Eu não moro em São Paulo como se este fosse meu endereço definitivo, só porque nasci aqui e como se estivesse, para o resto da vida, limitado às suas ruas e às suas referências. Ainda tenho a impressão de que sou um turista nesta cidade. Não me acostumo com seus defeitos mais evidentes - trânsito, sujeira, pobreza, etc. Acho estranho que as pessoas esperem na rua para atravessá-la, dando passos para trás e para frente a cada carro que passa, em vez de esperar na calçada; que ainda não seja hábito, aqui, ficar parado apenas ao lado direito da escada rolante; que algumas pessoas passem tardes inteiras, no fim de semana, tomando cerveja e conversando sobre assunto nenhum; que favelas monstruosas existam praticamente no centro da cidade, e passem despercebidas; que um monumento ao mau gosto arquitetônico, como o novo prédio da Daslu, seja - apesar de bonito por dentro - considerado elegante por fora.
Acho difícil me acostumar com tudo isso, e muito mais, apesar de ter nascido aqui. Só que, sinceramente, ando cada vez menos preocupado com os problemas de São Paulo - a combinação de tudo isso é, na verdade, até engraçada, de tão esquisita. Minha maior preocupação é viver meio que à margem dessa bagunça toda. Assim, poupo a minha paciência e a minha sensibilidade. E não me entenda mal. É que São Paulo é uma cidade de personalidade forte, que pode impressionar - inclusive negativamente - todo mundo que vive aqui, e acaba reduzindo interesses e atividades de seus habitantes à circunferência da cidade. É preciso sempre tomar cuidado para não ser paulistano demais.
Toda cidade, rica ou pobre, grande ou pequena, exige certas adaptações de seus moradores. É preciso saber identificá-las. Você pode gostar ou não de carro, mas vai precisar ter um em Los Angeles. É melhor que você não tenha o olfato muito apurado se pretende morar em Cairo. E tenha sempre um lenço no bolso para caminhar em Manaus. Em Veneza, no verão, aprenda a não se preocupar nem com o cheiro nem com a umidade da cidade - ou você não vai conseguir apreciar os Caravaggios da Academia, que não tem ar-condicionado. São Paulo ainda é uma cidade mais exigente do que a média. Você precisa se ajustar ao trânsito e à violência, a feiúras e a grosserias. É difícil, mas não é tão difícil assim, e as soluções são manjadas: morar perto do trabalho, evitar horários de pico no trânsito, estar atento a figuras suspeitas; com relação a feiúras e grosserias, o ideal é simplesmente ignorá-las, seja um shopping center ou um gesto agressivo no trânsito - grosseria, aliás, é apenas a parte visível de uma vida desagradável. Morar em São Paulo, portanto, não é igual morar em Hamburgo - mas pode ser, à sua maneira, muito divertido.
Morar no Brasil é uma espécie de aventura. E essa aventura é ainda maior em São Paulo. É praticamente impossível viver aqui com o mesmo espírito com que se vive em Amsterdã ou Manhattan. Muita gente se frustra ou se desgasta em São Paulo porque importa modelos supostamente civilizados de outras cidades. Isso não funciona. Pedalar pelas ruas de São Paulo, durante a semana, é um exercício quase masoquista; e é muito difícil assistir um ballet ou ópera que compense a gasolina gasta até o teatro. E olha quem escreve isso: adoro mountain bike e tenho amigas apaixonadas por ballet. Só que reservo certas atividades para Barretos ou Moscou. Em São Paulo, os melhores programas são outros. São programas naturalmente brasileiros - sol, praia, esporte, etc. -, por um lado; e por outro estão nossos programas mais cosmopolitas, que sofrem ajustes tropicais mas não necessariamente se depreciam por isso - como nossos restaurantes.
