A invenção do DVD (digital versatile disc) só trouxe ganhos para o cinema e seus adoradores. Este pequeno objeto arredondado armazena imagens, sons e idéias de uma infinidade de artistas. Mesmo considerando a importância do VHS, é de se admitir que o DVD surgiu como forma não apenas de tornar mais prático o manuseio e o armazenamento dos filmes (por conta de formato econômico), mas também pela possibilidade de recuperação de obras talvez perdidas, que ganharam nessa mídia chances de reaparecer ao espectador comum, ao alcance de uma prateleira de locadora ou loja de vendas.
Feito o brevíssimo louvor ao DVD, dou um exemplo que justifica o ato: a chegada ao mercado de distribuidoras como a Aurora. As salas de cinema estão infestadas de lançamentos norte-americanos, filmes do mais alto grau de senso comum, esteticamente nulos, narrativamente imbecis, e tantos outros adjetivos pejorativos que infelizmente insistem em grudar na maioria dos chamados blockbusters. As locadoras seguem tendência semelhante: para cada estabelecimento que ousa colocar trabalhos fora do "circuitão" à disposição, centenas entopem o espaço com mais do mesmo - ou seja, aquilo já exageradamente martelado por salas multiplex e por uma mídia que insiste em exaltar ou propagandear o que não precisa ser nem exaltado nem propagandeado. E mais: não bastasse a pressa de determinados filmes em chegar ao aparelho de DVD do consumidor (de uma época em que o espaço cinema-locadora era de quase um ano, hoje temos obras chegando após três meses em cartaz), também precisamos engolir edições caça-níqueis cheias dos mais inúteis materiais de (mais) divulgação (making ofs que apenas exaltam as "maravilhas" do filme, entrevistas completamente desinteressantes, erros de gravação sem sentido e as terrivelmente inúteis galerias de fotos e afins).
Mas desviamos do assunto. Voltando: é em frente a um mercado como esse, que valoriza e dá atenção ao que deveria ser dispensável, que o surgimento da Aurora DVD deve ser louvado. A começar pelo próprio nome: Aurora (1927) é uma das obras-primas do alemão Friedrich Wilhelm Murnau, exemplo de grande romance na tela, a exaltação máxima do amor através do olhar singelo e sincero de um homem que só descobre realmente gostar da esposa quando decide matá-la. Há algo semelhante entre o filme Aurora e a empresa Aurora que vai além do nome. Em ambos, a valorização daquilo que estava prestes a deixar de existir é fundamental para a permanência do mesmo entre nós. No primeiro, a esposa; no segundo, importantes trabalhos de cinema ainda não suficientemente vistos e debatidos pelo espectador contemporâneo. Os fundadores da distribuidora talvez tenham seguido o pensamento de Murnau: só se pode continuar amando aquilo que ainda existe na lembrança. Melhor ainda se for palpável.
É o caso dos filmes lançados pela Aurora. Fundada no Recife, capital do Pernambuco, a empresa decidiu apostar no mais distante dos milionários lançamentos do mercado comum. O foco é no cinema europeu e no cinema independente americano (naquilo que "independente" tem de mais sincero e político, e não numa simples atitude de rebeldia infantil contra o "sistema"). Um primeiro pacote, de quatro filmes, já chegou às lojas e a (algumas) locadoras. O segundo lote, com mais três, está em fase de distribuição. Outros estão sendo planejados para os próximos meses, num catálogo realmente invejável que só se compara em qualidade e importância, talvez, com o da Versátil Home Vídeo, outra distribuidora que merece todas as ovações.
O pacote inicial da Aurora teve como ponto máximo dois filmes tão distintos nas estéticas quanto distantes na temática e proposta. O Beijo Amargo (1964) é uma pancada do lendário Samuel Fuller. Cineasta americano que inseriu verdadeiros tratados cheios de cinismo, ironia e violência em Hollywood, foi sempre marginalizado pelos colegas mais "ilustres", ganhando grande reconhecimento entre críticos e público europeus. Está na hora do espectador descobri-lo no Brasil. Especificamente este filme oferece uma boa introdução ao cinema selvagem de Fuller. Seguindo a linha do "anti" com a qual o diretor parecia gostar de trabalhar (ele fez, por exemplo, filmes antifaroeste e antiguerra, trabalhando dentro das características dos próprios gêneros aos quais ele ia contra), o filme desconstrói diversas características do chamado cinema noir, ao mesmo tempo em que segue seus preceitos para desvirtuá-los (não foi a primeira vez: onze anos antes, o cineasta fizera algo semelhante em O Anjo do Mal).
O Beijo Amargo: um antinoir de Samuel Fuller
O filme trata de uma prostituta que, fugida do cafetão após cobrar dívidas, muda-se para pequena cidade no interior dos EUA na tentativa de recomeçar a vida. Loira, sensualmente linda e carismática (vivida pela bela Constancia Towers, que já trabalhara com o diretor em Paixões que Alucinam), conquista a todos com quem cruza - exceto o policial local, sempre desconfiado das atitudes da moça. Fuller foge do óbvio e, em vez de criar mais uma loira fatal típica do noir, cria uma cidade fatal. A protagonista apenas quer paz, mas seu passado não a deixa quieta. Mesmo atrás de novos rumos, não consegue. É como se a carga de tudo vivido antes dali cobrasse seu preço agora, no verdadeiro inferno do qual ela torna-se vítima. Interessantíssimo que essa loira seja a sofrida na história, e não as pessoas que a rodeiam - como aconteceria no genuíno noir. Ela recebe as chagas da cidade, sente da pior forma o quanto o homem é vil, covarde e mesquinho às vezes por nada em troca - e mais ainda se isso envolver vingança, dinheiro e cobiça. O ataque de Fuller às cidades provincianas é explícito. Como faz hoje David Lynch, o que se mostra é gente aparentemente de bem alimentando, entre as quatro paredes de suas casas ou comércios, o mal que se esconde em seus desejos e anseios. As crianças, em tese as únicas esperanças de salvação, são igualmente tragadas por essa realidade distorcida, antevendo o quanto elas se tornarão iguais aos adultos que ali já vivem.
