naquela aceleração súbita e subsequente freada até deslizar ruidosamente ao lugar que lhe fora designado. Uma vez parada a aeronave e apagados os sinais luminosos de "abrochar los cinturones", pude perceber a primeira grande diferença comportamental desde que saíra do Brasil. Não houve aquela precipitação rude e ruidosa para os corredores, pessoas se atropelando para pegar suas malas (supostamente bagagem de mão) do compartimento acima dos assentos, e derrubá-las sobre outros infelizes apressados, tão típica e corriqueira nos vôos da Varig, Vasp, Transbrasil, TAM (e Gol, suponho). Ao contrário, as pessoas aguardavam pacientemente que os vizinhos se levantassem, ajudavam umas as outras com as malas, tudo de maneira muito educada. Surpreso, examinei com um pouco mais de atenção as pessoas que me cercavam - eu sabia! Não eram brasileiros. As feições levemente indígenas de algumas e o espanhol de sotaque extremamente irritante de todas não negavam: os passageiros eram quase todos chilenos. Regozijei-me com a boa educação deles, satisfeito como um animal que finalmente encontra outros de sua própria espécie, e participei deste ritual tão alheio ao brasileiro médio que é respeitar o próximo. O desembarque foi igualmente suave, porém com os percalços que os burocráticos (e malditos!) funcionários de aeroporto sempre podem nos oferecer. Mas tarde demais - a primeira impressão já tinha sido positiva.
À primeira vista, a periferia de Santiago nos lembra um subúrbio de alguma cidade norte-americana. À segunda vista também. Casas amplas com quintais bem cuidados, muitos postos com lojas de conveniência e cadeias de fast-food pontilham o caminho do aeroporto à cidade. Alguns grandes prédios de negócios nos lembram de que esse país vive há décadas um pujante crescimento econômico, e que não a toa foi cogitado para integrar o Nafta. Apesar dos Fuscas, Kombis, e alguns ônibus e caminhões em mau estado, sente-se que por ali tem passado muito dinheiro, e todos os benefícios que ele traz. Por toda a parte, vêem-se construções; certos pontos da cidade parecem um grande canteiro de obras. Mais adiante, alguns lixões, e umas Cohabs compõem as únicas coisas feias que vi em todas a viagem. Ainda assim, são muito mais agradáveis de ver, e dignas para seus moradores que qualquer Rocinha ou Heliópolis. Dizem-me que os habitantes daquelas casinhas de pedra apinhadas, e daqueles prédios de quatro, cinco andares, os donos daquelas roupas penduradas nos inúmeros varais, são os habitantes mais pobres de Santiago. Acredito. Ainda antes de chegar a cidade, passo por uma casa esplêndida, ao sopé do Cerro San Cristóbal, que ainda me separava da cidade de Santiago per se. Foi, ao que parece, a casa do "coronel" da região, na época colonial, que estendia seus domínios por todas as terras deste lado do morro. Definitivamente, um homem de posses.
Por ter entrado na cidade por esse caminho "periférico", não passo pelo centro - caindo direto no bairro nobre de Las Condes, onde se encontrava meu hotel. Mais uma vez, sinto-me em Suburbia, USA - casas, casas e mais casas, sem cercas e com seus jardinzinhos bem-cuidados, ao lado de prédios residenciais baixos. Em cada esquina um Burger King, ou um Taco Bell (pra não ficar nos manjados McDonald's, já mais mundiais que americanos). Instalado no hotel, é hora de ir para o centro, e ver o que me trouxe aqui em primeiro lugar. Meus companheiros e companheiras de viagem preferem ir ver a neve, ou os shoppings. Waaal, cada macaco no seu galho, ou melhor, cada louco com sua mania.
