COLUNAS
Segunda-feira,
13/8/2001
Livre talento, triste exílio, doces brasileiros
Arcano9
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E pensar que, até uns anos atrás, eu nem sequer imaginava que iria viver em Londres. Não só eu, aliás. Acho que estou testemunhando um momento histórico - provavelmente desde a época da ditadura nunca se viu tantos brasileiros mandando a pátria amada amar outro (ame-o ou deixe-o, já diziam os generais). Há hoje quase dois milhões de nossos compatriotas vivendo longe do país, a maioria nos EUA, Paraguai e Japão. Tanto talento cruzando os oceanos, tanta saudade disfarçada. Lembro de muitas músicas que falam do estar tão longe. E também do voltar. Mas não sei se vou voltar tão cedo. O Brasil está tão triste visto de longe, meus amigos. Me digam, está triste mesmo? Vocês ainda tomam cerveja na praia e comem camarãozinho? Vocês ainda torcem para a seleção? Vocês ainda... (o que eu mais odeio disso tudo é que, daqui a pouco, vocês vão dizer que eu me pareço ao Ivan Lessa).
Londres tem muito brazuca, uns 15 mil. Escondidos, a maioria, outros nem tanto. Há uns dois ou três lugares que você logo descobre e é lá que a galera se encontra para falar dos absurdos do além-mar. Na Oxford Street tem um restaurante no fundo de um mercado, pão de queijo fresquinho. Nos domingos, um tchurma ligada a uma igreja joga vôlei no Kensington Gardens sem muita pregação. Na embaixada em Green Street, o burburinho diplomático sobre como será a festa de boas-vindas do novo manda-chuva, já que o Sérgio Amaral foi para Brasília. Será que o novo embaixador também gosta de charutos?
Mas vamos falar de alguns desses personagens um tanto escondidos, mas muito audíveis. A música brasileira - força hipnótica para todos os estrangeiros, seqüência de notas tão harmônicas desse nosso Brasil dissonante, dessa nossa língua portuguesa tão carinhosa - a música brasileira continua em alta por aqui, como sempre esteve. Você já ouviu falar de Mônica Vasconcelos?
A Mônica é uma paulista, mora em Londres há mais de oito anos. Ela lidera duas bandas, uma chamada Nóis (bem numerosa, com seus metais reluzentes) e a As Meninas (bem menor e mais intimista). Conheci a Mônica porque trabalho com ela e logo de cara falei que gostava de jazz, mas que não via tanta graça na MPB. Ela reagiu com grande agressividade, e só faltou me chamar de ignorante. Ainda que com resistência, Mônica decidiu (talvez por considerar que, se eu gostava de jazz, meu caso não estava totalmente perdido) me chamar para ver um show dela. Demorei, mas fui. Fui porque queria ver sua técnica vocal. Haviam se passado já muitos meses, mais de um ano quem sabe, desde que eu tinha chegado.
Sabe o que é? Acho (usando aquela expressão gasta prá caramba) que a gente só sabe como as coisas são boas quando se afasta delas. Foi o meu caso, em relação à MPB.
Mônica tem uma voz colocada, doce, linda. Acho que é porque ela passa algum tipo de segurança materna na voz, algo que só cantoras muito experientes sabem fazer. Pena que meus parâmetros sejam tão restritos... certamente não é parecido com Ella Fitzgerald ou Billie Holiday, é diferente. Ouça e veja se você concorda com isso. Comprei seu último CD para dar de presente ao meu irmão mais novo, quando estive de volta ao Brasil, em novembro. Ele na hora identificou uma certa semelhança de Mônica Vasconcelos com Marisa Monte e me perguntou: "ué, você não odiava a Marisa Monte?" Eis-me boquinha de siri.
Esse último CD se chama Bom Dia. Traz composições famosas - É Doce Morrer no Mar, do Caymmi, é uma delas. Mas também traz composições da própria Mônica. Se você encontrar por aí, ouça a faixa título do CD. Bom Dia é um hino ao sol matutino. Mas um sol matutino daqueles que começa bem fraquinho, no céu azul, e lá pelas 9h30 da manhã te exaure em borbotões de suor cascateando da testa, pelos braços, nas canelas, no chão de paralelepípedos de uma rua de Diamantina. Caso você opte por deixar esse CD prá lá, uma boa pedida é esperar até o ano que vem. Mônica anuncia a seus fãs brasileiros que entra em estúdio neste fim de ano para gravar um novo. Já era mais que tempo.
Mônica participa neste mês de agosto mais uma vez de um evento que já virou fixo no calendário da comunidade por aqui. Trata-se do festival de música Braziliance, no Jazz Café de Camdem Town. Mônica e o seu grupo menor As Meninas batem cartão no Jazz Café, além de uma outra banda de um estilo diferente, mas também brasileiríssima, a banda Auwê. Como Mônica, os integrantes da Auwê não ficam na fórmula fácil de fazer covers de Garota de Ipanema para a gringalhada. Liderada pela vocalista Gabriela Geluda, a Auwê combina influências orientais com elementos de rock, folk, balada, bossa nova e xote. Geluda tem um timbre diferente de Mônica e é outra que deve constar de sua lista de novos talentos a serem descobertos. Procure o novo CD que a Auwê está lançando, que conta com a produção experiente de Will Mowat (que já trabalhou com Daniela Mercury e Fernanda Abreu. Dado seu currículo, Will deve escolher muito bem suas companhias...)