Quem esteve em São Paulo agora em maio, por exemplo, provavelmente estava encantado com a cidade: os dias estavam tão lindos, limpos, azuis, que não dá para se imaginar em outro lugar. É só abrir o teto solar do carro e ir para o escritório. E, no almoço, escolher um lugar aberto - como, no meu caso, o Gil Bistrô ou o Museu da Casa Brasileira -, e apreciar, ao mesmo tempo, a comida, o clima e o movimento. Nos finais de semana, é maravilhoso descer de carro para a praia, apreciando a floresta na paisagem, o céu azul durante o dia ou, à noite, a caminho do interior, olhando as estrelas. São situações clichês, claro: mas são clichês tropicais que, por mais repetidos que sejam quando descritos, não se desgastam quando acontecem de verdade. E combinações entre essas imagens e certas conveniências devem ser exclusivas deste pedaço do mundo. É possível surfar bem a menos de uma hora de São Paulo. E o aeroclube onde piloto planador - e onde espírito é bem caipira, no bom sentido - também não ultrapassa muito mais de uma hora daqui. Isso para não falar de outras múltiplas opções de diversões bacanas próximas a São Paulo - de remo a vela, de trekking a trilhas de jipe.
E todo mundo fala isso, mas é verdade: São Paulo é uma das melhores cidades do mundo para se comer. Melhores e mais baratas, em US$. Desde que voltei de viagem, há três meses, devo ter ido a pelo menos um restaurante novo por semana. Não me lembro de nenhuma grande decepção, apesar de pequenos desapontamentos. Ao contrário, comi extremamente bem tanto nos contemporâneos, como o D.O.M. e o Carlota, quanto nos mais tradicionais, como no Ici Bistrô e Nonno Ruggero. E continuo aproveitando os que, por conveniência logística, vou quase toda semana, como o Mercearia do Conde e o Josephine. E tem os novos, como o Café de La Musique, que é quase uma mistura da Lotus com a Amauri, que atrai de Chiquinho Scarpa e Hebe Camargo a uma molecada que pode comer e, mais tarde, dançar no mesmo espaço. As opções gastronômicas em São Paulo não acabam mais, a ponto de, se entendesse do assunto, eu escreveria colunas apenas para comentá-las.
Eu não gosto de morar em São Paulo, portanto, por causa da programação cultural, ou de possíveis acessos cosmopolitas da cidade. Para isso, existe Veneza e Londres. Acho que é possível levar uma vida agradável em São Paulo, mas de um modo muito específico. Que, aliás, não se resume a programas outdoors e a restaurantes: mas também não é igual ao que se levaria em Helsinki. São Paulo requer uma certa flexibilidade. Mas recompensa essa exigência: porque esta cidade, bem aproveitada, pode preparar os olhos e os hábitos de quem, apesar de ter nascido aqui, tem o espírito aberto para o mundo.
A formação de uma personalidade cosmopolita pode ser ainda mais eficiente quando acontece em um ambiente provinciano. Porque viver na província exige esforços, adaptações, e uma maleabilidade natural para as pequenas coisas do cotidiano. Um ambiente civilizado, nesse sentido, apresenta menos desafios. E, por isso, pode formar toneladas de personalidades aparentemente sofisticadas, mas no fundo mais ingênuas, menos complexas. Joaquim Nabuco cresceu no interior do Pernambuco e Nero Wolfe, outro exemplo, no coração do Egito. São Paulo, em comparação com esse lugares, pode apresentar desafios igualmente didáticos, enriquecedores. Basta não confundi-la com o que ela não é.
Domingo no parque
E, falando em São Paulo, a apresentação de Wynton Marsalis no Ibirapuera foi ao mesmo tempo encantadora e frustrante. Sempre fui fã de Marsalis. Acho que ele é um gênio quando fala e quando toca. Seu CD de marchinhas clássicas é uma maravilha. Mas ele não pareceu muito atencioso em São Paulo. Estava aparentemente cansado e com pressa, no meio de um tour pela América Latina, e deve ter escolhido o repertório, como reparou o Julio, sem cuidado. Todo mundo ali estava aproveitamento muito mais o dia, o parque, a caminhada, do que a música mesmo, que esbarrou na chatice.
Mas a impressão é que estava todo mundo ali mesmo. Foi um evento social para São Paulo - daqueles em que você encontra amigos que não via há anos -, com um motivo relativamente honesto. Confesso que gostei de ver o movimento de pessoas interessadas em música. Se, aos poucos, a quantidade de shows dessa categoria aumentar, um dia vai dar tudo certo: figurino, cenário e enredo - se é que precisa.
