COLUNAS
Quinta-feira,
18/8/2005
Literatura e infância: dois livros, duas viagens
Adriana Baggio
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Eu adoro ler. Credito à minha mãe o desenvolvimento do meu gosto pelas letras. Eu e meu irmão crescemos rodeados de livros. Ouvíamos histórias antes de dormir, lidas em edições de capa dura e lombada dourada, ricamente ilustradas. Até hoje, as imagens desses livros aparecem em flashes na minha mente, disparadas pela visão de uma cor, de um desenho, de um cheiro ou de uma palavra.
Depois da infância, meu irmão se afastou um pouco dos livros. Como eu era a rata-de-biblioteca-mor da casa, por ser a mais velha, ele deve ter perdido um pouco o estímulo. As crianças têm um senso de posicionamento de marca bem interessante, que deveria ser observado melhor pelos estudiosos de marketing. Quando percebe que não pode competir pela atenção dos pais em algum segmento, já que o irmão mais velho se apossou do "primeiro lugar", a criança escolhe outro caminho, ao mesmo tempo em que rejeita a atividade que os pais valorizam no irmão. Aconteceu isso com o meu irmão, mas depois passou. Naquela época, porém, não bastasse parecer um querubim de cachinhos loiros e olhos bem azuis, ele foi em busca de outro "segmento" em que fosse o primeiro para, dessa forma, atrair a atenção dos meus pais para seus talentos.
Lembrei disso quando estava lendo um dos ensaios de Marina Colasanti em Fragatas para terras distantes, publicado em 2004 pela editora Record. No texto "Erros e acertos de uma mãe contaminada", ela conta suas experiências na relação entre os filhos e as letras. Em uma casa repleta de livros, onde a mãe e o pai vivem de e com a literatura, é normal que se espere dos rebentos a mesma afinidade. Foi tudo bem com a primeira filha, mas a segunda não seguiu o mesmo caminho. Marina faz uma autocrítica, especula os motivos para essa rejeição, abre seu coração de mãe-escritora. Para qualquer mãe, é (ou deveria ser) um motivo de preocupação se um dos filhos não gosta de ler. Para alguém como ela, no entanto, o incômodo é muito maior. A resposta que a filha deu aos questionamentos dos pais reforça minha teoria do posicionamento aplicado às crianças: "Nessa família não preciso ler. Vocês já estão cobrindo a minha cota".
Eu já estava grudada na história antes mesmo de chegar a esse clímax. Não é ficção, mas mesmo assim eu sabia que Marina não iria decepcionar seus leitores com um final infeliz. É fácil concluir que ela não falaria desse assunto se a menina tivesse se transformado em alguém como a ex-Spice Girl Victoria Beckham que confessou nunca ter lido um livro na vida (prefere ouvir música, como se uma coisa excluísse a outra...). Portanto, percorri avidamente o restante do texto para saber como a filha finalmente tornou-se uma leitora voraz e orgulho dos pais. Foi simples e o acaso contribuiu. Uma hepatite deixou a menina de 15 anos presa à cama, longe de todos os interesses típicos de uma adolescente. Ela descobriu o prazer da leitura com Eu, Christiane F., drogada e prostituída. De repente, ela vivenciava nos livros o que muitos de seus colegas experimentavam na prática. A partir daí, não parou mais de ler.
Nesse ponto, sem que o leitor perceba, Marina Colasanti une experiência pessoal e teoria literária. Da situação com a filha emergem conceitos sobre a relação dos jovens e das crianças com os livros e de como isso é importante para o seu amadurecimento. Os livros representam uma "viagem segura", uma forma de passar por experiências sem os prejuízos inerentes a algumas delas. Os monstros dos contos de fadas ensinam as crianças a lidar com o medo; a realidade das histórias podem ajudar a diminuir a ansiedade que a curiosidade provoca nos jovens.
Essa transição entre uma boa história, que envolve, emociona, prende, para o aspecto "teórico", acontece em todos os ensaios do livro. Sem a arrogância ou a insegurança de quem se apoia no hermetismo para valorizar a intelectualidade, Marina Colasanti aborda diversos tópicos da literatura de forma leve e agradável, entrelaçados em suas experiências pessoais. Dessa forma, a escritora fala da desvalorização do imaginário, de livros e infância, do problema da "literatura feminina", de Harry Potter e similares, etc.
Terminei o último ensaio extasiada, apaixonada por Marina Colasanti. Só um ponto me incomodava: a recorrência de algumas passagens da vida da escritora, como a infância na Itália em meio à Guerra, o evocar de certos personagens, o estilo marcante de escrever. Para quem leu de uma vez, a sensação era de repetição. Mas, no fim do livro, um pequeno texto esclareceu tudo. Ela explica que também ficou incomodada pela presença marcante do seu lado pessoal. É um risco que se corre quando se agrupam textos elaborados em épocas e situações diferentes - os dela são prefácios e discursos proferidos em congressos e seminários de literatura. Já falei sobre isso em relação a um livro do Ruy Castro. Acho que Marina resolveu melhor. Mas vale como observação para os editores. Muito da significação de um texto está atrelada ao tempo e espaço de sua produção e divulgação. O perigo das coletâneas é que agrupar vários deles em um único suporte altera essa significação.
Na mesma época de Fragatas..., li uma história dirigida para adolescentes, que conta um pouco da São Paulo do século XIX. Em Viagem virtual (Larousse, 2004), a autora Vera Carvalho Assumpção embala fatos históricos em um contexto atraente para o público jovem. No livro, Camila e sua avó Francisca descrevem a vida da senhora no computador, escaneiam fotos antigas, navegam na internet em busca de informações. Quando a avó morre, Camila veste as luvas e os óculos da velha senhora e faz uma viagem até a época da chegada da primeira estrada de ferro em São Paulo. Encontra uma Francisca jovem, que também viajou no tempo para uma época anterior ao seu nascimento. A autora não se preocupa muito com essa questão, mas não significa que ignora. Camila questiona a avó sobre isso, que responde: "na imaginação, podemos ir aonde queremos".
Através de Camila, o jovem leitor pode refletir sobre as brigas entre irmãos, a perda de um parente querido, as diferenças entre a vida de antigamente e a de hoje (e como hoje tudo é mais fácil e confortável, em termos de tecnologia), a importância da memória dos mais velhos. Vera também aborda, com delicadeza, o amor e as sensações que provoca nos adolescentes. Nesse aspecto, o ponto de vista é bem feminino. Nem por isso, no entanto, precisaria ser piegas. Acho que a autora abusa um pouco das metáforas quando se refere ao que Camila sente por um primo. O "bater de asas de pássaros e borboletas", utilizados repetidamente como metáforas para o amor, não combina muito bem com as referências que fazem parte do mundo desse público.
Embarcar nessas duas viagens, a Virtual de Vera Assumpção e a Fragata de Marina Colasanti, quase ao mesmo tempo, foi muito interessante. Alguns aspectos que Marina aborda em seus ensaios estão presentes nas aventuras de Camila e da vó Francisca. Mais do que nunca, é importante considerar o modo como as crianças e os jovens têm no livro um apoio para refletir e aprender sobre a vida. Fico tentando encaixar esse princípio na minha experiência, mas não consigo fazer nenhuma relação pontual. No entanto, tenho certeza de que os livros da minha infância, inclusive os que me eram proibidos, me ajudaram e me fizeram muita companhia - assim como fazem até hoje.
Para ir além
Adriana Baggio
Curitiba,
18/8/2005
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