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COLUNAS

Terça-feira, 9/8/2005
A América de John Steinbeck
Jonas Lopes
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Desde a década de 1960, impera no mundo um sentimento feroz contra os Estados Unidos. Esse antiamericanismo culminou no atentado ao World Trade Center em 2001, e só aumentou desde então. Nem sempre foi assim. Por um longo período, do início da década de 1920 até o final da de 1950, aproximadamente, os norte-americanos estiveram com moral elevada no cenário internacional. Nesse período triunfaram em duas Guerras Mundiais (de forma financeira na primeira e bélica na segunda), aproveitaram a prosperidade da Era do Jazz, souberam se reerguer depois da dura depressão dos anos 30, fruto da quebra da bolsa de Nova York em 1929. O american way of life parecia o modo ideal de se viver.

Foi também um momento glorioso para as artes nos Estados Unidos. Em todas as áreas surgiram obras que até hoje permanecem clássicas. Foi a época áurea dos estúdios de Hollywood e de cineastas como John Ford, Howard Hawks, George Cukor, Nicholas Ray e George Stevens (além dos estrangeiros radicados e americanos por associação Frank Capra, Billy Wilder, Alfred Hitchcock e Elia Kazan). A música popular encontrou seu auge nos grandes compositores (Cole Porter, Irving Berlin, Johnny Mercer, os irmãos George e Ira Gershwin) e intérpretes (Louis Armstrong, Billie Holiday, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald). O teatro ganhou seu triunvirato definitivo (Eugene O'Neill, Tennessee Williams e Arthur Miller).

Mas nenhuma área cultural foi tão beneficiada quanto a literatura. Depois de muito tempo baseando-se no que se fazia na Europa, as letras americanas ganharam cara no século 19, através de Edgar Allan Poe, Henry James, Nathaniel Hawthorne, Mark Twain, Herman Melville e Walt Whitman, para explodir de vez na primeira metade do século 20. A lista, interminável, está cheia de autores de talento: F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, Ernest Hemingway, John Cheever, J.D. Salinger, Sinclair Lewis, John O'Hara.

Um dos principais autores do período e, sem dúvida, o mais americano de todos eles, foi John Steinbeck (1902-1968). Vencedor do Prêmio Nobel em 1962, Steinbeck tornou-se célebre por sua literatura de teor social e pela delicadeza com que tratou temas complicados, como a pobreza durante a depressão. Em particular com As Vinhas da Ira, que narra a saga da família Joad em busca de um emprego na Califórnia, e o ainda melhor A Leste do Éden. Porém, quem conhece pouco da carreira de John Steinbeck vai se surpreender ao bater os olhos em A América e os Americanos e ensaios relacionados (Editora Record, 489 páginas). A obra foi a última lançada em vida por ele, dois anos antes de sua morte. Compreende trinta anos de sua pouco conhecida não-ficção, de 1936 a 1966 (65 textos, no total). O livro aborda uma gama de assuntos: sócio-políticos, pinceladas reflexivas sobre a Depressão, detalhes de sua infância na Califórnia, diário de viagens, opiniões sobre sua obra e, como promete o título, digressões sobre vários aspectos da América e dos cidadãos americanos.

O livro está dividido em oito partes: "Lugares do Coração", "Artista Engajado", "Textos Avulsos", "Sobre a Escrita", "Amigos", "Jornalista no Exterior", "Correspondente de Guerra" e "A América e os Americanos". Os títulos dos tópicos são bem auto-explicativos. No primeiro, o escritor fala de cidades em que morou ou que guardava com carinho. Fala sobre São Francisco, onde cursou faculdade e viveu de modo hippie quatro décadas antes dos anos sessenta, sobre Nova York ("a única cidade grande em que morei") e Sag Harbor, pequena vila próxima a NY. O período da Depressão, essencial em sua vida e obra, é radiografado em "Uma Cartilha Sobre os Anos 30".