Barry Lyndon
Aliás, assisti na semana passada um filme que devia ter assistido há anos, o último de Kubrick que faltava na minha lista: Barry Lyndon. Não sei como descrever a perfeição. Um filme ao mesmo tempo calmo e tenso, rodado no interior da Inglaterra do século XVIII, com atrizes lindas, paisagens deslumbrantes, cenas inesquecíveis? A beleza de Barry Lyndon cai no ridículo quando explicada em palavras. O filme é de uma natureza quase transparente. A impressão que sobra, depois de três horas de cinema, não é a da história, não são os personagens, não é uma cena especificamente.
É como se você estivesse contemplando durante horas um quadro claro, levemente colorido, que resumisse delicadamente os mais altos e os mais baixos momentos da vida. Tudo está ali. Claro, há comparações possíveis entre Barry Lyndon e Peer Gynt, outro mentiroso encantador, mas a linguagem é diferente. Peer Gynt é basicamente Ibsen. E Barry Lyndon, oscilando entre a amargura e as delícias da vida, é a essência do clima de Proust transposta para o cinema.
Eduardo, a situação de estranhamento com São Paulo é também uma constante para mim. No entanto, me encanta o fato de sempre termos algo a descobrir por aqui. E se pedalar é realmente algo complicado nos dias de semana - usei muito minha bicicleta como meio de transporte, hoje o faço menos - há pedaços da cidade que só dá para conhecer de bicicleta. Tente domingo na Paulista, vale à pena.
Morrar em São Pauo é conhecer a multiplicidade massificada da Liberdade, do Bixiga, do Brás, da Benedito Calixto, da Vila Madalena, da Vila Olímpia, do Itaim, do Ibirapuera, etc... É a partir daí que você pode buscar o que é realmente a cidade.
Uma cidade tão especializada que tem até camelô só de cadarço.
O que me indigna é o que encontramos no chão: de papeis, até pessoas...
Olá Eduardo, sou do Macapá, AP, que pode ser considerada uma cidade provinciana, pois não tem nem meio milhão de habitantes apesar de ser a capital do Estado. Gostei muito do teu texto porque eu acabei lembrando de um que eu tenho a respeito de Macapá, chama-se "Que vida boa, seu mano!". Acredito que assim como São Paulo recebe a influencia de outras localidades do mundo nós também recebemos influencia, via de regra, de cidades grandes do nosso próprio país, mas isso não significa uma perda da identidade local, ao contrário, existem vários movimentos de resistência cultural que acabam garantindo nossa identidade. É como você falou: em províncias, é vantagem certos tipos de reflexão, talvez seja por causa do tempo que se tem pra parar e pensar um pouco em não ganhar dinheiro ou simplesmente sobreviver. Há braços!!!
Edu, parabéns pelo texto. Como disse o leitor de Macapá, faltam reflexões mais "sociológicas" voltadas especificamente para onde vivivemos. Você praticamente dá a receita do bolo, de como viver em São Paulo (que concordo plenamente), mas há algo que ainda não perdi desde que entrei na faculdade; a minha sensibilidade para as aberrações daqui. Sem dúvida passo longe de desenvolver uma gastride aguda pela overdose de arquiteturas neoclássicas, papeis no chão, assaltos sofisticados, pessoas individualistas, e etc, etc e etc. Mas nesse ponto, como você disse, o "provinciano", tem muito a contribuir com nós, os "cosmopolitas". Infelizmente tenho percebido uma certa fuga generalizada de nós, os cosmopolitas, para com os problemas modernos. Não há mais reflexões. O ritmo é intenso, todos são muito cobrados, seja no trabalho, em casa, fora as novas contingências como segurança, falta de acesso a qualidade de vida e etc. Um grande medo parece pairar no ar, lançando uma nuvem congelante até mesmo nos moradores mais ilustres e capacitados dessa cidade. Esse indicador me parece ao menos alarmante. Será que estamos retrocedendo? Isso me lembra a sociedade medieval onde as famílias construiam seu castelos e fortes a espera de uma "visita" hostil, ou de um novo vizinho de maus hábitos. Óbvio que há excelentes movimentos por aí, mas confesso ainda não me sentir a vontade para colocar, por exemplo, um filho no mundo. Você pode me perguntar: por que não saio de São Paulo? E eu te respondo: vou trocar 6 por meia dúzia. Acho que o problema tem raiz profunda. O que vamos fazer? Acho que para começar, parar e refletir mais. E já que há medo em se pronúciar, vale a máxima: a união faz a força. Denuncie anonimamente, seja voluntário, faça parte de uma ONG. Dá para contribuir um pouco mais sem aparecer. Não quero parecer nenhuma outra coisa, a não ser um cidadão que ainda acredita na sensibilidade das excelentes pessoas que vivem aqui. Um grande abraço.