Bom, saindo agora dessa praia conhecida da MPB/Rock/Pop brasileiro, vamos para outro canto da cidade, sentir outros ares. Lembre-se: Londres é uma cidade de contrastes. Saímos do Jazz Café, linha preta para o sul, linha vermelha para o leste, linha laranja para cima e você está em Shoreditch, no coração da Brick Lane, no coração de Belgal Town. Escondido entre ruas com aquelas letras bengalis enroladas, está o quartel-general do dueto mais bizarro, doido e esquisito que eu já ouvi. Um bom contraponto para a Mônica, talvez, pois o dueto não segue muito bem as trilhas artísticas que conhecemos. Não segue muito bem neste sentido: até caminha pelo samba, mas com harmonias tortas. Até fala português, mas também francês e espanhol. Até faz pura música, mas esse é apenas um detalhe.
Essa... confusão.... chama-se Tetine. "Tetinha" é formada por Eliete Mejorado e Bruno Werner. O outro dia encontrei com eles. Tinha a difícil missão de fazer um perfil desses malucos sem nunca ter ouvido falar do trabalho deles. Eliete tem cabelo vermelho, Bruno tem fala mole. Lançam dois CDs ainda neste ano, o primeiro agora em setembro.
O que o "Tetine" faz é mais ou menos música dadaísta, que se insere de modo intransferível nas outras atividades expressivas da dupla. Eliete e Bruno realizam performances, são elementos vivos de instalações multimídia, são humoristas. Seus shows são tão inesperados que você nota certamente a conexão entre eles e a tradição teatral libertária de José Celso. O negócio é despirocante. "Nosso negócio é mostrar o cunt power", disse Eliete, num aliás que me fez gargalhar secretamente. E é bom? Boa pergunta.
Eles já lançaram três CDs. Esse vindouro quarto, intitulado "Olha Ela de Novo", é um dos que mais se enveredam pelo pop e, por isso, mais aconselhável para malucos comuns como nós nos iniciarmos em Tetine. Eu tive a satisfação de ouvir duas faixas. Tomemos uma delas, Pig. Na música, uma mulher, com uma tremenda voz de puta, falando baixinho como se estivesse envolta numa atmosfera de cigarros fumegantes, começa a enumerar detalhadamente os motivos pelos quais o seu homem (o cafetão, talvez) é um pig. A música é toda baseada em sintetizador. Muito bom, adorei, por que tem essa essência baixa, barata, que raras vezes eu vi tão bem representada. Outra faixa que ouvi foi a faixa título do CD. Olha Ela de Novo traz Bruno encarnado um aparente malandro carioca. A interpretação é humorística, tá na cara que a ginga na voz dele é forçada para que as pessoas riam. Outra vez, o som eletrônico e etéreo (que, descobri depois, repete-se em boa parte dos trabalhos do grupo). Achei engraçada esta faixa, não mais que isso. O Tetine, aliás, é engraçado. Acho que não deveriam ser levados a sério, talvez nem eles se levem. Mas o que importa, amigo, é que eles estão fazendo o que gostam.
E estão por aqui.
Voltamos ao início - tantos brasileiros em Londres. Tanto talento. Porque eu sinto que o Brasil está tão triste, aqui à distância? Os artistas têm inúmeras impressões do que está acontecendo. Uma, porém, fica clara. Clara para mim, clara para todos. Em Londres, em Nova York, em Paris, as pessoas valorizam o fato de você estar fazendo o que gosta. Pode ser uma besteira sensacional, como o Tetine faz, mas mesmo que seja besteira, há alguém que vai parar para te perguntar o que você está fazendo e se interessar, sem ter idéias pré-concebidas. Tenho certeza que os brasileiros que vêm para cá aprendem a ver tudo de outra forma. Aprendem a enxergar diferentes realidades. Percebem o quanto o Brasil, infelizmente, é limitado em alguns aspectos, principalmente na sua poderosa indústria cultural. Será que a Mônica Vasconcelos seria ouvida e respeitada no Brasil como é por aqui? Ou seria apenas mais uma cantora num bar da Vila Madalena, ganhando uns trocados que não dão nem para uma cerveja? E o Tetine? Será que no Brasil a dupla não ficaria restrita apenas aos eventuais happenings no Videobrasil?
Quem sabe, quem sabe, alguma mudança já venha a galope.
Para ir além
Tetine
Mônica Vasconcelos e a banda Nóis
Informações sobre a banda Auwê
Jazz Café
5 Parkway, Camdem Town
Arcano9
Londres,
13/8/2001
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