Já "Artista Engajado" traz a vertente politizada de Steinbeck. Na época o consideravam um esquerdista, mas quem analisa sua obra com algum afinco percebe que isso não confere. O escritor vivia em um limbo ideológico: era conservador demais para a esquerda e liberal demais para a direita. Era um democrata informal (amigo de Roosevelt, Lyndon Johnson e Adlai Stevenson) e odiava o comunismo, mas não gostava de rotulações: "Simplesmente não me associo por natureza. Fora os Escoteiros e o Coro Episcopal, nunca senti impulsos de me associar às coisas".

Sua ambigüidade política gerava inimizades. Os comunistas o detestavam, e Steinbeck dá exemplos disso em "Duelos Sem Pistolas", onde fala da viagem que fez com a esposa para Roma (onde os escritores são levados a sério e recebem o mesmo respeito que as pernas de Lana Turner nos EUA, diz) e foi recebido com uma feroz "Carta Aberta a John Steinbeck", escrita por esquerdistas que o consideravam um traidor. Por outro lado, sua luta pelos direitos se faz notar em "O Julgamento de Arthur Miller", em que defende a liberdade de expressão, e em "Atque Vale", uma crítica ao racismo da sociedade norte-americana. Sua ânsia democrata é ainda mais notável no hilário "Delegados Republicanos têm Insígnias Maiores e Melhores".

Em "Textos Avulsos" há de tudo: esporte ("Então Meu Braço Endureceu"), pescaria ("Sobre a Pesca"), carros ("Um Modelo T Chamado 'Isso'"), vaga-lumes ("...como vaga-lumes capturados") e cachorros ("Pensamentos a esmo sobre cães a esmo"), um tema que muito lhe foi caro (o mais famoso foi Charlie, que ganhou um romance inteiro).

O capítulo seguinte, "Sobre a Escrita", é o mais saboroso para os fãs. Lá, ele fala do que lhe dá prazer, seu combustível: a escrita, claro. "Sinto-me bem quando faço isso - melhor do que quando não faço. Encontro alegria na textura, no tom, nos ritmos das palavras e frases", diz em "Embasamento". E continua: "Escrever, para mim, é uma função profundamente pessoal, secreta mesmo, e quando o produto é liberado ele separa-se de mim e não tenho mais sensação de que é meu. É como uma mulher tentando recordar como é o parto. Ela não consegue". Conforme seu amigo Nathaniel Benchley relatou à revista The Paris Review, Steinbeck acreditava que, para escrever bem, a pessoa deve amar ou odiar muito o objeto do texto. "Isso é um espelho da personalidade do John. Era branco ou preto, e, apesar de ele mudar de opinião às vezes, se você estava do seu lado, você estava certo, e se não estivesse, estava completamente errado".

Steinbeck surpreende ao afirmar que considera Ratos e Homens, uma de suas obras fundamentais, um fracasso. Não pela qualidade, mas pelas ambições técnicas que previa para o livro: sua intenção era criar uma peça-novela, um texto escrito em formato de romance, mas com pouca descrição e profusão de diálogos, o que favoreceria a adaptação ao palco sem perda de conteúdo e, ao mesmo tempo, fugiria da leitura sem tanta fluidez das peças. John acreditava que não alcançara esse equilíbrio: "Não servia para ser encenado porque eu não tinha experiência e conhecimento suficiente da arte do palco. O ritmo estava errado, a hora do pano foi mal escolhida, algumas cenas passaram do limite e muitos métodos comumente usados no romance e que empreguei no livro não ficaram claros no palco".

O escritor ainda aproveita para alfinetar os críticos, que passaram a criticar a sua obra a partir de As Vinhas da Ira. Outro artigo é uma exaltação do objeto livro, "uma das pouquíssimas mágicas autênticas que nossa espécie criou". Steinbeck era entusiasta do pocket, vendido a 25 centavos: "Com as edições baratas (...) você enche de livros os braços dos amigos. Diz: quando acabar de lê-los, passe adiante. Isso é uma coisa maravilhosa".