Minha avó costuma dizer, o lugar onde moramos é o lugar... Depois de morar em meia dúzia de lugares tendo a concordar com ela.
Por outro lado, uma coisa eu ainda acho. Uma cidade muito violenta, e eu sou carioca, desperdica a energia dos indivíduos. Se o Rio mantivesse o nível que teve em meados de 95, seria hoje a capital do turismo mundial, tal o interesse em visitar esta cidade que conjuga tudo que eu amo.
Tendo morado em lugares nao violentos, eu vejo que certas coisas que sempre deveriam ser simples, podem ser simples, e quando sao simples tornam a vida mais leve, mais saudavel, e mais produtiva. Acho um pouco ruim baixar a cabeca, e dizer, e' isso mesmo, e assim que vai ser morar numa grande cidade do Brasil, entao toma.
Nao precisa ser assim, e nao devemos baixar a cabeca. Ao menos envie cartas para a prefeitura com sugestoes. Eu garanto que um pouco menos de violencia fara uma grande diferenca... E olha que ja' morei em lugares chatos, hiperpopulados, pouco populados, metropoles... tudo...
Moro em Manaus (AM), que é uma metrópole de 1 milhão e seiscentos mil habitantes, segundo a estimativa do IBGE para o ano de 2006. Aqui convivemos com uma eterna dualidade. Manaus é, ao mesmo tempo, moderna e antiga, rica e pobre, bonita e feia, cosmopolita e provinciana. Ou seja, a capital amazonense não é muito diferente de São Paulo. Embora Manaus esteja geograficamente distante dos grandes centros do Brasil, nesta metrópole da Amazônia Ocidental podemos fazer reflexões sobre o que é viver no Brasil dos dias atuais. Gostei muito do texto de Eduardo Carvalho, pois retrata a cidade de São Paulo sem uma visão excessivamente romântica (e/ou ufanista e, por vezes irreal) da maior metrópole do país. Ele demonstra gostar de ser e de viver em São Paulo, mas não perdeu seu olhar crítico sobre a cidade.
Acho que não, pois nesta idade o meu ritmo... Mas não há nada que, de longe, se pareça c/ essa cidade, neste país e continente. Isto é, p/ quem gosta de viver, consumir cultura ou pseudo-cultura, comer muito bem e com exagero de variedades... Para resumir, quando vou a Sampa (e, infelizmente, pouco posso ir), sinto uma alegria enorme e sei que irei me decepcionar. Sim, pois qq tempo é pouco e quando saímos de lá fica uma sensação terrível de que não fizemos nada, embora tenhamos feito muito mais do que faremos nos próximos meses e anos até, finalmente, voltarmos à deliciosa, perigosa, feia (embora cheia de lugares muito bonitos e alguns até lindos!), latina (luso-italianíssima), cafona, chiquérrima, burguesa, proletária, interiorana (sim, a maior cidade do interior da mundo), quase praiana, múltipla, mal-educada, fraternal, hospitaleira ou não (dependendo do humor da momento), porém sempre desafiante, sempre o maior parque de diversão p/ adultos dessa latino américa.
Eduardo, parabéns pelas suas citações e lembranças a respeito da cidade de São Paulo. Lembre-se que, em qualquer lugar do mundo, você terá que adaptar-se ao ambiente e de certa forma, transformar-se, pois dificilmente o ambiente mudará por sua causa. Então, faça do jeito que vc está fazendo. Aproveitando e curtindo as opções culturais que são oferecidas e de vez em quando viajando mundo afora para curtir outros tipos de beleza.