O metrô é fantástico, apesar de cobrir relativamente pouco da cidade. São apenas três linhas, uma delas a principal e a mais usada, que passa exatamente por baixo da principal avenida, Libertador Bernardo O'Higgins ou, como eles preferem, La Alameda. Assim como em Paris, os trens usam pneus de borracha, o que os torna muito mais silenciosos e faz com que sacudam menos; ao contrário de Paris, os vagões e as estações são limpas e pouco cheias, o que torna utilizar o metrô uma experiência quase obrigatória. Em pouco tempo chega-se ao centro propriamente dito. Resolvo no entanto descer antes, e saio na Praça Itália, tendo minha primeira impressão do que seria a "América Latina que deu certo". A sensação é de se estar em algum lugar da Europa, em todos os sentidos: a imensidão do espaço público, a beleza dos edifícios, a ausência de mendigos, pedintes e scumbags do tipo na praça. Satisfeito, resolvo tomar a Alameda em direção ao centro, estimulado pelos edifícios e torres que se afiguram no horizonte. Logo passo pelas duas universidades mais importantes da cidade (e do país), a Universidad Católica e a Universidad de Chile. Dois prédios antigos, arquitetonicamente falando, em perfeito estado de conservação, ambos sem uma única pichação, uma rachadura sequer. Com tristeza, me lembro das duas faculdades que frequentei no Brasil, da USP e suas aberrações modernosas Niemeyerescas (podres de sujas, apesar da escandalosa quantidade de faxineiros ociosos em suas dependências), e da PUC, com seu decadente prédio antigo, literalmente caindo aos pedaços, e seu prédio novo (que abriga as faculdades de comunicação), a construção mais feia já executada pelo ser humano.
Definitivamente este é um dos lugares mais agradáveis e belos para se caminhar em que já pude estar, dentro do contexto sudamericano. Dou de cara com uma igreja de São Francisco, que mais parece uma fortaleza (e é pra isso que deve ter servido, em sua fundação, no século XVII), com muros e janelas altas, e pesados portões, e sigo adiante, até o Palácio de la Moneda, imponente sede do governo (infelizmente, devido a alguma reforma, com boa parte de sua bela fachada coberta por tapumes), entrando na praça à sua frente, cercada, ou melhor, ornada de edifícios tipicamente do início do século passado, todos brilhando de tão limpos. Ao ver a profusão de guardas armados com metralhadoras neste ponto da cidade, me dou conta de que estava na terra de Pinochet, e um pensamento torna-se inevitável: se foi necessário um governo repressor, que exterminasse a tiros e cacetadas o direito de alguns de badernar e tumultuar, para que eles tenham um país tão organizado, respeitador, limpo e próspero, o preço até que foi baixo demais. O trânsito, apesar de intenso, jamais era caótico; as únicas pessoas que irritavam a todos eram, como não podia deixar de ser, os taxistas (iguais no mundo inteiro). Os pedestres eram mais respeitados que em qualquer cidade brasileira; vi até aquelas faixas sem semáforo, onde os motoristas param para os pedestres movidos unicamente por seu bom senso. A Catedral de Santiago, assim como todas suas inúmeras igrejas, merecem considerações à parte. São espetaculares, mais um quesito em que a colonização espanhola superou em muito nossa miserável herança lusa. Temos aqui, claro, igrejas bonitas, como as de Minas, algumas em Salvador, e... e...? Mas são escuras, sombrias e introspectivas, mirradas. Escapam por pouco de serem feias. As de Santiago já são pomposas, monumentais, seguem o "modelão" ítalo-europeu. Já mencionei a Igreja de S. Francisco, na Alameda, e poderia mencionar tantas outras; mas a Catedral é de encher os olhos, por dentro e por fora. Por dentro, uma nave gigantesca deixa boquiaberto qualquer visitante, e imagens e afrescos iguais, senão melhores, que os de muitas capelas européias. Do lado de fora, mais uma vez, nenhuma pichação. A praça que situa-se em frente dela talvez seja o ponto mais "central" da cidade; lá pode-se encontrar coisas tão típicas a centros de cidade desta nossa exótica América do Sul, tais como feirinhas de artesanato (!), um coreto usado por velhinhos para jogar dominó (!!) e alguns desocupados (mas inofensivos). Os prédios em torno desta praça chamam mais uma vez a atenção pela idade provecta e conservação perfeita; dentre eles ressalto o Museo Colonial, e um que contém uma galeria, arremedo, anos-luz atrás, da célebre galeria de Milão. Seguindo norte, rumo ao rio Mapocho, que divide a cidade, através de um agradável calçadão (único contratempo são os infernais vendedores de jornais com seus berros repentinos: Segundaaaaaaaaaa), chega-se ao Mercado Municipal, outra visita turística imperdível. Quem conseguir passar pelos inúmeros vendilhões que disputam a tapa o freguês, evitando as claras "roubadas", pode comer muito bem lá um belo prato de frutos do mar - algo que, afortunadamente, não aprecio. No caminho, um detalhe peculiar do centro de Santiago: por entre portas entreabertas, pode-se vislumbrar mulheres seminuas servindo café a alguns geezers sentados num balcão; um amigo chileno me informa que esses são os célebres (!) cafés con piernas, estabelecimentos tradicionalíssimos.