Passado o impacto de O Beijo Amargo (que ainda soa estupidamente atual e demonstra influência em filmes recentes de Pedro Almodóvar e Clint Eastwood), outro destaque dessa leva inicial da Aurora serve de alento igualmente rico em criação artística - mas menos virulento que Fuller e assumidamente noir. É o francês Rififi (1955), dirigido pelo americano Jules Dassin (banido dos EUA por conta do macarthismo, depois se exilando e fazendo carreira e sucesso - adivinhe onde? - na Europa). No filme, estão características e temas do subgênero famoso nos anos 40: trama cheia de meandros e surpresas, personagens ambíguos e traiçoeiros, bandidos no centro das atenções e a presença fundamental das mulheres (outros detalhes podem ser lidos no bom artigo que o Ricardo Calil escreveu para a No Mínimo).
A trama diz respeito ao assalto milionário a uma joalheria. Quatro bandidos se reúnem para o crime e armam tudo à perfeição. A seqüência do assalto propriamente dito ficou famosa: são 30 minutos sem diálogo e música. Mais do que isso, o que impressiona é o controle absoluto da mise-en-scéne. Dassin encena um roubo espetacular sem jamais ser espetaculoso. Esqueça os crimes filmados de forma épica, grandiosa e artificial, como nos recentes Armadilha, Uma Saída de Mestre ou Onze Homens e Um Segredo, entre tantos mais. Aqui, tudo é no silêncio, valorizando olhares, expressões, movimentos. Os únicos sons, lindamente trabalhados pelo filme para aumentar a tensão, são do martelo batendo suavemente, do alarme abafado, do cofre arrombado, do teto sendo aberto. O roteiro de Rififi lembra a obra-prima brasileira de Roberto Farias Assalto ao Trem Pagador, por focar na repercussão do roubo entre os autores e em quem os rodeia. Enquanto Farias discutia, através de um cinema tido como de entretenimento, a desigualdade social e o preconceito racial dentro da sociedade brasileira, Dassin está mais preocupado simplesmente com a ação pós-crime. Além do assalto, o filme tem assassinatos, seqüestros, extorsão, espancamento e uma gama de coisas detestáveis e questionáveis - mas trabalhadas e inseridas de maneira brilhante na narrativa, numa montagem que dá tempo às cenas e aos personagens sem jamais deixar o ritmo (e, conseqüentemente, o interesse) cair. Cinema clássico, tendendo ao moderno, de primeiríssima linha.
Rififi: assalto espetacular e muitas surpresas em cena
Os outros dois lançamentos já disponíveis da Aurora são menos referenciais, mas igualmente fundamentais. Brinquedo Proibido (1952) é considerado o primeiro filme a abordar a Segunda Guerra Mundial sob o olhar infantil. São duas crianças em cena: a garota de cinco anos perdeu os pais num bombardeio alemão; o garoto de 11 anos a encontra e sua família adota a menina. Juntos, eles vão conviver com o medo e o horror do conflito sem entenderem muito bem o que está acontecendo. A direção é do francês René Clement (que realizou em 1960 o intrigante O Sol por Testemunha - refilmado com menos brilho e mistério nos EUA como O Talentoso Ripley). Por fim, Anos de Rebeldia (1980) tem na família o seu grande tema, mas de forma dolorosamente estranha. O diretor americano Dennis Hopper, que havia feito sensação com seu despojado e meio maluco Sem Destino onze anos antes, mostra os membros familiares totalmente sem rumo - a mãe é drogada, o pai é pedófilo e a filha, obviamente, é perturbada.
No momento, a Aurora está distribuindo outros três lançamentos, que poderão ser comentados numa coluna futura aqui mesmo no Digestivo. Novamente, o de maior expectativa entre eles é outro de Samuel Fuller, e justamente seu primeiro longa-metragem. Matei Jesse James chegou aos cinemas em 1949 e já adiantava muitas das marcas pelas quais Fuller seria considerado gênio. Completam o pacote O Documento Holcroft (1985), de um dos mestres da ação e espionagem, John Frankenheimer, e protagonizado por Michael Caine; e o contundente e idealista Somos Todos Assassinos (1952) - produzido e levado a cabo por André Cayatte, ex-advogado na época das filmagens, é uma denúncia do sistema judiciário francês, através do purgatório de um ex-combatente da guerra que, alterado e de volta ao convívio normal, comete um assassinato. Se no conflito mundial ele fora condecorado por ter matado dezenas de pessoas, agora enfrenta a ira do sistema penal de seu país.
Para quem quiser ainda saber o que mais a Aurora prepara, vale dar uma vasculhada no seu catálogo. Entre outros, têm filmes desde os reconhecidos Jean-Luc Godard e François Truffaut, ícones da nouvelle vague francesa, ao italiano marginalizado Dario Argento, grande nome do suspense e terror em toda a história do cinema e inexplicavelmente quase ausente no Brasil (em DVD, só foram lançados dois trabalhos de sua extensa filmografia: Suspiria, em bela edição dupla pela London Filmes, e Sleepless, pela Califórnia).
Marcelo, realmente, a Aurora está resgantando grandes filmes que não merecem o esquecimento. Em especial, a sua descrição do Rififi está interessante. Vou até alugar, ou talvez, terei que comprar, não mesmo?