"Amigos" traz perfis de amigos próximos a Steinbeck. A maioria celebridades: o fotógrafo Robert Capa ("o trabalho de Capa é a imagem de um grande coração e de uma compaixão avassaladora"), companheiro de reportagens de John, o político Adlai Stevenson, o ator Henry Fonda ("seu rosto é um retrato de opostos em conflito"), o músico folk Woody Guthrie (que compôs várias músicas baseadas em As Vinhas da Ira), entre outros. Contudo, é uma não-celebridade que ganha o texto mais tocante de A América e os Americanos: Ed Ricketts, amigo dos tempos de Monterey.

Os dois tópicos seguintes mostram a persona repórter do autor. Sua visão do jornalismo é dividida: "tem a maior das virtudes e o maior dos males. É a primeira coisa que o ditador controla. É pai da literatura e perpetrador de lixo. Em muitos casos é uma única história que temos, embora seja a ferramenta dos piores homens. Mas num período longo, e talvez por ser produto de tanta gente, é a coisa mais pura que temos". Lembra da valorização do jornalismo na literatura americana: "Na Europa, um jornalista é visto como um escritor de segunda ou terceira classe. Jornalista, para um aspirante europeu às belles-lettres, é um palavrão. Nos Estados Unidos, pelo contrário, o jornalista é não só uma profissão respeitada como também considerado o campo de treino de qualquer bom autor americano".

Como repórter, é incomum. Quando narra seu curto período na profissão, pouco depois de chegar à Nova York, John diz que levava horas tentando voltar dos lugares onde cobria pautas; não conseguia aprender a roubar fotos das mesas de famílias que se recusavam a ser retratadas, além de ficar emocionalmente envolvido nos casos. É essa inaptidão que faz sua não-ficção sedutora. Ele é um grande observador, alguém que se compromete até o cerne com o assunto. Inadequado para o serviço jornalístico diário, factual e mecânico, e ideal para o jornalismo ensaístico e de opinião. O capítulo "Jornalista no Exterior" coleta artigos sobre países europeus. Três sobre a França, dois sobre a Itália e dois, os melhores, sobre a Irlanda.

Steinbeck cobriu duas guerras: a Segunda Guerra Mundial e a do Vietnã. Na primeira, sofreu resistência dos outros correspondentes, por ser um romancista famoso. Sentiu-se "retardatário, uma vaca sagrada, um tipo de turista". Seu diferencial era o ponto de vista particular. Os textos não se resumem ao front: Steinbeck fala do dia-a-dia dos soldados e de situações de dentro do exército (a visita do comediante Bob Hope ao quartel, o cachorro que espera os aviões). Com ao Vietnã a ligação era profunda. Admirador do presidente Johnson, Steinbeck era a favor da guerra, assim como outros escritores (John Updike, Vladimir Nabokov, John dos Passos), e foi desancado por isso. Não entendia os protestos antiguerra e resolveu ir ao Vietnã espiar a situação de perto. Voltou horrorizado.

O oitavo e último tópico do livro, o próprio "A América e os Americanos", é a peça de resistência da obra. Ali, estão concentradas as mais densas e profundas análises. Apesar de sua paixão pelos Estados Unidos - ou talvez por isso -, Steinbeck não se limita a passar a mão na cabeça de seus conterrâneos; não, o escritor critica tanto quanto elogia. Classifica o país e seu povo como "complicados, paradoxais, cabeças-duras, tímidos, cruéis, fanfarrões, indizivelmente queridos e belíssimos". Lista, assim, as infindáveis contradições que compõem a América e os americanos, uma sociedade que critica com dureza seu governo, mas acredita que é o modelo ideal, uma sociedade agressiva e indefesa, autoconfiante e dependente, hospitaleira e insensível, "uma nação de puritanos públicos e devassos privados".

Steinbeck é um escritor norte-americano em essência. O país e suas particularidades transbordam em suas frases - a forte identificação é comparável com a de nomes anteriores (Twain) e posteriores (Updike) a ele. Ao mesmo tempo em que é mordaz e impiedoso nas críticas, derrama ternura pela sua terra. Ressalta as qualidades e defeitos de um país que é cada vez mais criticado. Seria interessante ver como o escritor se comportaria em relação ao antiamericanismo atual.

Para ir além






Jonas Lopes
Florianópolis, 9/8/2005

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