Já são 6 da tarde; procuro o metrô, para ir ao hotel. Não sem antes passar em frente ao magnífico Museo de Bellas Artes, prédio digno de Paris ou Londres. Situa-se numa região que lembra muito Barcelona, em especial o Barri Gòtic, com suas ruas escuras, abóbadas, e casas antigas. Santiago me pareceu um pouco isso, um pot-pourri de diversas cidades do mundo, sem no entanto deixar de ter um charme todo próprio. De volta ao tal calçadão, deparo-me com uma multidão assustadora, que mal sabia iria me acompanhar durante o trajeto de volta. Mas, surpreendentemente, não chego a ser incomodado por ela. Muito pelo contrário. Neste momento, devo interromper minha narrativa, pois aproxima-se o ponto crucial, onde eu queria chegar. Perdoem-me, mas a boa educação dos chilenos volta a ser motivo de louvor em meu texto. Mas minha insistência neste tópico não podia ser menor; é um fato que me atingiu muito fortemente, não me perdoaria por isso (sinto que devo isso a eles, como agradecimento). Recentemente cometi o desatino de visitar o Shopping Iguatemi, em São Paulo, supostamente frequentado pelas pessoas de maior nível de vida nesta maldita cidade. E não foi num fim-de-semana. Posso dizer que é muito mais agradável andar no centro de Santiago às 6 da tarde, em meio ao stress pós-trabalho de milhares de santiagueños de todas as classes sociais, do que no shopping frequentado, por lazer, pelas pessoas de melhor situação financeira de São Paulo, durante seu tempo livre. As pessoas lá eram muito, mas muito mais educadas, menos carrancudas, incomodadas, e me deram menos trombadas. Pediam licença, vê se pode, antes de passar perto de você! Só me lembro de ter visto coisa igual em Londres, ou certos lugares dos EUA... É, a coisa aqui anda feia. O mal estar da civilização nos atinge de maneira ainda pior que em qualquer outro lugar do mundo, pois aqui ele carrega consigo resquícios ainda muito vivos da barbárie da qual ainda não acabamos de sair. O respeito pelos outros em Sampa (ou mesmo no Brasil, for that matter) anda tão, tão baixo que infelizmente este anda sendo meu método de avaliar o quanto um lugar é bem frequentado: conto o número de ombradas que levo neste ou naquele determinado lugar.
É algo a se pensar; faço essas críticas não com o mero intuito de reclamar, pura e simplesmente; já faço isso pra mim mesmo, como bom sexagenário nato que sou (e que me orgulho de ser; como disse Nélson Rodrigues - ou foi Fabio Danesi Rossi? - jovens, envelheçam!). Mas é a incredulidade, que me açoita e me incomoda. Se o Chile, uma tripinha de terra espremida entre os Andes e o Pacífico, colonizado por um punhado de mercenários espanhóis e habitado por alguns índios que até hoje não se submeteram totalmente, pôde se tornar um país tão agradável (de longe o mais civilizado dos latino-americanos), há alguma esperança para o Brasil. Em algum lugar há. Só não tivemos alguém que nos colocasse no devido lugar, que deixasse de usar a "ORDEM" apenas como adorno de nossa bandeira, mas a transpusesse para a vida prática, cotidiana; talvez tenha faltado um Pinochet em nossa história. Foi o que ouvi de muitos chilenos.
Rafael Azevedo
São Paulo,
10/8/2001
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